Falar para um candeeiro...

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Muros no mundo




São barreiras físicas que podem ser muros, cercas, faixas militarizadas de fronteira, zonas minadas do tipo no man’s land, e campos de recolhimento ou confinamento para migrantes e refugiados. Por todo o mundo existem barreiras físicas como dispositivos de política migratória e não só.

Barreiras de ordem económica: Fronteira sul dos EUA / México, Botswana / Zimbabué, Índia / Bangladesh, Emirados Árabes Unidos / Oman…

Barreiras de ordem política, securitária ou étnica: Coreia do Norte / Coreia do Sul, Índia / Paquistão (Caxemira), Uzbequistão / Tajiquistão e Quirquistão, Arábia Saudita / Iémen, Marrocos / Saara Ocidental ou Fortificações (Chipre (Turquia / Grécia), Kuwait / Iraque, EUA / Cuba (Guantanamo…

Barreiras de ordem política e económica: Espanha / Ceuta e Melila (enclaves localizados em Marrocos), Israel / Cisjordânia…

São uma espécie “jaula que fecha um grande jardim proibido, um jardim cujo dono é um vizinho que não devolve a bola quando ela cai do seu lado. Um vizinho inalcançável que isola as suas oportunidades e o seu povo."

Muitos muros no mundo... (documento)


sexta-feira, 24 de julho de 2015

Dar outro sentido

Escultura com materiais reciclados : Paulo Graça e Ptolemy Elrington


A nossa vida é feita de objetos. De centenas, de milhares de objetos. Houve tempos em que os objetos à nossa volta eram bem menos numerosos e possivelmente poderia contar-se a história de uma pessoa através dos seus objetos: onde nasceu e cresceu ou a que família, religião ou cultura pertencia.
 
Com a aceleração da produção capitalista essas particularidades dos objetos esvaziaram-se e transformam-se em pura mercadoria, um acessório para satisfazer o desejo (infinito) de consumo. Os objetos são rapidamente descartados, trocados, esquecidos e poucos são aqueles que continuamos a estimar numa rede de memórias afetivas que nos ligam a eles e que guardamos numa espécie de "baú" secreto.
 
Mas os objetos também podem ser ressignificados. Ressignificar é dar um novo sentido ao objeto, alterar o seu conceito, perceção ou interpretação original. A possibilidade de ressignificar objetos será, por certo, uma experiência estética bastante interessante, uma vez que, a partir de uma mudança ou de uma conversão do olhar, o artista produz uma recomposição da matéria, que, às suas mãos, ganha um novo sentido.
 
Significa que a arte e a capacidade de questionar ou de reinterpretar o mundo já dado, procurando nele novos significados, existem em muitos lugares, alguns dos quais muitas vezes nem nos apercebemos. Esses lugares de criação, estética ou outras, possibilitam transpor barreiras, como as que  nos impõem os próprios objetos "fechados" na sua materialidade e imediatez .
 
 
Mas a ressignificação confere ainda a abertura dos objetos a uma outra possibilidade ontológica na medida em que lhes permite sair do seu puro estado de mercadoria. Numa sociedade em que tudo é mercadoria, a produção artística consegue o efeito extraordinário de reverter a mercadorização imparável.
 
 
Pudéssemos nós dar outro sentido à mercadoria. Como a estética, pudesse a política des-mercadorizar.






segunda-feira, 20 de julho de 2015

A exaltação da virtude como propaganda

Paolo Veronese, A juventude entre a voluptas e a virtus

A liberdade humana, a possibilidade de escolher entre o bem e o mal tem sido tema de reflexão e debate político, filosófico e teológico em diferentes épocas e culturas.

Muitas vezes, a questão colocou-se de forma alegórica, através de símbolos e imagens, sendo uma dessas figuras mais comuns a representação da vida humana como resultado da escolha entre dois caminhos, o do bem e o do mal.
 
No quadro de Veronese, duas mulheres procuram arrebatar a escolha do jovem indeciso. Um Hércules, ainda jovem, está numa encruzilhada entre a Voluptas e a Virtus. Pela sua alegria e ociosidade, a voluptuosidade promete um caminho mais agradável e fácil, enquanto a virtuosidade indica uma via mais longa e difícil, repleta de privações. Na encruzilhada vital, Hércules decidiu-se pela Virtude.
 
A oposição entre as figuras femininas é claramente expressa por meio das vestes, da atitude, do comportamento físico e até do próprio olhar. O pintor representou a voluptuosidade como uma figura ornada de fios de ouro, que, sentada junto a um tecido brocado em seda e a uma coluna, olha para o jovem com ar sedutor. A figura da Virtude, de pé, com uma coroa de louros na cabeça, envolta numa espécie de manto, toca no jovem, como que agarrando-o e levando-o em passos rápidos. O jovem não volta o olhar para a Volúpia, mas segue a Virtude, submisso, quem sabe na “confirmação” de uma responsabilidade ético-religiosa.
 
