Falar para um candeeiro...

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

10 perguntas e 10 respostas para compreender a dívida

"A dívida está a servir para destruir países. O nosso é um deles. Destruir emprego, destruir o direito universal à saúde, à educação, à cultura, a pensões dignas. Todos os compromissos estão a ser rasgados. Invioláveis só os direitos dos credores. Compreender a dívida, conhecê-la, é o primeiro passo para a vencer.
Sobre a dívida há muitas perguntas, algumas delas sem resposta. Aqui estão dez perguntas muitos frequentes e dez respostas para difundir e debater."

Ler documento em baixo ou aqui. 
 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

No princípio era a dívida

David Graeber, Dívida: os primeiros 5000 anos


O livro Dívida: os primeirs 5000 anos de David Graeber é uma obra fundamental para compreender a dívida, uma longa história com milhares de anos.
Aqui fica a minha leitura-resumo deste livro imprescindível que nos apresenta uma "versão da história" muito diferente daquele que circula por ai todos os dias.
 
 
A dívida baseia-se no poder absoluto da riqueza: é a acumulação de excedentes, nascida da desigualdade e da propriedade, que permite que uns tenham o que falta aos outros. A dívida é por isso também um modo de submissão: gerava a escravidão dos devedores faltosos, que perdiam as suas terras e a li­berdade para o seu novo senhor.
 
O antropólogo David Graeber conta a história da dívida, que começou há 5000 anos. Este autor coloca a economia da dívida como fundamento para a compreensão da economia global, senão mesmo da história em geral, a partir da qual entendemos a vida moderna. Nessa economia da dívida, o seu registo permitiu a extensão dos mercados, muito tempo antes do início de circulação da moeda cunhada. A moeda corrente era a dívida.

Considera que existe algo na natureza quantitativa da dívida, isto é, no modo como conseguiu “despersonalizar” as relações sociais humanas, que a torna numa força absolutamente poderosa na civilização. A dívida, como a conhecemos, resultou da capacidade de transformar obrigações morais em números, e, seguidamente, do poder de usar esses números para justificar atos (violentos) que não poderiam ser justificados moralmente de outra maneira. E nada disto tem a ver com um comportamento natural de mercado.


Hoje aquilo que o FMI faz com os países do Sul Global é apenas uma versão moderna de uma história bem antiga: credores e governos afirmam que existe uma crise e que os devedores, obviamente, têm que pagar suas dívidas.

A “tábua rasa” mesopotâmica, os jubileus bíblicos e as leis medievais contra a usura no Islão e no Cristianismo evitavam que os mais pobres caissem na servidão e se tornem escravos dos ricos.

Mas, o que sucede hoje? Em vez de se criarem instituições para proteger os endividados, criaram-se enormes instituições, à escala mundial, como o FMI, o Banco Mundial ou as agências de rating, destinadas a proteger os credores. Estas instituições decretam - contra toda a lógica económica - que nenhum país endividado pode declarar a suspensão do pagamento. Não se discute qualquer “perdão” da dívida, o dinheiro deve ser retirado, especialmente aos membros mais vulneráveis da sociedade, onde é mais fácil retirá-lo, vidas inteiras acabam por ser destruídas e milhões de pessoas morrem, simplesmente porque “bem, eles têm que pagar as dívidas”.

Segundo Graeber, a dívida é a arma mais potente já usada pelos poderosos para convencer as pessoas de que elas têm que obedecer ao seu poder e, ainda por cima, tudo por culpa delas mesmas que se endividaram.


No seu livro, Graeber desmonta as ideias do senso comum sobre a dívida e mostra de que forma as sociedades humanas, desde a antiga Suméria até aos dias de hoje, lidaram com a responsabilidade dos credores nos planos económico, legal e moral. Segundo ele, ao contrário do que se pensa habitualmente, a dívida surgiu antes do dinheiro, os sistemas de crédito vieram primeiro, e as moedas foram criadas muito tempo depois. Os primeiros registros que existem do sistema de dívida e crédito datam de 3000 anos antes de Cristo, embora seja impossível ter certeza de quando surgiram.

