Robert Doisneau
Para a teoria
neoliberal, não é o capitalismo que está em crise, é o Estado. Por essa razão a
lógica de mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, tornando-o mais
eficiente e produtivo. O Mercado apresenta-se
como o modelo de funcionamento para as outras instituições sociais, numa nova teoria
do contrato social, que vem propor uma reconstrução da ordem social e política.
O debate
contemporâneo sobre o papel do Estado tem sido profundamente marcado por uma posição
analítica que instaura a discussão em torno da oposição Estado/privado e não da
oposição Mercado/público. Esta tem sido uma operação teórica e política
bem-sucedida do neoliberalismo, uma vez que promover a discussão com base na
oposição Estado/privado é duplamente favorável ao discurso neoliberal: por um
lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal (como burocrático, ineficiente,
vulnerável ao desperdício e à corrupção, responsável pelo défice público e cobrando
elevados impostos) enquanto valoriza o privado (como eficiente, dinâmico, com
qualidade e defendendo a liberdade individual) e, por outro lado, “apaga” um dos
termos mais importantes do debate - o público.
Os elementos
desta produção discursiva que desqualifica os serviços do Estado e oferece como
exemplo de sucesso e eficiência o setor privado, estão cada vez mais
incorporados no discurso quotidiano. No entanto, o debate sobre o papel do
Estado, que, como dizíamos, tem sido largamente baseado na oposição Estado/privado,
deve ser reenquadrado e organizado em torno da oposição Mercado/público.
Na verdade, estatal e privado são dois termos que não são necessariamente contraditórios:
verifica-se que hoje o estatal está dominado por interesses privados e que os
processos de privatização não têm favorecido os indivíduos mas os interesses de
grandes grupos que dominam o mercado e que representam a sua verdadeira face. A
polaridade que interessa discutir é entre o
público e o mercado, uma oposição
que representa, de facto, duas lógicas de atuação totalmente distintas (e não
apenas dois regimes de propriedade).
A esfera
pública identifica-se com o exercício da democracia no duplo sentido do
compromisso com a universalização dos direitos e da possibilidade de controlo
pela cidadania, enquanto a lógica de mercado reduz a capacidade de acesso e
retira à esfera da cidadania a capacidade de controlo: o público vê cidadãos onde o mercado vê consumidores. O primeiro tem na
universalização de direitos (destina-se a todos) a sua essência, o segundo atua
numa base de mercantilização (destina-se àqueles que podem comprar). “O mercado
é um tipo de sociedade que interpela os seus membros (ou seja, dirige-se a
eles, saúda-os, questiona-os, mas também “irrompe” sobre eles) basicamente na
condição de consumidores. “ (Bauman, 2008:
70)
Como resposta à desqualificação do estatal, quase todos
os Estados têm vindo a empreender um esforço para modernizar a sua burocracia. Um
dos importantes elementos desse processo
consistiu na introdução de medidas de descentralização e “flexibilidade”,
inextricavelmente ligadas a uma lógica de mercado. Por extensão, esse processo
atingiu também a Educação.
De facto, a evolução na regulação da Educação tem
promovido a disseminação
de formas de gestão orientadas pela lógica do mercado, providenciando
reformas que fazem funcionar os agentes públicos como se estivessem no mercado, modelando o espaço público pelos
padrões do privado, mesmo quando
a propriedade permanece estatal, isto é, não implicando necessariamente a privatização
dos seus agentes.
Estas reformas, que estão ancoradas numa conceção de
deslegitimação da ação estatal, também se inserem no questionamento da
limitação da articulação de interesses privados.
Na
provisão do serviço público de educação, segundo Afonso (2003) têm sido
identificados pontos críticos, nos quais poderemos acrescentar que se verifica
a presença de elementos que reforçam a regulação mercantil.
