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quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A Constituição, esse poema

(...) mas as palavras que concluem o livro soam ainda mais grotescas: "Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande, menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia"
Giorgio Agamben, Estado de exceção, p. 22


Ângelo Correia "Parlamento devia decretar estado de emergência nacional"


No atual estado de dívida, a ligação entre a democracia constitucional e o estado de emergência é uma ligação perigosa.

Já aqui falei sobre o tema do estado de exceção (em "A Constituição perdeu-se nos arquivos de São Bento?"). Não pretendo repetir a mesma ideia, mas torna-se cada vez mais importante, e necessário, acompanhar de bem perto esta questão política da máxima importância, que de novo, e de uma forma flagrante, está posta diante dos nossos olhos. 

Há tempos já alguém se manifestou sobre a “suspensão da democracia” durante seis meses. Agora, o “estado de exceção" schmittiano  ressurge claramente na agenda pública, fala-se de novo em "suspender preceitos constitucionais durante algum tempo.”  A Constituição que "deve pensar-se em termos desta nova realidade que nos ultrapassa a todos", está na ordem do dia, é uma questão política fundamental trazida para a discussão nada menos do que por Ângelo Correia. E finalmente, alguém falou de forma bastante clara sobre esta matéria de leis "paraconstitucionais".

Diz ele: “A própria Constituição da República tipifica o estado de anormalidade democrática. Se o aceitou, porque não aceita o Estado de emergência nacional determinado por razões económico-financeiras? Assim não teríamos de pedir ao Tribunal Constitucional que tenha compreensão, nem apelaríamos a outro tipo de interpretações ideológicas, apelaríamos, sim, a um dado objectivo constitucionalizável e declarávamos o estado de emergência quando o país celebrou o acordo com a troika. 
(...) Estou a pedir a conciliação de um estado de emergência que pode suspender alguns preceitos constitucionais durante algum tempo.

Suspender preceitos constitucionais...

O ambiente político latente há muito que é de emergência e exceção. O caráter “emergencial” das medidas de austeridade representa a possibilidade de aplicar “reformas” difíceis de realizar em tempos “normais”. A lógica da crise é resolvida na regulação governamental técnica do poder político e das relações sociais num estado de “emergência” (o plano de “assistência” financeira) e a Constituição, ou o Tribunal Constitucional, não representa mais do que uma “força de bloqueio”.

A Constituição da República estabelece as condições em que o estado de emergência pode ser declarado (“nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública” (artigo 19.º, n.º 2). Num governo que diz querer “ir além da troika”, não podemos considerar a violência da troika propriamente uma “agressão de forças estrangeiras” por mais esmagador que seja o ataque. Já outro tanto não diria no que diz respeito à “perturbação da ordem constitucional democrática”.

Não, Portugal não vive num “estado de exceção”. Não, ninguém declarou (formalmente) o estado de emergência. Ele é simplesmente declarado todos os dias, “em palavras, atos e omissões”. Uma dessas últimas “declarações” é a de um ministro (ainda por cima da educação) que diz que a única forma de dispensar esta austeridade seria “trabalhar mais de um ano sem comer, sem utilizar transportes, sem gastar absolutamente nada só para pagar a dívida”.

Ângelo Correia também invoca o mesmo grau zero da intimação que paira sobre todos nós recorrendo ao "pão de cada dia" como arma, seguindo a “metáfora” muito simbólica de Nuno Crato: “podemos acordar um dia a bradar e a declarar um poema à Constituição, mas no fundo não ter pão.” 

Ou Constituição ou pão... 

Depois do Estado social e do Trabalho, adensa-se o cerco à Constituição, a linha de fuga que resta. Durão Barroso hoje mesmo garantiu que nunca criticou o Tribunal Constitucional, mas “avisou que as suas decisões de inconstitucionalidade das medidas do programa de ajuda externa poderão ter consequências mais negativas em termos de crescimento económico e emprego e dificultar o regresso de Portugal ao financiamento no mercado.E, continuando com a mesmo tom de intimação, informa que, se isso acontecer, "Portugal terá de substituir essas medidas por outras medidas (...) provavelmente mais gravosas e medidas que provavelmente terão um efeito mais negativo em termos de crescimento e emprego. Bruxelas tem um "respeito absoluto pelas decisões do TC" mas "ao mesmo tempo, temos de dizer que as decisões têm consequências".

Ou Constituição ou crescimento e emprego...

E como entender as variadíssimas declarações que vão sendo pronunciadas pelo delfim de Ângelo Correia? Quantas mais "declarações" como estas teremos que ouvir?