Para este autor, é fundamental compreender que o dinheiro não surgiu na forma impessoal, como metal com valor intrínseco, mas originalmente aparece como uma relação de dívida e obrigação entre seres humanos, que se foi transformando numa forma de medida, numa abstração.
(continua)

 
Ver texto completo da leitura-resumo.
(Para aumentar (A4), clicar no ícone (retângulo) no canto inferior direito)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"Bora lá" agora ser honestos


 
 
Eu gosto é destas notícias que nos poupam o trabalho de ter que escrever um post.

Já fomos “porreiros, pá”, “bora lá agora ser honestos”, já agora também sobre a dívida, o défice, o desemprego, o desespero, o medo. Vocês sabem, quando querem...
 
 

sábado, 23 de novembro de 2013

Acerca de "algemas invisíveis", muito haveria a dizer

Walker Evans 

 
Com todo o respeito, e solidariedade, que o sofrimento inerente à condição de vítima deve suscitar em cada um de nós, pode fazer-se uma leitura muito simbólica deste caso.
 
Num certo sentido, este caso é uma alegoria da condição em que grande parte da humanidade vive dominada pela dívida. Que “algemas invisíveis” mantêm a humanidade presa? Que mecanismos explicam a apropriação da riqueza e a dominação parasitária de uma minoria que, no estado mais abstrato de propriedade (financeira), submete, em nome da dívida, milhões de pessoas em todo o mundo?
 
O papel de cada um de nós deve ser um pouco como o da Scotland Yard: “tentar compreender quais terão sido “as algemas invisíveis””, as mais atuantes, mas as mais escondidas e difíceis de entender.
 
A notícia conclui dizendo: “É preciso compreender que estes casos não são raros. A escravatura moderna é uma realidade e existe no Reino Unido”.
 
 
Não são casos raros, existem em todo o mundo, diariamente.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O quase-mercado da quase educação

Robert Doisneau
 
Para a teoria neoliberal, não é o capitalismo que está em crise, é o Estado. Por essa razão a lógica de mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, tornando-o mais eficiente e produtivo. O Mercado apresenta-se como o modelo de funcionamento para as outras instituições sociais, numa nova teoria do contrato social, que vem propor uma reconstrução da ordem social e política.

O debate contemporâneo sobre o papel do Estado tem sido profundamente marcado por uma posição analítica que instaura a discussão em torno da oposição Estado/privado e não da oposição Mercado/público. Esta tem sido uma operação teórica e política bem-sucedida do neoliberalismo, uma vez que promover a discussão com base na oposição Estado/privado é duplamente favorável ao discurso neoliberal: por um lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal (como burocrático, ineficiente, vulnerável ao desperdício e à corrupção, responsável pelo défice público e cobrando elevados impostos) enquanto valoriza o privado (como eficiente, dinâmico, com qualidade e defendendo a liberdade individual) e, por outro lado, “apaga” um dos termos mais importantes do debate - o público.

Os elementos desta produção discursiva que desqualifica os serviços do Estado e oferece como exemplo de sucesso e eficiência o setor privado, estão cada vez mais incorporados no discurso quotidiano. No entanto, o debate sobre o papel do Estado, que, como dizíamos, tem sido largamente baseado na oposição Estado/privado, deve ser reenquadrado e organizado em torno da oposição Mercado/público.

Na verdade, estatal e privado são dois termos que não são necessariamente contraditórios: verifica-se que hoje o estatal está dominado por interesses privados e que os processos de privatização não têm favorecido os indivíduos mas os interesses de grandes grupos que dominam o mercado e que representam a sua verdadeira face. A polaridade que interessa discutir é entre o público e o mercado, uma oposição que representa, de facto, duas lógicas de atuação totalmente distintas (e não apenas dois regimes de propriedade).