Com uma clara referência moralizante, ligada à vida virtuosa, e erótica, ligada à licenciosidade, a obra enfatiza a questão do dualismo e da necessidade da escolha. O jovem deve fazer a sua escolha.
 
Para além do debate político, filosófico e teológico, a virtude é, e sempre foi, um excelente tópico de propaganda. Paulo Portas, no seu momento “Hércules na encruzilhada”, dizia ontem que “aquilo que portugueses conseguiram é um exemplo de esforço pelo bem comum” e “não deve ser desperdiçado com aventuras”. No quadro de Veronese, aquilo a que ele chama “aventureirismo” estaria naturalmente do lado da Voluptas, muito contrário à Virtude.
 
Este governo vai procurar capitalizar a exaltação das virtudes governativas, como no passado os reis exaltavam as suas virtudes régias, como protótipos de cavaleiros cristãos, armado de todas as virtudes. É preciso proteger a confiança”, “garantir que há responsabilidade” num “país soberano há nove séculos”, diz Paulo Portas.
 
E claro, a virtude esconde-se na dificuldade. Cortaram-lhe o salário ou a reforma? Ficou desempregado? Perdeu a casa? Teve a imensa sorte de ter sido governado pelo virtuosismo das pessoas certas.
 
 
 
 
 


 

domingo, 19 de julho de 2015

O lugar de vítima apenas faz reconhecer essa condição

Edouard Debat-Ponsan, “Uma manhã fora das portas do Louvre” (1800).
A rainha de França, Catarina de Medici, passando calmamente entre as vítimas de 1572,
o Dia do Massacre de S. Bartolomeu
 
 
 
“Os alemães e os seus acólitos tinham um programa de humilhação, com um acordo que foi afinal escrito pelo Syriza a branco, para eles o reescreverem a preto. O acordo com a Grécia, na realidade um diktat, só tem uma lógica: obrigar os gregos a engolir tudo o disseram que não desejavam.” (Público, Pacheco Pereira, aqui)
 
 
Participei com um artigo para um livro, recentemente publicado, intitulado “De Pé, Ó Vítimas da Dívida!” (com a edição do Le Monde Diplomatique deste mês, leitura que naturalmente recomendo). Como já tive oportunidade de dizer, só concordo com parte do título: “De pé”. Com a outra metade, a das “vítimas”, tenho algum desacordo, embora bastante mitigado pela referência explícita ao velho hino.
 
E estou em desacordo por razões muito parecidas com aquelas que sinto quando leio  palavras como as de Pacheco Pereira, ou outras que tais, palavras aparentemente pró-Grécia e que se abatem com toda a força contra os “alemães e os seus acólitos”.
 
Pois bem, considero que, num certo sentido, se abatem ainda mais violentamente contra os próprios gregos, uma vez que esse mesmo discurso os reduz à maior das impotências: à condição de humilhados, de expropriados, numa palavra à condição de vítimas. Os pobres gregos!
Não estou a dizer que não que não existiu a intenção de humilhação da Alemanha, porque essa intenção existiu. Estou antes a dizer que a capacidade política de enfrentar e rejeitar qualquer tentativa de humilhação, requer que a “vítima” não aceite colocar-se justamente no papel (de humilhado) que o agressor lhes reservou.
 
Ser vítima consiste precisamente na maior expropriação política. Uma vítima não se pode constituir como sujeito político. Tudo aquilo que uma vítima faz, enquanto tal, é pedir proteção ou a clemência do (e ao) seu agressor. Não há nada mais penoso, não há nada que roube mais a potência de agir do que isto. A fala da vítima não se ouve, “não as ouvimos enquanto elas forem apenas  tomadas na condição dos que “não são contados”: um pobre fala pobre, um imigrante fala imigrante, ele apenas faz reconhecer a sua condição. Espera-se que as vítimas se manifestem como vítimas, que os pobres se manifestem como pobres.” (Ranciére, “O filósofo da partilha”, Entrevista à Revista Ípsilon (06/04/2007), p. 28)
 

Gayatri Spivak colocou esta questão em termos certeiros: “pode o subalterno falar?” Num ensaio com o mesmo nome, Spivak refira-se a uma subalternidade específica: a mulher pobre negra, e nessa condição, uma subalternidade triplamente implicada na pobreza, porque mulher, porque pobre e porque negra. Segundo ela, entre os diferentes lugares de fala ocupados pelo sujeito, a figura da mulher, pobre e negra, “desaparece”. O subalterno não pode falar. A condição de vítima, na sua impotência, é a de uma subalternidade política.

