Falar para um candeeiro...

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

"Morte aos Traidores!": da coragem e da estupidez



Os banqueiros já disseram as maiores alarvidades, como no PREC também se disseram. Foram ditas porque era possível dizê-las. Não é o caso da frase "Morte aos Traidores!". Esta frase está fora do ‘regime do discurso’, fora daquilo que é possível dizer, mesmo que a Comissão Nacional de Eleições venha dizer que a frase não constituiu qualquer tipo de crime, entendendo tratar-se de uma "metáfora".

Cada sociedade tem o seu regime de verdade, a sua “política geral” de verdade”. Esse ‘regime’ é constituído por aquilo que é possível “ver” (‘regime de visibilidade’) e aquilo que é possível “dizer” (‘regime de dizibilidade’ ou 'regime do discurso'). A ‘verdade’ de cada regime não é propriamente o conjunto dos enunciados verdadeiros, mas é sobretudo o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro e o falso, no sentido daquilo que se pode e não se pode dizer. 
Assim, o 'regime de verdade' é constituído por esses discursos que funcionam como verdadeiros, mas também pelas técnicas para a obtenção dessa verdade e pela definição de um estatuto próprio daqueles que produzem e definem a verdade.

Considero o enunciado "Morte aos traidores!" particularmente infeliz, mas não estou a tecer qualquer consideração normativa sobre esse enunciado. Isto é, não estou a dizer se ele devia ou não ser dito. Estou a dizer que, simplesmente, não pode ser dito, pois o conjunto de regras que determinam aquilo que em cada momento podemos dizer não o permite (e por essa razão a frase foi retirada pelo MRPP). (aqui)

E dizer o que não se pode é um ato de enorme coragem. E a coragem é uma virtude rara. Que pena ser desperdiçada numa frase tão infeliz, que fala de "morte", de "traidores" e até dos bafientos "patriotas". 






sábado, 19 de setembro de 2015

Agências de “rating”: a realidade será o que disserem que ela é

Ernest Normand, Pygmalion and Galatea (1886)

As taxas de juro refletem a perceção de risco dos investidores do mercado e as agências de classificação de risco de crédito (agências de rating) expressam opiniões relativas à qualidade de crédito, que determinará essa taxa de juro. E para expressar opiniões é preciso avaliar.

Um título financeiro é um direito sobre rendimentos futuros e para o avaliar é necessário prever o que será o futuro. Assim, o preço de um ativo financeiro resulta de uma avaliação, que representa uma crença sobre o que determinados operadores pensam que será o futuro. Ora, pelo facto de expressarem essa "crença, as coisas podem vir a ser o que esses operadores, sentados algures numa sala do "mercado", disseram que elas seriam.

Por exemplo, numa situação de ataque especulativo, os níveis de juros podem começar a ser considerados incomportáveis e a desconfiança sobre a capacidade de pagamento instala-se, gerando um “efeito de Pigmalião”, tornando-se uma profecia auto-realizada. O Estado, deixa, de facto, de consegui pagar perante a exigência de  juros cada vez mais altos. 

Foi precisamente isso que aconteceu em Portugal em abril de 2011, pois foi a subida nos juros da dívida pública nos mercados secundários a razão invocada pelo governo para a necessidade de financiamento da tróica.

Em vésperas de eleições, a Standard & Poor's diz o que as coisas podem vir a ser (aqui). 
É esse o infinito poder das agências de rating, o de dizer como a realidade será.




quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O “mundo não binário” de Judith Butler



“Alice pegou no leque e nas luvas e, como estava muito calor abanou-se enquanto dizia:
- Meu Deus, meu Deus! Como tudo hoje é estranho! Ontem, tudo parecia normal. Será que sofri alguma transformação durante a noite? Deixa-me ver… Será que era a mesma quando me levantei de manhã? Acho que já me sentia um pouco diferente. Mas, se não sou a mesma, quem diabo sou? Ah, aí é que está o grande problema…”
Lewis Carroll, Alice no país das maravilhas
  

A luta do sujeito é um pouco como esta estranha luta de Alice: a de desvendar o grande mistério que envolve o modo como cada um de nós é produzido, o modo como se constituem formas de ver, de sentir e de estar no mundo?