A esfera pública identifica-se com o exercício da democracia no duplo sentido do compromisso com a universalização dos direitos e da possibilidade de controlo pela cidadania, enquanto a lógica de mercado reduz a capacidade de acesso e retira à esfera da cidadania a capacidade de controlo: o público vê cidadãos onde o mercado vê consumidores. O primeiro tem na universalização de direitos (destina-se a todos) a sua essência, o segundo atua numa base de mercantilização (destina-se àqueles que podem comprar). “O mercado é um tipo de sociedade que interpela os seus membros (ou seja, dirige-se a eles, saúda-os, questiona-os, mas também “irrompe” sobre eles) basicamente na condição de consumidores. “ (Bauman, 2008: 70)

Como resposta à desqualificação do estatal, quase todos os Estados têm vindo a empreender um esforço para modernizar a sua burocracia. Um dos importantes elementos desse processo consistiu na introdução de medidas de descentralização e “flexibilidade”, inextricavelmente ligadas a uma lógica de mercado. Por extensão, esse processo atingiu também a Educação.

De facto, a evolução na regulação da Educação tem promovido a disseminação de formas de gestão orientadas pela lógica do mercado, providenciando reformas que fazem funcionar os agentes públicos como se estivessem no mercado, modelando o espaço público pelos padrões do privado, mesmo quando a propriedade permanece estatal, isto é, não implicando necessariamente a privatização dos seus agentes.

Estas reformas, que estão ancoradas numa conceção de deslegitimação da ação estatal, também se inserem no questionamento da limitação da articulação de interesses privados.

Na provisão do serviço público de educação, segundo Afonso (2003) têm sido identificados pontos críticos, nos quais poderemos acrescentar que se verifica a presença de elementos que reforçam a regulação mercantil.

Os pontos críticos identificados são os seguintes:
    Currículo (com o reforço de reformas curriculares que integram matérias mais conotadas com o contexto empresarial, de que o novo vocacionalismo será o exemplo mais expressivo);
    Fluxo dos alunos (onde se discute a possibilidade da escolha da escola pelos encarregados de educação, um dos vetores estruturante do quase-mercado na educação);
    Gestão do pessoal docente (onde se constata a erosão da profissionalidade docente (uma profissão muito associada ao estatal) e a possibilidade de recrutamento e seleção do pessoal docente (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto que regula os contratos de autonomia entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)
    Controlo da oferta es­colar (introdução sistemática de exames nacionais, outro dos vetores estruturante do quase-mercado educativo);
    Gestão de recursos financeiros (flexibiliza­ção da provisão de recursos financeiros, “possibilidade de autofinanciamento e gestão de receitas que lhe estão consignadas” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto) e subsidiação de escolas privadas com desinvestimento nas escolas públicas);
    Relação entre a escola e o contexto lo­cal (maior participação na vida das escolas de atores do meio envolvente ligados às atividades socioeconómicas: “Ligação ao mundo do trabalho por via da cooperação entre escolas, instituições e serviços de apoio e encaminhamento vocacional e profissional, e organizações de trabalho, de forma a orientar o ensino para o empreendedorismo nas diferentes áreas de exercício profissional.” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto)).

 
A nova conceção de Estado e de provisão dos serviços públicos estatais tem subjacente o ethos do mercado: estratégias políticas, económicas e organizacionais que visam a revalorização e o reforço da regulação mercantil, a reformulação das relações do Estado com o setor privado e a adoção de novos modelos de gestão pública preocupados com a eficiência e modernização de métodos de gestão nas organizações educativas e com a diversificação de dispositivos e de níveis de controlo, social sobre a escola.

Esta recomposição na provisão dos serviços públicos estatais fez surgir aquilo que habitualmente se designa por quase-mercado. Ou seja, uma forma específica de combinar a regulação do Estado e o ambiente de mercado na oferta e gestão de serviços públicos, não havendo contraste entre as duas lógicas, anteriormente distintas.

O quase-mercado caracteriza-se por uma separação entre aqueles que produzem o serviço (antes, direito), aqueles que o escolhem e aqueles que o financiam e controlam. Esta separação permite que mais facilmente possam competir para oferecer determinado serviço tanto setores privados como públicos. E sabemos que as escolas representam um espaço de disputa pela educação, um bem (e um negócio) altamente valorizado pela maior parte da sociedade.

