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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O quase-mercado da quase educação

Robert Doisneau
 
Para a teoria neoliberal, não é o capitalismo que está em crise, é o Estado. Por essa razão a lógica de mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, tornando-o mais eficiente e produtivo. O Mercado apresenta-se como o modelo de funcionamento para as outras instituições sociais, numa nova teoria do contrato social, que vem propor uma reconstrução da ordem social e política.

O debate contemporâneo sobre o papel do Estado tem sido profundamente marcado por uma posição analítica que instaura a discussão em torno da oposição Estado/privado e não da oposição Mercado/público. Esta tem sido uma operação teórica e política bem-sucedida do neoliberalismo, uma vez que promover a discussão com base na oposição Estado/privado é duplamente favorável ao discurso neoliberal: por um lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal (como burocrático, ineficiente, vulnerável ao desperdício e à corrupção, responsável pelo défice público e cobrando elevados impostos) enquanto valoriza o privado (como eficiente, dinâmico, com qualidade e defendendo a liberdade individual) e, por outro lado, “apaga” um dos termos mais importantes do debate - o público.

Os elementos desta produção discursiva que desqualifica os serviços do Estado e oferece como exemplo de sucesso e eficiência o setor privado, estão cada vez mais incorporados no discurso quotidiano. No entanto, o debate sobre o papel do Estado, que, como dizíamos, tem sido largamente baseado na oposição Estado/privado, deve ser reenquadrado e organizado em torno da oposição Mercado/público.

Na verdade, estatal e privado são dois termos que não são necessariamente contraditórios: verifica-se que hoje o estatal está dominado por interesses privados e que os processos de privatização não têm favorecido os indivíduos mas os interesses de grandes grupos que dominam o mercado e que representam a sua verdadeira face. A polaridade que interessa discutir é entre o público e o mercado, uma oposição que representa, de facto, duas lógicas de atuação totalmente distintas (e não apenas dois regimes de propriedade).

A esfera pública identifica-se com o exercício da democracia no duplo sentido do compromisso com a universalização dos direitos e da possibilidade de controlo pela cidadania, enquanto a lógica de mercado reduz a capacidade de acesso e retira à esfera da cidadania a capacidade de controlo: o público vê cidadãos onde o mercado vê consumidores. O primeiro tem na universalização de direitos (destina-se a todos) a sua essência, o segundo atua numa base de mercantilização (destina-se àqueles que podem comprar). “O mercado é um tipo de sociedade que interpela os seus membros (ou seja, dirige-se a eles, saúda-os, questiona-os, mas também “irrompe” sobre eles) basicamente na condição de consumidores. “ (Bauman, 2008: 70)

Como resposta à desqualificação do estatal, quase todos os Estados têm vindo a empreender um esforço para modernizar a sua burocracia. Um dos importantes elementos desse processo consistiu na introdução de medidas de descentralização e “flexibilidade”, inextricavelmente ligadas a uma lógica de mercado. Por extensão, esse processo atingiu também a Educação.

De facto, a evolução na regulação da Educação tem promovido a disseminação de formas de gestão orientadas pela lógica do mercado, providenciando reformas que fazem funcionar os agentes públicos como se estivessem no mercado, modelando o espaço público pelos padrões do privado, mesmo quando a propriedade permanece estatal, isto é, não implicando necessariamente a privatização dos seus agentes.

Estas reformas, que estão ancoradas numa conceção de deslegitimação da ação estatal, também se inserem no questionamento da limitação da articulação de interesses privados.

Na provisão do serviço público de educação, segundo Afonso (2003) têm sido identificados pontos críticos, nos quais poderemos acrescentar que se verifica a presença de elementos que reforçam a regulação mercantil.