A subjetividade, desde Platão à Modernidade, tem sido vista como sendo constituída por “essências” ou “linhas duras” (“molares”), que organizam as grandes divisões binárias: homens versus mulheres, brancos versus negros, heterossexuais versus homossexuais, crianças versus adultos, europeus versus africanos, etc.

Mas essas divisões apresentam todas o mesmo problema: supõem precisamente aquilo que é preciso explicar. E o que é preciso explicar é por que razão se dá como adquirido que milhões de homens, de mulheres, de heterossexuais, de homossexuais, etc., sejam todos iguais entre si e sejam todos diferentes em relação aos outros.

As linhas duras são modos hegemónicos de ser, com base em formações binarizadas muito endurecidas ou sobrecodificadas. E por isso funcionam como dispositivos de captura e controlo da subjetividade.


O que é verdadeiramente extraordinário no pensamento de Judith Butler, que a coloca numa  “galáxia” muito seleta é precisamente a capacidade de pensar um “mundo não binário” (aqui).




quarta-feira, 16 de setembro de 2015

“Chegou o frio, acabou a seca dos figos…”: eram assim as cartas da minha avó


(...)

Na minha rua existia um marco de correio que foi retirado há uns três ou quatro anos. Por vezes desperta-me uma certa melancolia quando calha deparar-me com aquele espaço vazio. Ainda hoje acontece lembrar-me do velho marco de correio. Era daqueles vermelhos, lindíssimos.
Mas a verdade é que já quase ninguém escreve cartas. Eu também não. Hoje estamos permanentemente em comunicação online, a clicar e a postar como quem respira, sem tempo de espera e sem silêncios, num estado físico e mental onde só existe o presente, sempre prolongado.
Nas cartas havia uma suspensão do tempo, de um tempo que não podia ser imediatamente ocupado senão “na volta do correio”. Havia uma espera e um silêncio. E mesmo as palavras, pareciam-me serem outras. Falavam de uma forma quase palpável da banalidade  quotidiana.

Remexendo em papéis, chegaram-me às mãos cartas da minha avó, que costumava escrever para mim e para a minha irmã. As “Minhas queridas”, a quem se dirigia, éramos nós as duas. Hoje, estas cartas já não são aquelas que lia em tempos, quando havia ainda muitos marcos de correio espalhados por aí. São uma outra coisa.

A sua letra vem / A tremer-lhe nos dedos:

“Eu vou indo como Deus quer…”
“Chegou o frio, acabou a seca dos figos…”
“Agora faço os preparativos para a viagem, sinto-me com pouca coragem…”

No tempo em que lia estas palavras, estava muito longe de ali sentir a “tal pureza e o tal brilho” de que falava Miguel Torga no seu poema "Correio". Um poema lindíssimo, mesmo a condizer com os velhos marcos de correio. Hoje, sim, estas cartas já me dizem outras coisas. Revelam agora claramente a sua essência, mostram-me a sua natureza sagrada.


Correio
Carta de minha Mãe.
Quando já nenhum Proust sabe mais enredos,
A sua letra vem
A tremer-lhe nos dedos.
- «Filho» …
E o que a seguir se lê
É de uma tal pureza e de um tal brilho,
Que até da minha escuridão se vê.

Miguel Torga, 1941






Lehman Brothers: a queda de uma “maçã”



Há notícias que vale a pena guardar como aquela onde pode ler-se que a “trajetória do ajustamento, indissociável da trajetória da dívida”, está “para além das decisões dos políticos”, pois "a sustentabilidade sobre a dívida pública e a dívida externa significa que não há opções políticas para discutir". Foi o Governador do Banco de Portugal que disse (aqui).