Toda esta reforma, anunciada para combater a burocracia e a ineficiência do Estado, propõe a eficiência e a qualidade. Mas, também seria interessante analisar a dicotomia entre a teoria da política de Mercado (o que deveria ser) e a sua prática (a realidade observada). Atrelada à “qualidade total”, surgem práticas de maximização dos rendimentos a qualquer custo e da cultura dos resultados, da competitividade e do individualismo. Pela sua própria natureza, falta ao mercado (entre outras coisas) a sensibilidade social que permita atender aos que, pelas mais diversas razões, exigem mais tempo e mais e melhores recursos para obterem sucesso educativo.

Condições de acesso definidas em termos de rentabilidade e eficácia, produzem dificuldades de entrada, que conduzirão inevitavelmente, à exclusão. O papel reservado ao Estado não pode ser o de cumprir as funções de "carro-vassoura" daqueles cujas condições de acesso produziram a sua eliminação no mercado.
 
Se tivermos presente que o "carro-vassoura" é aquele que vai atrás do último corredor em prova para recolher os ciclistas que são obrigados a desistir por não conseguirem acompanhar o andamento dos outros corredores, verificamos a pertinência do recurso a esta feliz metáfora de João Barroso (s/d) (lamentavelmente, só a metáfora é feliz).
 

Referências bibliográficas
  • Afonso, Natércio (2003). A regulação da educação na Europa: do Estado Educador ao controlo social da Escola Pública. In João Barroso (Org.), A Escola Pública: Regulação, Desregulação, Privatização. Porto: ASA, pp. 49-78.
  • Barroso, João, O Estado, a educação e a regulação das políticas públicas
  • Bauman, Zygmunt (2008). Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores
  • Sader, Emir (2003). Público versus mercantil. Folha de S. Paulo, 19 de junho de 2003 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1906200310.htm
  • Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto (Celebração do contratos de autonomia entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A crise como instrumento de poder

























Quando vamos deixar de usar a palavra "crise"?
Tal como já foi dito (aqui), não existe qualquer crise. Não estamos em crise, esta é apenas a natureza de um modelo. É mesmo assim.


(...)
Isso significa que a crise da dívida, a crise das finanças estatais, a moeda, a União Europeia, são infinitas?
Atualmente, a crise transformou-se num instrumento de dominação. Serve para legitimar decisões políticas e económicas que privam os cidadãos de toda possibilidade de decisão. Na Itália, é muito claro. Aqui, um governo foi formado em nome da crise e Berlusconi está de volta ao poder apesar de que ser radicalmente contra a vontade do eleitorado. Este governo é tão ilegítimo quanto a chamada Constituição europeia. Os cidadãos europeus devem deixar claro seus próprios olhos que esta crise sem fim – tanto como o estado de emergência – é incompatível com a democracia.
(...)

Entrevista de Dirk Schümer Dirk a Giorgio Agamben. (Ver texto integral)

"E eu disse, Maria..."

Gosto muito deste fado do Camané. Funciona como uma espécie de alegoria: nós somos o tal namorado da amiga da Maria, que também atravessou a longa fase do “ai aguenta, aguenta”, com a diferença de que no nosso caso não se tratam dos caprichos da amiga da Maria, mas das nossas vidas.
 
Como aquele namorado, pergunto quando estaremos finalmente capazes de dizer “E eu disse, Maria….”? (não vou aqui revelar o fim da história da amiga da Maria).
 
Mas, enquanto a maior parte de nós vai percorrendo a longa travessia, há sempre quem já diga o tal "E eu disse, Maria….”.
 
Vale a pena ouvir. O fado é que educa, o fado é que “instrói” J


Camané, "Ela tinha uma amiga"
 
 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Tinta vermelha

Slavoj Žižek dirigiu-se aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street, acampados na Liberty Plaza em Nova Iorque. Entre muitas outras coisas, contou a seguinte piada:

Na antiga RDA, um trabalhador alemão consegue emprego na Sibéria. Sabendo que a sua correspondência será lida pelos censores, combina com os amigos:“Se receberem uma carta escrita a azul, o  conteúdo é verdadeiro; com tinta vermelha, é falso”.
Os amigos receberam a primeira carta escrita a azul: “Por aqui tudo é maravilhoso: a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais…, a única coisa que não temos é tinta vermelha.

