Falar para um candeeiro...

domingo, 13 de abril de 2014

A política e a "exposição do dano" (Rancière)

Este casal russo-ucraniano envia uma mensagem aos nacionalistas extremistas dos dois lados.

 

Nesta imagem não vejo primeiramente o “peace and love” ou a “força do amor”. Também não vejo um gesto supostamente obsceno. Vejo um ato político, de alguém que rejeita a identidade que a ordem "policial" lhe conferiu.

“A subjetivação política cria transformando identidades definidas na ordem natural da repartição das funções e dos lugares em instâncias de experiência de um litígio. "Russos" ou "Ucranianos" são identidades aparentemente sem mistério. Toda a gente vê de quem se trata. Ora, a subjetivação política arranca-os dessa evidência… (Ranciére, adaptado, sublinhado meu)
 
Uma tão grande competência política, assim num casal de namorados? Sim. A competência política não é conferida por meio de títulos, cargos, mandatos ou outras distinções de estatuto. A política está sempre aberta à enunciação pública de quem seja capaz de instaurar o dissenso, de nomear, à sua forma, o dano.

Todo o indivíduo é potencialmente um sujeito político. Quaisquer pessoas que transmitam em público – de formas muito distintas e com graus de institucionalização muito variáveis – as suas reações aos danos que sofrem diretamente ou que percebem haver no conjunto da sociedade a que pertencem, são sujeitos políticos, são sujeitos que procuram intervir na “partilha” (divisão) do mundo sensível em que vivem as suas experiências quotidianas.

 A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho. (…) Pode ser a desses operários do século XIX que colocam em razões coletivas relações de trabalho que só dependem de uma infinidade de relações individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como "espaço público" as vias de comunicação urbanas. Espetacular ou não, a atividade política é sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que lhe é heterogénea por princípio, a de uma parcela* dos sem-parcela que manifesta ela mesma, em última instância, a pura contingência da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar e formas para o encontro entre dois processos heterogéneos.” (Rancière, 1996, p. 42-43)

  


Outro exemplo é o deste homem que compreende que os direitos das mulheres também o libertam a ele na medida em que recolocam para a sociedade a dimensão de um dano, que a ordem policial não pode regular porque nessa ordem as “mulheres” são encarados como ”sujeitos, cuja própria existência é o modo de manifestação desse dano”. (Rancière, 1996, p. 50, adaptado).
Compreendeu que o dia 8 de março não é o Dia Internacional da Mulher, é o Dia Internacional de Luta Pelos Direitos das Mulheres (pelo que não lhes deve oferecer flores, assim espero eu).

 




Poderemos ainda encontrar um outro exemplo de ação política como exposição do dano nas micro-resistências das Arpilleras da Resistência Política Chilena, as mulheres que “bordavam telas com as roupas dos seus parentes desaparecidos no regime ditatorial” (aqui). Com esse ato “trangressor” de bordar, de uma certa forma, o invisível passa a ser visto e o ruído torna-se discurso convocatório, torna-se um logos vivo da comunidade.

(Embora com tanta mediatização, as Arpilleras, ou alguém por elas,  também se aproximam perigosamente do "desvio" debordiano).


Já no safári humano de uma “favela tour”, autenticamente debordiana, o espetáculo encena a lógica “policial” das funções e das parcelas que situa, e mantém, cada corpo no seu lugar e na sua função. A ordem policial não pode regular o dano porque os “pobres” são encarados como ”sujeitos, cuja própria existência é o modo de manifestação desse dano”. (Rancière, 1996, p. 50) Não aparecem sequer debaixo do puro título vazio da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa, mas aparecem explicitamente como pobres, uma espécie exótica “para mais tarde recordar”.

 
A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. É, por exemplo, uma lei de polícia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu trabalho. A polícia não é tanto uma "disciplinarização" dos corpos quanto uma regra do seu aparecer, uma configuração das ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.” (Rancière, 1996, p. 42)

 

Mas, claro que a ordem policial também pode exercer uma atividade política e tentar  “deslocar um corpo do lugar que lhe era designado”. Por exemplo, neste caso, a Disney fez um excelente trabalho a “deslocar” o Nietzsche (ao que parece, mais fácil de  “domesticar” que a Miley Cyrus).
 
 
Caricatura ou modo de funcionamento?

 







Rancière, Jacques (1996). O desentendimento, política e filosofia. São Paulo: Editora 34

 

* Parcela
No original, part (o termo francês partie foi traduzido como parte). Designa a parte qüe cabe a alguém numa divisão ou distribuição, o quinhão que é dado a uma pessoa ou que legitimamente deveria ser seu. Jogam com esta palavra, igualmente, partido (francês partie), parceiro (francês partenaire), divisão (francês partage). (N. do revisor técnico, p. 11)


Agradeço ao Paul Ming as imagens.

