Falar para um candeeiro...

quinta-feira, 30 de abril de 2015

O Estado que sufoca um véu sufocante


França: muçulmana proibida de ir à escola por “insistir” na sua saia comprida (aqui)
 

É difícil suportar a prepotência do estado que limita a liberdade dos cidadãos. Nunca compreendi, por exemplo, por que razão sou obrigada a conduzir com cinto de segurança, como compreendo perfeitamente por que razão não posso ultrapassar determinados limites de velocidade ou conduzir sob o efeito de álcool.

Mas é igualmente difícil suportar a misoginia (é esta a palavra), o ódio ao feminino que, de forma mais explícita ou mais latente, está presente nas religiões, como o islão ou o cristianismo. E até por isso fico infinitamente satisfeita por viver numa sociedade laica. Felizmente que a Europa libertou-me das obrigatoriedades do cristianismo ou teria que dar aulas numa sala de aulas com um crucifixo ou outros símbolos religiosos.

Na minha corrida matinal, habitualmente encontro uma jovem que faz exercício com um véu que lhe tapa a cabeça e grande parte do corpo. Com o natural aumento da temperatura do corpo e a transpiração durante o exercício, não consigo sequer imaginar o desconforto físico que aquele “equipamento” lhe proporciona. Deve ser uma tortura…

Atalhando discussões sobre o objetivismo versus subjetivismo cultural, a jovem muçulmana de que fala a notícia foi impedida de entrar na sua escola por "insistir na saia comprida", como podia ser no famigerado véu islâmico. Não escolheu, foi impedida. O estado de forma prepotente limitou-lhe a liberdade. 

Mas pergunto se aquela jovem que diariamente encontro, teve a liberdade de escolher fazer exercício físico com um sufocante véu.










A vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos

William Hogarth



Por definição, a vida de todos os dias acontece… todos os dias. Sem sobressalto e sem história, como se vida quotidiana e história fossem irreconciliáveis.

De facto, não é fácil transformar a quotidianeidade familiar em algo exterior, não é fácil o “estranhamento” da realidade aparentemente tão familiar, tão pouco “exótica”, não é fácil converter a lenta vida quotidiana em permanente surpresa. No fundo, o quotidiano é “o que no dia-a-dia se passa quando nada se pa­rece passar”.

Um mestre zen pediu uma vez a um discípulo que desenhasse à mão um círculo, o mais perfeito possível. O discípulo desenhou então uma desajeitada figura que mais parecia um ovo, embora merecendo largos elogios do mestre, que lhe disse: “Não será um círculo perfeito; contudo é uma outra qualquer figura perfeita.” As criações do quotidiano são como aquele ovo, uma forma rigorosa e perfeita mas de uma outra coisa qualquer, de algo a que ninguém nunca deu um nome.

Apanhar a realidade fugaz do quotidiano, do que não é grandioso ou essencial é rasar uma superfície num voo baixo e minucioso, como William Hogarth no século XVIII que pintava tabernas, cenas banais da vida quotidiana. Retratava temas de “género inferior”, modelos humanos, plebeus a frequentarem tabernas, em vez das belas figuras delicadas que representavam acontecimentos e personagens da Bíblia. Ou como Caravaggio no século XVII que não recusava sequer a feiura ou a deformidade dos modelos humanos.

Na verdade, o quotidiano está cheio de vida, de histórias, de lugares, práticas, normas, regras, hábitos, encontros e desencontros, pequenas fúrias e breves alegrias. Tudo faz parte do quotidiano, como as conversas sobre o tempo ou a ida “ao pão” pela manhã cumprimentando o vizinho com um bom dia sem saber por que razão lhe perguntar “como está?” se responderá sempre “bem, obrigado”.

O dia de hoje, em que não está calor nem está frio, em que não há precipitação ou vento forte, nem agitação marítima, nem alertas “laranjas ou vermelhos” e em que nada de grandioso se prepara para acontecer, é exatamente como quase todos os dias da nossa existência. Dias únicos e irrepetíveis, por onde, lembrando John Lennon, decorre a vida, “aquilo que acontece enquanto fazemos planos”.  










terça-feira, 28 de abril de 2015

"Lavores femininos"



Largo D. Estefânia (Lisboa, 26 de abril) e Tela das Arpilleras da Resistência Política Chilena



A enunciação pública está aberta a todas as formas de “micro-resistências”, todo o indivíduo é potencialmente um sujeito político. Quaisquer pessoas que transmitam em público – de formas muito distintas e com graus de institucionalização muito variáveis – as suas reações aos danos que sofrem diretamente ou que percebem haver no conjunto da sociedade a que pertencem, são sujeitos políticos, são sujeitos que procuram intervir na “partilha” do mundo sensível em que vivem as suas experiências quotidianas.

A competência política não é conferida por meio de títulos, cargos, mandatos ou outras distinções de estatuto. A política está sempre aberta à enunciação pública do “povo”, que seja capaz de instaurar o dissenso, de nomear, à sua forma, o dano.

A “exposição do dano”, como ato político, pode assumir diferentes formas de micro-resistências no quotidiano, como a das Arpilleras da Resistência Política Chilena, as mulheres que “bordavam telas com as roupas dos seus parentes desaparecidos no regime ditatorial”(aqui) ou como o crescente recurso ao crochet e tricot , que tenho visto em lugares públicos.

Talvez seja curioso que o ato de bordar, tricotar ou fazer crochet, provavelmente o exemplo mais acabado das formas de  domesticação feminina, possa ser um ato transgressor,  uma certa forma na qual o invisível passa a ser visto e o ruído indistinto torna-se discurso convocatório.