Não é essa a situação que vivemos até hoje? perguntava Žižek.
A única coisa que falta é a “tinta vermelha”, isto é, faltam-nos novos conceitos.  Os termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos”, “dívida”, etc.  – são termos que mistificam a nossa perceção da situação.

O atual sistema financeiro alterou toda a estrutura de poder e nós continuamos a usar os velhos conceitos para (tentar) compreender uma nova realidade.
Gilles Deleuze dizia que a tarefa da filosofia é criar conceitos. Pois bem, estamos mesmo a precisar deles.
 

Lançar a bola cada vez mais longe...



O CapitalCosta-Gavras, 2012

Normalmente os filmes que abordam o tema do capitalismo (como, por exemplo, Wall Street de Oliver Stone) colocam a questão em termos de um encruzilhada moral: ou os princípios éticos ou a riqueza. E no final (feliz) a ganância dos “maus da fita” é punida e o filme ensina a grande lição: mais moralização! Como se a culpa fosse da cobiça humana  e não da própria natureza do capitalismo.

Pelo contrário, no filme O Capital  (Costa-Gavras, 2012), Marc Tourneuil, o banqueiro, não é um herói nem sequer um anti-herói. É apenas alguém determinado a identificar-se inteiramente com o Grande Jogo. Não se ilude e não se culpa.  Não há espaço para reflexões políticas ou existenciais e julgamentos de caráter: existem apenas fortes e fracos, os que ganham  e os que perdem. E é preciso vencer. ”Continuaremos a tirar aos pobres para dar aos ricos neste jogo, meus senhores. Até que tudo isto um dia venha a explodir!”, diz ele numa reunião com os acionistas.

O problema não é de ordem ético-moral, não há qualquer possibilidade de humanizar o capital. Não existe qualquer crise de valores, o capitalismo é a própria crise. O colapso apenas expõe a essência da contradição.

O diálogo entre Marc Tourneuil e Maud (Le capital, 01h:44m) é absolutamente esclarecedor.






quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A Constituição, esse poema

(...) mas as palavras que concluem o livro soam ainda mais grotescas: "Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia"
Giorgio Agamben, Estado de exceção, p. 22


Ângelo Correia "Parlamento devia decretar estado de emergência nacional"


No atual estado de dívida, a ligação entre a democracia constitucional e o estado de emergência é uma ligação perigosa.

Já aqui falei sobre o tema do estado de exceção (em "A Constituição perdeu-se nos arquivos de São Bento?"). Não pretendo repetir a mesma ideia, mas torna-se cada vez mais importante, e necessário, acompanhar de bem perto esta questão política da máxima importância, que de novo, e de uma forma flagrante, está posta diante dos nossos olhos. 

Há tempos já alguém se manifestou sobre a “suspensão da democracia” durante seis meses. Agora, o “estado de exceção" schmittiano  ressurge claramente na agenda pública, fala-se de novo em "suspender preceitos constitucionais durante algum tempo.”  A Constituição que "deve pensar-se em termos desta nova realidade que nos ultrapassa a todos", está na ordem do dia, é uma questão política fundamental trazida para a discussão nada menos do que por Ângelo Correia. E finalmente, alguém falou de forma bastante clara sobre esta matéria de leis "paraconstitucionais".

Diz ele: “A própria Constituição da República tipifica o estado de anormalidade democrática. Se o aceitou, porque não aceita o Estado de emergência nacional determinado por razões económico-financeiras? Assim não teríamos de pedir ao Tribunal Constitucional que tenha compreensão, nem apelaríamos a outro tipo de interpretações ideológicas, apelaríamos, sim, a um dado objectivo constitucionalizável e declarávamos o estado de emergência quando o país celebrou o acordo com a troika. 
(...) Estou a pedir a conciliação de um estado de emergência que pode suspender alguns preceitos constitucionais durante algum tempo.