 
 
 
 

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Os pastores da (minha) Arcádia

Nicolas Poussin, Os pastores da Arcádia (1637-1638)
Numa paisagem tranquila, iluminada pela luz quente da manhã, uma mulher e três pastores com os seus cajados e coroas florais na cabeça estão diante de uma austera pedra tumular, que encontraram isolada junto a umas árvores. No céu veem-se nuvens e no horizonte perfila-se uma cadeia de montanhas. Toda a calma daquela paisagem reflete uma relação do homem com a natureza em estado de harmonia.
 
Um dos pastores tenta decifrar a inscrição contida na lápide, enquanto outro, que segura um cajado na mão direita, olha para a mulher, apontando-lhe essa inscrição. O terceiro pastor, de pé, com a mão esquerda sobre  a pedra tumular, permanece silencioso. A mulher, que pousa a mão direita no ombro de um dos pastores, mostra-se expectante, com os olhos fixos naquele que decifra a inscrição.
Na lápide pode ler-se “Et in Arcadia ego”. A frase em latim diz-nos, numa tradução livre: “eu estive na Arcádia, o nome de uma província da antiga Grécia.
 
O confronto com a irreversibilidade da nossa principal limitação, a finitude da condição mortal do homem, aparece então diante dos nossos olhos quando observamos aqueles “pastores da Arcádia” que descobriram o túmulo.
 
O sentido da frase na lápide do túmulo é muito discutível. Talvez aí se perceba como os gregos e a sua cultura influenciaram o pensamento artístico e filosófico de Poussin, o autor do quadro, e dos seus contemporâneos. Talvez seja uma frase que muitos de nós gostaríamos de ter no túmulo. Conhecer o berço das antigas civilizações, lugares de culturas, onde o velho e o novo se misturam e onde encontramos as diferentes culturas dos povos que guardam o tesouro que é o saber humano.
 
Mas exatamente hoje, numa tradução ainda mais livre daquela frase naquele túmulo, quero pensar que todos nós estivemos na Arcádia, enquanto a nossa própria origem e berço. Da minha Arcádia, junto ao eterno Ulombe fará sempre parte a minha querida tia Deolinda, que agora partiu mas que ficará na minha memória, como alguém que conheço desde a minha própria origem.
 
Até sempre.





quinta-feira, 9 de julho de 2015

O jovem Cristo e os doutores do templo: entre Lucas e Dürer

Cristo entre os doutores, Albrecht Dürer (1506)

“Como não conseguiam encontrá-Lo, retornaram a Jerusalém para procurá-lo. Após três dias encontraram-n’O no templo, sentado entre os doutores, ouvindo-os e fazendo-lhes perguntas. Todos os que o ouviam ficavam maravilhados com a Sua inteligência e as Suas respostas.” (Lucas, 2:45-47)

 
O quadro de Albrecht  Dürer não representa o Templo, onde decorre a ação referida em Lucas, mas antes parece apresentar-nos uma aproximação (zoom) aos rostos das personagens aí retratadas.
 
Embora se trate de uma composição repleta do colorido tipicamente renascentista (Albrecht Dürer, (Nuremberga, 1471/1528), é considerado o mais destacado artista do Renascimento alemão), o ambiente representado é de uma tensa obscuridade. A deformidade dos rostos dos doutores sugere até uma certa proximidade com uma estética do grotesco (que também podemos ver noutros quadros seus, como em “Avareza”).
 
O ar que se respira é opressivo e nada ali parece ter vida: as personagens não conversam uns com os outros e mesmo os livros parecem indicar uma erudição tão arrogante quanto vazia, própria das Leis feitas pelos homens. Aquele enxame de doutores forma uma massa de anciãos quase a esmagar a inocência de Jesus, ao centro, cuja beleza simples, mas de olhar evasivo, contrasta com a face desconfiada e malévola, quase diabólica dos doutores.
 
Ao contrário da descrição de Lucas, Dürer na sua obra não nos faz ver o diálogo que maravilhou quantos o ouviam. Ali nem ninguém ouve nem faz perguntas. Mas talvez dessa forma o pintor se aproxime mais do sentido das palavras do evangelista, acabando por mostrar a verdadeira natureza da incomunicabilidade daquele “diálogo”, que não passa de um desencontro. As tortuosas cabeças dos doutores estão cheias de uma sabedoria baseada naqueles livros pesados e austeros, alguns deles ali exibidos abertos, e o complicado reino onde tanto cogitam e decidem nada diz a quem vive fora daquele mundo fechado.
 
Não há comunicação. As mãos que, ainda assim, se chegam a tocar apenas vislumbram um gesto de contacto muito ténue entre interlocutores que não se olham.
 