“Não há opções políticas para discutir”!

O discurso do Governador cria um espaço apolítico, colocando a dívida numa ordem neutra e desinteressada, exatamente como a Natureza a seguir o seu inexorável caminho.

O Governador também já nos tinha dito que essa mesma Natureza é assim como uma espécie de uma grande “sapataria na Rua Augusta”, que “não calça todos os descalços que lhe passam à frente da porta, só aqueles que podem pagar”. Queria ele dizer que um banco “também só dá crédito a quem tem possibilidade de reembolsar”. (Aqui: “O mundo, essa grande sapataria”)


Para o Governador do BdP, as decisões sobre a dívida (e outras) não são, portanto, baseadas em escolhas políticas. Na verdade não são sequer escolhas, mas forças que agem deterministicamente sobre a realidade. A dívida é uma catástrofe natural.

Deve ter sido a mesma força determinista, a mesma lei da gravidade que causou, precisamente há sete anos, a queda de uma “maçã”  chamada Lehman Brothers

Olha se caísse na cabeça do Newton!






segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Um tal Sankara

Thomas Sankara

Em 1987 na tribuna da 25ª Cimeira da Organização da Unidade Africana, Thomas Sankara, presidente do Burkina Faso, um pobre e minúsculo país africano, profere o mais vibrante e o mais corajoso discurso sobre a dívida.

O acontecimento sankariano inscreve a dívida numa outra zona de forças, causando um deslocamento de sentido da própria dívida. As suas palavras provocam um efeito de tensão. Naquele discurso (não me estou a pronunciar sobre a sua atuação geral como político), ele foi um enunciador da verdade, que confrontou o poder. Manifestou a sua palavra com risco, porque ele era muito menos poderoso do que aqueles a quem dirigiu a sua fala, o ele que dizia vinha “de baixo” e dirigia-se a alguém que está “em cima”.

Três meses depois Sankara seria assassinado.

Como um “parésico”, Thomas Sankara não é um profeta, não é um sábio, nem é um técnico. Não fala em nome de Deus, da sabedoria ou da técnica. Diz em nome de um ethos, da sua relação com a verdade. A parrésia é um tipo de atividade discursiva na qual aquele que enuncia tem uma relação específica com a verdade.

Ninguém exige esta coragem, muito menos este risco aos candidatos que agora vão entrar em campanha. Da maior parte deles já nem se espera aliás que digam a verdade. Sem expectativas, vou ouvir o que dizem sobre a dívida...


Nota: "Parrésia" etimologicamente significa “dizer tudo” (“pan”, todo) e “discurso” (“rhésis”) e quer dizer “franqueza”, “coragem de dizer a verdade”, “falar livremente”.
O tema da parrésia (parrhēsía, palavra original: παρρησία) aparece pela primeira vez nas Suplicantes (Eurípides, ca. 480 a.C. - 406 a.C.), sendo um tema presente em vários autores do mundo grego. 

Mais sobre a parrésia aqui: "O dizer verdadeiro: Casy ainda mora aqui?"






terça-feira, 8 de setembro de 2015

"Afinal, o que é que você quer?"

Max Scheler, Bruxelas, 1958


Com a nossa imaginação política presa à Modernidade Liberal (assente nas noções de indivíduo,  razão,  ciência, técnica…), é muito difícil fugirmos do consenso que tem dominado todo o pensamento e toda a linguagem.

Clarice Lispector dizia que “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” Mas como dizer o que ainda não tem nome? Se o tentarmos dizer, ficamos na situação algo histérica de produzirmos um discurso de insatisfação exatamente na mesma linguagem que produz o consenso. É o que acontece, por exemplo, quando tentamos compreender a dívida, que fala apenas a linguagem do credor.

Por isso, como diz Žižek (aqui), é preciso “não nos deixarmos distrair pela pergunta “Mas o que vocês querem?”. Porque essa é a pergunta da autoridade masculina a interrogar a mulher histérica: “Você só reclama! Tem alguma ideia do que realmente quer?”  Mas a pergunta do “chefe” (“o que é que você quer?”) esconde o sub-texto: “Diga-me numa língua que eu entenda ou cale-se!” .