Suspender preceitos constitucionais...

O ambiente político latente há muito que é de emergência e exceção. O caráter “emergencial” das medidas de austeridade representa a possibilidade de aplicar “reformas” difíceis de realizar em tempos “normais”. A lógica da crise é resolvida na regulação governamental técnica do poder político e das relações sociais num estado de “emergência” (o plano de “assistência” financeira) e a Constituição, ou o Tribunal Constitucional, não representa mais do que uma “força de bloqueio”.

A Constituição da República estabelece as condições em que o estado de emergência pode ser declarado (“nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública” (artigo 19.º, n.º 2). Num governo que diz querer “ir além da troika”, não podemos considerar a violência da troika propriamente uma “agressão de forças estrangeiras” por mais esmagador que seja o ataque. Já outro tanto não diria no que diz respeito à “perturbação da ordem constitucional democrática”.

Não, Portugal não vive num “estado de exceção”. Não, ninguém declarou (formalmente) o estado de emergência. Ele é simplesmente declarado todos os dias, “em palavras, atos e omissões”. Uma dessas últimas “declarações” é a de um ministro (ainda por cima da educação) que diz que a única forma de dispensar esta austeridade seria “trabalhar mais de um ano sem comer, sem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada só para pagar a dívida”.

Ângelo Correia também invoca o mesmo grau zero da intimação que paira sobre todos nós recorrendo ao "pão de cada dia" como arma, seguindo a “metáfora” muito simbólica de Nuno Crato: “podemos acordar um dia a bradar e a declarar um poema à Constituição, mas no fundo não ter pão.” 

Ou Constituição ou pão... 

Depois do Estado social e do Trabalho, adensa-se o cerco à Constituição, a linha de fuga que resta. Durão Barroso hoje mesmo garantiu que nunca criticou o Tribunal Constitucional, mas “avisou que as suas decisões de inconstitucionalidade das medidas do programa de ajuda externa poderão ter consequências mais negativas em termos de crescimento económico e emprego e dificultar o regresso de Portugal ao financiamento no mercado.E, continuando com a mesmo tom de intimação, informa que, se isso acontecer, "Portugal terá de substituir essas medidas por outras medidas (...) provavelmente mais gravosas e medidas que provavelmente terão um efeito mais negativo em termos de crescimento e emprego. Bruxelas tem um "respeito absoluto pelas decisões do TC" mas "ao mesmo tempo, temos de dizer que as decisões têm consequências".

Ou Constituição ou crescimento e emprego...

E como entender as variadíssimas declarações que vão sendo pronunciadas pelo delfim de Ângelo Correia? Quantas mais "declarações" como estas teremos que ouvir?

"A emergência económica, financeira e social não está vencida mas está hoje bem mais próxima de ser ultrapassada." (Passos Coelho,  24-06-2012)

"Estamos próximos de vencer a situação de emergência." (Passos Coelho, 18-01-2013)

"Vale pouco a Constituição proteger direitos sociais se o Estado não tem dinheiro para os pagar." (Passos Coelho, 29-10-2012)

"Esta decisão [do Tribunal Constitucional] tem consequências muito sérias e graves para todo o País." (Após decisão do TC sobre o Orçamento de Estado) (Passos Coelho, 07-04-2013)

"Quero dizer a todos os portugueses que o Governo não aceita aumentar mais os impostos, que parece ser a solução que o Tribunal Constitucional favorece nas suas interpretações." (Passos Coelho, 07-04-2013)

“Já alguém se lembrou de perguntar aos 900 mil desempregados de que lhe valeu a Constituição até hoje?” (
Passos Coelho,  01-09-2013, Encerramento da Universidade de Verão do PSD, Castelo de Vide)