"A emergência económica, financeira e social não está vencida mas está hoje bem mais próxima de ser ultrapassada." (Passos Coelho,  24-06-2012)

"Estamos próximos de vencer a situação de emergência." (Passos Coelho, 18-01-2013)

"Vale pouco a Constituição proteger direitos sociais se o Estado não tem dinheiro para os pagar." (Passos Coelho, 29-10-2012)

"Esta decisão [do Tribunal Constitucional] tem consequências muito sérias e graves para todo o País." (Após decisão do TC sobre o Orçamento de Estado) (Passos Coelho, 07-04-2013)

"Quero dizer a todos os portugueses que o Governo não aceita aumentar mais os impostos, que parece ser a solução que o Tribunal Constitucional favorece nas suas interpretações." (Passos Coelho, 07-04-2013)

“Já alguém se lembrou de perguntar aos 900 mil desempregados de que lhe valeu a Constituição até hoje?” (
Passos Coelho,  01-09-2013, Encerramento da Universidade de Verão do PSD, Castelo de Vide)

“Mas certas interpretações da Constituição dizem que não. Não são de bom senso” (ao sublinhar a necessidade do Estado reduzir despesa, comparando-a a uma empresa privada que precisa de dispensar trabalhadores para baixar custos) (Passos Coelho, 01-09-2013, Encerramento da Universidade de Verão do PSD, Castelo de Vide)


A História, que guarda da memória daquilo que devemos preservar, diz-nos que a relação entre a democracia constitucional e o estado de emergência pode ser um jogo muito perigoso. A Alemanha viveu juridicamente 12 anos em estado de exceção. O poder legislativo passou do Reichsatg para a chancelaria, suspendendo o parlamentarismo de Weimar. Sabemos como tudo acabou. E também sabemos como tudo começou: foi sempre em nome da proteção do povo e do Estado.


No CM, à pergunta se “O Orçamento respeita a Constituição?”, um constitucionalista, a propósito da 'TSU das viúvas', responde:Desde que a medida seja temporária, por vivermos numa situação excecional, e porque os cortes não ultrapassam um certo limite, deverá ser considerada constitucional.” Esta resposta é sintomática: “desde que”, “se não se ultrapassar um certo limite”, dada a “situação excecional”.  Como A. Correia e Barroso, que obviamente respeitam a Constituição, "mas...". O problema está exatamente nesta adversativa.


Aqui ficam algumas das palavras de Ângelo Correia numa entrevista em que "pede a conciliação" e o estafado consenso. Vale a pena ler muito atentamente. As suas palavras têm, pelo menos, o mérito de (finalmente)  serem palavras bastante claras: há que declarar o estado de emergência nacional.

(…)
Os juízes do Constitucional têm estado a analisar a constitucionalidade das medidas do governo ou estão eles próprios a julgá-las e a querer governar?
Parto de um princípio simples que acho que pode ser aceite: os juízes do Tribunal Constitucional desejam interpretar as leis que lhes aparecem à luz da Constituição. Não sou favorável a uma atitude censória dos juízes do Tribunal Constitucional. Mas daí decorre uma circunstância: é que se eu não censuro os juízes do Tribunal Constitucional percebo que na relação entre TC, interpretação constitucional e Constituição há algo que está mal.

O quê, na sua interpretação?
A Constituição foi feita para um país que gozasse de enormes graus de liberdade e independência, que desapareceram com o tempo. A própria Constituição da República tipifica o estado de anormalidade democrática. Se o aceitou, porque não aceita o Estado de emergência nacional determinado por razões económico-financeiras? Assim não teríamos de pedir ao Tribunal Constitucional que tenha compreensão, nem apelaríamos a outro tipo de interpretações ideológicas, apelaríamos, sim, a um dado objectivo constitucionalizável e declarávamos o estado de emergência quando o país celebrou o acordo com a troika. O acordo com a troika não é constitucional, porque parte do princípio que tem de ser executado e exercido num quadro que não sabe se pode ser. A forma de resolver o problema é um ajuste entre os maiores partidos criando uma lei paraconstitucional na Assembleia da República, por maioria de dois terços, onde se digam e explicitem os factores e razões que devem ser considerados nestas circunstâncias e os mecanismos que devem ser utilizados.

É tarde de mais para isso?
Nunca é tarde para isso, porque eu não sei se atrás desta crise não vem outra. Portugal já não é um país independente. A Constituição deve pensar-se em termos desta nova realidade que nos ultrapassa a todos. Estou a pedir a conciliação de um estado de emergência que pode suspender alguns preceitos constitucionais durante algum tempo.

As pessoas não vão achar que é uma forma de legitimar que mais alguma coisa caia sobre elas?
Já caiu.

A Constituição não está a ser o nosso garante?

Não, isso é pura ilusão. Podemos agarrar-nos a todos os preceitos jurídicos, mas a realidade económico-financeira ultrapassa-nos. Podemos acordar um dia a bradar e a declarar um poema à Constituição, mas no fundo não ter pão. Isto é que é o dramático da situação. Eu quero respeitar a Constituição, mas para isso ela tem de estar em sintonia com a realidade que se vive. 


"Só os ditadores governam com ordens executivas."
E só os ditadores querem apagar a Constituição.

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