Os pontos críticos identificados são os seguintes:
    Currículo (com o reforço de reformas curriculares que integram matérias mais conotadas com o contexto empresarial, de que o novo vocacionalismo será o exemplo mais expressivo);
    Fluxo dos alunos (onde se discute a possibilidade da escolha da escola pelos encarregados de educação, um dos vetores estruturante do quase-mercado na educação);
    Gestão do pessoal docente (onde se constata a erosão da profissionalidade docente (uma profissão muito associada ao estatal) e a possibilidade de recrutamento e seleção do pessoal docente (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto que regula os contratos de autonomia entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)
    Controlo da oferta es­colar (introdução sistemática de exames nacionais, outro dos vetores estruturante do quase-mercado educativo);
    Gestão de recursos financeiros (flexibiliza­ção da provisão de recursos financeiros, “possibilidade de autofinanciamento e gestão de receitas que lhe estão consignadas” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto) e subsidiação de escolas privadas com desinvestimento nas escolas públicas);
    Relação entre a escola e o contexto lo­cal (maior participação na vida das escolas de atores do meio envolvente ligados às atividades socioeconómicas: “Ligação ao mundo do trabalho por via da cooperação entre escolas, instituições e serviços de apoio e encaminhamento vocacional e profissional, e organizações de trabalho, de forma a orientar o ensino para o empreendedorismo nas diferentes áreas de exercício profissional.” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto)).

 
A nova conceção de Estado e de provisão dos serviços públicos estatais tem subjacente o ethos do mercado: estratégias políticas, económicas e organizacionais que visam a revalorização e o reforço da regulação mercantil, a reformulação das relações do Estado com o setor privado e a adoção de novos modelos de gestão pública preocupados com a eficiência e modernização de métodos de gestão nas organizações educativas e com a diversificação de dispositivos e de níveis de controlo, social sobre a escola.

Esta recomposição na provisão dos serviços públicos estatais fez surgir aquilo que habitualmente se designa por quase-mercado. Ou seja, uma forma específica de combinar a regulação do Estado e o ambiente de mercado na oferta e gestão de serviços públicos, não havendo contraste entre as duas lógicas, anteriormente distintas.

O quase-mercado caracteriza-se por uma separação entre aqueles que produzem o serviço (antes, direito), aqueles que o escolhem e aqueles que o financiam e controlam. Esta separação permite que mais facilmente possam competir para oferecer determinado serviço tanto setores privados como públicos. E sabemos que as escolas representam um espaço de disputa pela educação, um bem (e um negócio) altamente valorizado pela maior parte da sociedade.

Toda esta reforma, anunciada para combater a burocracia e a ineficiência do Estado, propõe a eficiência e a qualidade. Mas, também seria interessante analisar a dicotomia entre a teoria da política de Mercado (o que deveria ser) e a sua prática (a realidade observada). Atrelada à “qualidade total”, surgem práticas de maximização dos rendimentos a qualquer custo e da cultura dos resultados, da competitividade e do individualismo. Pela sua própria natureza, falta ao mercado (entre outras coisas) a sensibilidade social que permita atender aos que, pelas mais diversas razões, exigem mais tempo e mais e melhores recursos para obterem sucesso educativo.

Condições de acesso definidas em termos de rentabilidade e eficácia, produzem dificuldades de entrada, que conduzirão inevitavelmente, à exclusão. O papel reservado ao Estado não pode ser o de cumprir as funções de "carro-vassoura" daqueles cujas condições de acesso produziram a sua eliminação no mercado.
 
Se tivermos presente que o "carro-vassoura" é aquele que vai atrás do último corredor em prova para recolher os ciclistas que são obrigados a desistir por não conseguirem acompanhar o andamento dos outros corredores, verificamos a pertinência do recurso a esta feliz metáfora de João Barroso (s/d) (lamentavelmente, só a metáfora é feliz).
 

Referências bibliográficas
  • Afonso, Natércio (2003). A regulação da educação na Europa: do Estado Educador ao controlo social da Escola Pública. In João Barroso (Org.), A Escola Pública: Regulação, Desregulação, Privatização. Porto: ASA, pp. 49-78.
  • Barroso, João, O Estado, a educação e a regulação das políticas públicas
  • Bauman, Zygmunt (2008). Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores
  • Sader, Emir (2003). Público versus mercantil. Folha de S. Paulo, 19 de junho de 2003 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1906200310.htm
  • Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto (Celebração do contratos de autonomia entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)

 

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