Pois é! Mas a (única) língua que ele entende é a dele. E é por isso "aquilo que eu desejo não tem nome".





sexta-feira, 4 de setembro de 2015

Joana Amaral Dias, a que “não se vende” e “Cristina”, a rainha do negócio


Como levar a sério o slogan “Eu não me vendo” dito por alguém que surge na capa da Revista “Cristina”, cuja diretora, rainha da TVI, se transformou ela própria num negócio altamente lucrativo (aqui) que vende tudo e mais alguma coisa?

Como levar a sério alguém que, tendo a possibilidade de acesso à imprensa, usa essa prerrogativa na promoção da espetacularização vazia da política? É a própria Cristina, a dona da revista, que apresenta Joana Amaral Dias na qualidade de “ex-deputada e líder do movimento Agir – pelo qual se candidata às eleições legislativas, no dia 4 de Outubro” (aqui).  É, portanto, na qualidade de estar ligado à política que alguém posa para esta fotografia.

Como levar a sério alguém que considera que ser notícia e ter visibilidade e fama são critérios para os eleitores decidirem o seu voto? Sabemos que em muitos casos, são estes mesmo os critérios de alguns eleitores. A questão aqui é quando é o próprio candidato a deputado que leva em consideração esses critérios.

Como levar a sério este assentimento ao culto da beleza quando essa caraterística pessoal é, supostamente, irrelevante no debate político? De resto, esta mentalidade é a mesma que estupidamente chama “velha” ou “feia” a figuras como Manuela Ferreira Leite.

Como levar a sério alguém que ao despir-se para chamar a atenção, capitaliza o famigerado (e machista) “estado de graça” feminino da gravidez, que nenhum homem se atreverá a questionar? Muitas mulheres, algumas até que não suportam o machismo, adoram aquele “avé Maria cheia de graça” de quem se sente o ventre do mundo.

Por último, a fotografia podia, enfim, primar pelo bom gosto. Mas nem isso! Já que a beleza é assim tão importante, podiam usar o photoshop também retocar as mãos da JAD que parece ter 70 anos; já ele está demasiado besuntado de óleo e, como não foi submetido ao mesmo nu integral que normalmente submetem as mulheres, como neste mesmo caso, alguém se esqueceu de lhe avisar que deveria ter tirado a carteira no bolso das calças. Lá se vai o artístico.

Para que fique claro, o problema aqui obviamente não é a nudez, que o falso moralismo tanto gosta de criticar. Era bom que o problema fosse esse, mas não é. A nudez em si  não é mais do que a simples e natural condição em que todos viemos ao mundo.
E muito menos se trata aqui de um problema de liberdade individual. A Joana Amaral Dias tem todo o direito de aparecer nua onde quiser. Como não me atinge o “atentado ao pudor”, por mim podia até aparecer no estado em que veio ao mundo no Castelo de S. Jorge. A Cristina Ferreira também pode editar as revistas que quiser, porque eu não serei obrigada a lê-las e o senhor da fotografia até pode aparecer de carteira enfiada no bolso, que o problema também não é de natureza estética.

Para além de todas as questões já referidas, o problema, ou melhor aquilo que começo a não conseguir entender, é o facto da líder de uma coligação ameaçar fazer da sua gravidez o facto político relevante da temporada, facto que, calculo, não será de fácil conciliação com o programa político dos outros partidos que integram a coligação, especialmente no caso de um partido revolucionário.

Depois da pompa de uma conferência de imprensa para anunciar as limitações de saúde devido à gravidez e depois de posar nua para a revista “Cristina” exibindo essa mesma gravidez, quais serão os próximos episódios? Uma cegonha aterrar em São Bento no dia 4 de outubro em direto para o programa do Goucha na TVI?