Daqui a razão da
escalada do Ulombe. Ele, ali está desafiador, majestoso, com os seus 2148
metros de altitude, esperando, silencioso que o devassem e, finalmente, o
grande público o conheça.
Há
precisamente 40 anos alguém no Bocoio lançava o desafio de escalar o Ulombe. O Ulombe é um morro, uma entidade do mundo físico por onde, com mais
ou menos esforço, se pode subir. Mas o “morro Ulombe” pode ser qualquer
montanha, visível ou invisível, e “subir” pode também significar compreender, um “estar a caminho” de Karl Jaspers.
Aceito o desafio de subir o Ulombe,
o meu Ulombe. Sobe-se através de ideias e palavras, na distância daquilo que é
próximo, no sentido que vai das experiências imediatas para uma apreensão mais
simbólica e conceptual da realidade. A subida é um movimento de interpretação, mas é também um
movimento de recuperação contra o
esquecimento. Não a recuperação analítica,
historiográfica de um passado, com frequência muito polarizado ideologicamente
(o colonial demonizado ou fantasiado), nem a recuperação romântica desse passado quebrado, como um certo “rei melancólico”
que procurava aquela “omelete de amoras” saboreada na infância e a quem o seu cozinheiro
alertava para o caráter irrepetível das experiências distantes e para a
impossibilidade de qualquer retorno ao passado (Benjamim, 1987: 219). Mais do
que o passado, o que se pretende é o presente, a contemporaneidade de alguém
que recupera compreendendo ou que compreende recuperando, e que, por isso, tem
a possibilidade de inscrever e re-significar.
“Subir
o Ulombe” é um jogo de forças entre memória e esquecimento. Considerando a possibilidade de mediações entre o
passado e o presente como temporalidades distintas, a subida deve apoiar-se numa rede de elementos geradores de
lembranças. As fotografias, imagens-memória, “máquinas de fazer ver e de fazer
falar”, “linhas de luz” (Deleuze, 1990:155), despertam e suscitam a recuperação e a
compreensão de elementos invisíveis ou esquecidos. São um elemento fundamental
de suporte à narrativa, que trazem coisas, pessoas, lugares e acontecimentos. Estas
“imagens-objeto” antigas, carregadas
de significação, com um “excesso de sentido” (Eliade, 1979:9) incapaz de ser
totalmente exaurido, vêm ao encontro do sujeito, re-significando elementos do
passado ao qual estão ligadas.
Nesta “subida”, que recupera e guarda a
memória de um lugar, que agora é um
“lugar de memória”, a atitude deve ser semelhante à do cronista de Benjamin “que
narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos e que leva
em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado
perdido para a história.” (Benjamin, 1994: 223)
Subo o Ulombe. Angola ficou-me na alma.
REFERÊNCIAS
*TÍTULO:
Sê como és: o sol é bom, o ar vivaz.
Do azul aos azuis, do verde aos verdes,
A terra é menina e o tempo rapaz.”
Alexandre O’Neill
No texto: foto in http://retrovisor.blogs.sapo.pt/tag/diplomacia
BIBLIOGRAFIA
Benjamim, Walter,
Obras escolhidas, Vol. II, Rua de mão única, Editora Brasiliense, São Paulo,
1987
Benjamin, Walter,
Obras escolhidas, Vol. I, Magia e técnica, arte e política, Editora Brasiliense,
São Paulo, 1994Deleuze, Gilles. O que é um dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161
Eliade, Mircea, Imagens e símbolos, Arcádia, Lisboa, 1979
Ferreira, Joaquim e Monteiro, Amílcar (1973). “Bocoio, 1973, Escalada do Morro do Ulombe”, editado pelo Clube Recreativo e Beneficente do Bocoio
Ricoeur, Paul, La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paris: Éditions du Seuil, 2000
Ricoeur, Paul, “Architecture et narrativité”
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