“Mas certas interpretações da Constituição dizem que não. Não são de bom senso” (ao sublinhar a necessidade do Estado reduzir despesa, comparando-a a uma empresa privada que precisa de dispensar trabalhadores para baixar custos) (Passos Coelho, 01-09-2013, Encerramento da Universidade de Verão do PSD, Castelo de Vide)


A História, que guarda da memória daquilo que devemos preservar, diz-nos que a relação entre a democracia constitucional e o estado de emergência pode ser um jogo muito perigoso. A Alemanha viveu juridicamente 12 anos em estado de exceção. O poder legislativo passou do Reichsatg para a chancelaria, suspendendo o parlamentarismo de Weimar. Sabemos como tudo acabou. E também sabemos como tudo começou: foi sempre em nome da proteção do povo e do Estado.


No CM, à pergunta se “O Orçamento respeita a Constituição?”, um constitucionalista, a propósito da 'TSU das viúvas', responde:Desde que a medida seja temporária, por vivermos numa situação excecional, e porque os cortes não ultrapassam um certo limite, deverá ser considerada constitucional.” Esta resposta é sintomática: “desde que”, “se não se ultrapassar um certo limite”, dada a “situação excecional”.  Como A. Correia e Barroso, que obviamente respeitam a Constituição, "mas...". O problema está exatamente nesta adversativa.


Aqui ficam algumas das palavras de Ângelo Correia numa entrevista em que "pede a conciliação" e o estafado consenso. Vale a pena ler muito atentamente. As suas palavras têm, pelo menos, o mérito de (finalmente)  serem palavras bastante claras: há que declarar o estado de emergência nacional.

(…)
Os juízes do Constitucional têm estado a analisar a constitucionalidade das medidas do governo ou estão eles próprios a julgá-las e a querer governar?
Parto de um princípio simples que acho que pode ser aceite: os juízes do Tribunal Constitucional desejam interpretar as leis que lhes aparecem à luz da Constituição. Não sou favorável a uma atitude censória dos juízes do Tribunal Constitucional. Mas daí decorre uma circunstância: é que se eu não censuro os juízes do Tribunal Constitucional percebo que na relação entre TC, interpretação constitucional e Constituição há algo que está mal.

O quê, na sua interpretação?
A Constituição foi feita para um país que gozasse de enormes graus de liberdade e independência, que desapareceram com o tempo. A própria Constituição da República tipifica o estado de anormalidade democrática. Se o aceitou, porque não aceita o Estado de emergência nacional determinado por razões económico-financeiras? Assim não teríamos de pedir ao Tribunal Constitucional que tenha compreensão, nem apelaríamos a outro tipo de interpretações ideológicas, apelaríamos, sim, a um dado objectivo constitucionalizável e declarávamos o estado de emergência quando o país celebrou o acordo com a troika. O acordo com a troika não é constitucional, porque parte do princípio que tem de ser executado e exercido num quadro que não sabe se pode ser. A forma de resolver o problema é um ajuste entre os maiores partidos criando uma lei paraconstitucional na Assembleia da República, por maioria de dois terços, onde se digam e explicitem os factores e razões que devem ser considerados nestas circunstâncias e os mecanismos que devem ser utilizados.

É tarde de mais para isso?
Nunca é tarde para isso, porque eu não sei se atrás desta crise não vem outra. Portugal já não é um país independente. A Constituição deve pensar-se em termos desta nova realidade que nos ultrapassa a todos. Estou a pedir a conciliação de um estado de emergência que pode suspender alguns preceitos constitucionais durante algum tempo.

As pessoas não vão achar que é uma forma de legitimar que mais alguma coisa caia sobre elas?
Já caiu.

A Constituição não está a ser o nosso garante?

Não, isso é pura ilusão. Podemos agarrar-nos a todos os preceitos jurídicos, mas a realidade económico-financeira ultrapassa-nos. Podemos acordar um dia a bradar e a declarar um poema à Constituição, mas no fundo não ter pão. Isto é que é o dramático da situação. Eu quero respeitar a Constituição, mas para isso ela tem de estar em sintonia com a realidade que se vive. 


"Só os ditadores governam com ordens executivas."
E só os ditadores querem apagar a Constituição.