Os
pontos críticos identificados são os seguintes:
Currículo (com o reforço de reformas
curriculares que integram matérias mais conotadas com o contexto empresarial,
de que o novo vocacionalismo será o exemplo mais expressivo);
Fluxo
dos alunos (onde se
discute a possibilidade da escolha da escola pelos encarregados de educação, um
dos vetores estruturante do quase-mercado na educação);
Gestão
do pessoal docente (onde se
constata a erosão da
profissionalidade docente (uma profissão muito associada ao estatal) e a
possibilidade de recrutamento e seleção do pessoal docente (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto que
regula os contratos de autonomia
entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)
Controlo
da oferta escolar (introdução
sistemática de exames nacionais, outro dos vetores estruturante do
quase-mercado educativo);
Gestão
de recursos financeiros
(flexibilização da provisão de recursos financeiros, “possibilidade
de autofinanciamento e gestão de receitas que lhe estão consignadas” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto) e subsidiação de escolas privadas com
desinvestimento nas escolas públicas);
Relação
entre a escola e o contexto local
(maior participação na vida das escolas de atores do meio envolvente ligados às
atividades socioeconómicas: “Ligação ao mundo do trabalho por via da cooperação
entre escolas, instituições e serviços de apoio e encaminhamento vocacional e
profissional, e organizações de trabalho, de forma a orientar o ensino para o
empreendedorismo nas diferentes áreas de exercício profissional.” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto)).
A nova
conceção de Estado e de provisão dos
serviços públicos estatais tem subjacente o ethos
do mercado: estratégias políticas, económicas e organizacionais que visam a
revalorização e o reforço da regulação mercantil, a reformulação das relações
do Estado com o setor privado e a adoção de novos modelos de gestão pública
preocupados com a eficiência e modernização de métodos de gestão nas
organizações educativas e com a diversificação de dispositivos e de níveis de
controlo, social sobre a escola.
Esta
recomposição na provisão dos serviços públicos estatais fez surgir aquilo
que habitualmente se designa por quase-mercado. Ou seja, uma forma
específica de combinar a regulação do Estado e o ambiente de mercado na oferta
e gestão de serviços públicos, não havendo contraste entre as duas lógicas,
anteriormente distintas.
O
quase-mercado caracteriza-se por uma separação entre aqueles que produzem o
serviço (antes, direito), aqueles que
o escolhem e aqueles que o financiam e controlam. Esta separação permite que mais
facilmente possam competir para oferecer determinado serviço tanto setores
privados como públicos. E sabemos que as escolas representam um espaço de
disputa pela educação, um bem (e um negócio) altamente valorizado pela maior
parte da sociedade.
Toda esta reforma, anunciada para
combater a burocracia e a ineficiência do Estado, propõe a eficiência e a qualidade.
Mas, também seria interessante analisar a dicotomia entre a teoria
da política de Mercado (o que deveria ser) e a sua prática (a realidade
observada). Atrelada à
“qualidade total”, surgem práticas de maximização dos rendimentos a qualquer
custo e da cultura dos resultados, da competitividade e do individualismo. Pela sua própria natureza, falta ao mercado (entre
outras coisas) a sensibilidade social que permita atender aos que, pelas mais
diversas razões, exigem mais tempo e mais e melhores recursos para obterem sucesso
educativo.
Condições de acesso definidas em termos de
rentabilidade e eficácia, produzem dificuldades de entrada, que conduzirão
inevitavelmente, à exclusão. O papel reservado ao Estado não pode ser o de
cumprir as funções de "carro-vassoura" daqueles cujas condições de
acesso produziram a sua eliminação no mercado.
Se tivermos presente que o "carro-vassoura"
é aquele que vai atrás do último corredor em prova para recolher os ciclistas
que são obrigados a desistir por não conseguirem acompanhar o andamento dos
outros corredores, verificamos a pertinência do recurso a esta feliz metáfora
de João Barroso (s/d) (lamentavelmente, só a metáfora é feliz).
Referências bibliográficas
- Afonso, Natércio (2003). A regulação da educação na Europa: do Estado Educador ao controlo social da Escola Pública. In João Barroso (Org.), A Escola Pública: Regulação, Desregulação, Privatização. Porto: ASA, pp. 49-78.
- Barroso, João, O Estado, a educação e a regulação das políticas públicas
- Bauman, Zygmunt (2008). Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores
- Sader, Emir (2003). Público versus mercantil. Folha de S. Paulo, 19 de junho de 2003 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1906200310.htm
- Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto (Celebração do contratos de autonomia entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)
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