Heidi Malott, Manhã de Natal
Lembro-me do Natal no Bocoio
em que ninguém comprava o pinheiro nem os doces de Natal. E mesmo os
presentes, que naturalmente seriam comprados, apenas representavam uma forma de
celebrar a infância.
Todos os anos, uma enorme árvore de Natal era cortada
de um dos pinheiros que existiam ali para os lados do Sr. Campinos. Muito maior
do que eu, a árvore, depositada dentro de um grande vaso, era colocada num
canto da sala de jantar, onde acabava decorada com enfeites natalícios, que
ficavam guardados de uns anos para os outros numas caixas próprias. Depois de instalada
a árvore, não tardava muito a que toda a sala, a que toda a casa, a que todos
aqueles dias ficassem a cheirar e a saber a Natal.
Até os flocos de algodão distribuídos sobre o verde da árvore, que simulavam a neve de um norte
longínquo e totalmente desconhecido, e onde certamente fazia muito frio, eram
elementos que compunham aquela festa.
Era um Natal não apenas num “sul metafórico” mas num sul
real, que não corresponde apenas a um sul geográfico, mas que caracterizava uma
parcela da humanidade do “outro lado do mundo”. Ainda hoje, basta olhar para os
postais para se desconfiar que no “verdadeiro” Natal devem existir trenós e muita neve.
Ainda que me escapasse por completo a visão que separa
o sagrado e profano e me fosse completamente alheia a ligação com o mundo
religioso, tinha ideia de que havia algo de profundamente sagrado naquelas
festas de Natal. Embora vagamente, sabia que se tratava do “nascimento do menino
Jesus”, que o presépio reatualizava e vinha relembrar, e que, por isso, se devia
celebrar a infância, que os presentes apenas vinham consagrar. No Natal, recebia
presentes porque era criança. E,
pensava eu, todas as crianças do mundo, numa espécie de lei natural da
causalidade, também receberiam os seus presentes.
De facto, o Natal era uma verdadeira festa no sentido
mais profundo de reconciliação do ser humano com o todo, uma espécie de intimidade
com o divino, fosse ele o menino Jesus ou outra entidade qualquer. Porque recebia
presentes ou porque excecionalmente jantava na sala com toda a família, sentia
que na festa de Natal a experiência humana era suscetível de ser transfigurada
e vivida num outro plano. Sabia que a
festa de Natal surgia como uma “interrupção”, como uma suspensão temporária das
atividades diárias, daquilo que se fazia todos os dias no quotidiano.
Agora a memória daqueles Natais, onde não havia pai
natal mas menino jesus, onde não havia inverno mas verão, constituem esta
espécie de imaginário “primordial” em que os meus olhos de criança viam o Natal,
insubmissos às forças que atualmente o organizam de uma forma demasiado consumista.
Hoje esta é quase uma “epistemologia
do sul”, uma poética de memórias do Natal contrárias ao que determinam as
forças hegemónicas, submersas na profunda realidade de um imenso mercado.
Seriam apenas os meus olhos de criança?