O diálogo é uma ilusão, como a sabedoria dos doutores.
 
 
 
 
 

quarta-feira, 8 de julho de 2015

"Aos ombros de anões”: ainda a Grécia

 
 
Compreendo perfeitamente aquela célebre imagem atribuída ao mestre Bernardo de Chartres (Século XIII), que dizia serem os homens do seu tempo como anões aos ombros de gigantes, pois podiam ver mais longe do que os antigos sábios gregos e romanos, não por seu próprio mérito mas pela vantagem de poderem apoiar-se nos conhecimentos daqueles que os precederam em séculos.
 
«Somos como anões aos ombros de gigantes, pois podemos ver mais coisas do que eles e mais distantes, não devido à acuidade da nossa vista ou à altura do nosso corpo, mas porque somos mantidos e elevados pela estatura de gigantes
 
A distinção entre anões e gigantes pode, por vezes, ser uma idealização positiva do passado, mas a lógica permanece válida: os homens do saber que nos precederam ajudam a formar o nosso conhecimento.
 
O pior é quando os supostos “gigantes” não passam de anões, convencidos da sua grande estatura. A Europa empoleirou-se aos ombros de anões.
 
 
 
 
 
 


terça-feira, 7 de julho de 2015

O dedo de Platão e a mão de Aristóteles


Rafael, no fresco “Escola de Atenas”, representou Platão com o seu livro Timeu numa das mãos e Aristóteles segurando o seu livro da Ética. Ambos caminham solenemente pelo meio do pórtico.
 
Pois bem, toda a discussão que vale a pena ter, tem o dedo de Platão, que aponta “para cima”, isto é, para os princípios gerais e para os conceitos – concetualizar; Mas tem também a mão de Aristóteles que aponta “para baixo”, para a realidade terrena – contextualização.
 
Por vezes é totalmente improdutivo, senão mesmo cansativo, discutir: falta a mão de Aristóteles ou o dedo de Platão. Sobretudo este último, diria.

Rafael, detalhe de Escola de Atenas (1509), Vaticano





Tudo é provisório, o amor, a arte, o planeta Terra, vocês, eu, sobretudo eu.




 “A Lagarta e Alice olharam-se durante algum tempo em silêncio. Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca falando-lhe numa voz lânguida e sonolenta:
- Quem és tu?- perguntou a Lagarta.
Esta não era, certamente, a melhor maneira de iniciar uma conversa. Alice respondeu envergonhada:
- Presentemente nem eu sei muito bem quem sou... Hoje de manhã, quando me levantei, sabia muito bem quem era, mas desde então tenho sofrido várias transformações.
- O que queres dizer com isso? Explica-te – exigiu a Lagarta muito séria.
- Eu não me posso explicar porque, está a ver, eu não sou eu.
Não, não posso ver - replicou a Lagarta.
- Receio não poder explicar melhor.”
 
Nesta passagem de Alice no país das maravilhas, Lewis Carroll remete para uma questão fundamental: a construção do sujeito e a quantidade de vezes que mudam os modos de ser desse sujeito.
 
A construção da subjetividade está entrelaçada numa rede de relações (familiares, profissionais, sociais), de práticas discursivas e de outras materialidades que fazem parte das coisas para “se estar no mundo” e que atravessam o visível e o simbólico (como os meios de comunicação social, a ciência, a arte, os artefactos  com todo o tipo de objetos), produzindo efeitos de verdade ou de normalidade
 
A partir do momento em que se classifica um tipo de sujeito como ´normal´, elege-se apenas um tipo de subjetivação, num efeito de generalização e de naturalização. Desta forma, aquilo que é resultado de uma produção, tende a ser essencializado, cristalizado, submetendo todos à normalização. Aquilo que escapa a este efeito é o ´diferente´, é o ´outro´.
 
Mas a ‘diferença’ tem que ser integrada na ordem ‘normal’. É importante problematizar como se constitui o sujeito no interior de um jogo de materialidades para poder “estranhar” os efeitos produzidos na fabricação dos sujeitos, que se tecem em práticas imersas em relações de saber-poder.
 
“Alice pegou no leque e nas luvas e, como estava muito calor abanou-se enquanto dizia:
- Meu Deus, meu Deus! Como tudo hoje é estranho! Ontem, tudo parecia normal. Será que sofri alguma transformação durante a noite? Deixa-me ver… Será que era a mesma quando me levantei de manhã? Acho que já me sentia um pouco diferente. Mas, se não sou a mesma, quem diabo sou? Ah, aí é que está o grande problema…”
  
A luta de  todos nós é como esta estranha luta de Alice: a de continuar a desvendar o grande mistério que envolve o modo como cada um de nós é produzido.