 

terça-feira, 8 de abril de 2014

Uma memória de infância acerca do meu pai…

O meu pai, a minha irmã e a minha filha, há uns anos nos Açores

Hoje é dia de aniversário, meu e da minha irmã, mas também faz exatamente hoje um ano que o meu pai faleceu. Associar acontecimentos tão diferentes a uma mesma data provoca uma certa estranheza.
 
Talvez por isso especialmente hoje recordo o meu pai, recorrendo ao lugar de todas as lembranças que são as memórias de infância.
De entre as muitas, há uma que registo.

 
Desde sempre me lembro de um pequeno hábito que o meu pai tinha, que de resto penso tratar-se de um comportamento relativamente comum e frequente: o de falar sozinho. Naqueles momentos em que, provavelmente, estaria entregue aos seus pensamentos, o meu pai tinha o costume de os ir manifestando através daquelas pequenas conversas que tinha consigo mesmo, numa oralidade audível a quem estivesse ali pelas redondezas.
Como era, e continua a ser, prática comum à generalidade dos homens, o meu pai, todas as manhãs, cumpria a preceito um mesmo ritual, o de “fazer a barba”. Tratando-se de uma tarefa individual, esta operação, em contexto doméstico, é, em regra, realizada isoladamente. Ora estando alguém sozinho, entregue a uma operação rotineira, e calculo que aborrecida, que ainda demora largos minutos, e que coloca o indivíduo num confronto direto consigo mesmo frente a um espelho, é natural que a sua mente vá divagando para fora, senão mesmo para longe, daquelas “quatro paredes”.
 
Devia ser o que acontecia com o meu pai, pois enquanto cumpria este ritual estava quase sempre a falar sozinho. Acontecia, por vezes, pôr-me a ouvir aquela algaravia, meia conversa, meio pensamento. Mas, claro, aquela conversa não fazia sentido nenhum para mim, porque, muito provavelmente, as coisas de que o meu pai falava eram “lá coisas dos adultos” às quais eu não atribuía grande significado, mas principalmente porque quando se fala sozinho omitem-se frases e ideias, isto é, algumas frases são ditas mas outras ficam por dizer, detêm-se apenas dentro do pensamento. Para quem ouve, e não tem acesso aos tais pensamentos por dizer, ficam sempre elementos de fora e o discurso, incompleto, surge confuso.
E assim acabava sempre por desistir de ouvir aquela estranha conversa que não adiantava nada, pois nunca consegui descobrir nenhum segredo importante (nem sem ser importante) por essa via. Mas antes de me ir embora, fazia questão de passar pelo meu pai para o “surpreender”. Dizia-lhe, então, com alguma satisfação pelo facto de eu o ter “apanhado” a falar sozinho:
- O pai está a falar sozinho…!
E o meu pai respondia-me sempre, sempre, o mesmo:
- Não. Está a falar com a Sarita.
 
Era exatamente com estas palavras, referindo-se a si próprio na terceira pessoa e tratando-me, como sempre me tratava, por “Sarita”, que ele se “desculpava” sempre.
Portanto, o meu pai nunca falava sozinho, pois quando confrontado com esse facto respondia-me sempre que falava comigo. Claro que usava a mesma desculpa com os meus irmãos.
 
A verdade é que esta resposta, que ora me irritava, ora me divertia, fazia parte da natureza do meu pai. Ele tinha um sentido de humor entre o brincalhão e o trocista, às vezes até uma ironia cortante, de “homem beirão”, como vim a perceber mais tarde, no contacto que fui tendo com as pessoas da sua terra natal, Vila Meã.
Com todas as suas virtudes, e com todos os seus defeitos, sempre apreciei nele aquela combinação de humor e de ironia, algo parecido com aquilo que só a genialidade de um Eça de Queirós é alguma vez capaz de pôr em palavras e em histórias que permanecem intemporais para todos nós.
 
Não herdei esta sua caraterística. No entanto, recebi outras que sempre orientarão a minha vida, como também orientaram a dele, e as quais sempre lhe agradecerei como uma herança de muito valor: o sentido ético da responsabilidade e do compromisso, assim como o valor do trabalho, de onde retiramos, mais do que aquilo que nos sustenta, uma forma de ser.
Saudades. Tanto a dizer…
“Sarita”


Excertos de um postal de Natal do “pai amigo, António”, enviado de Luanda em dezembro de 1976, danificado pelas andanças do tempo. O tempo gosta de danificar postais para que eles possam ficar sempre novinhos na nossa memória.
 
 
 

 

segunda-feira, 7 de abril de 2014

O mestre da liberdade


 
Espinosa, um verdadeiro príncipe no reino da filosofia, distinguiu no seu Tratado Político entre "potentia" e "potestas", a potência, poder para, poder de e o poder sobre (o outro). Investir no segundo despoja-nos do primeiro. Apesar das aparências nos dizerem o contrário, todos os tiranos (nos quais se incluem os “mercados”) são impotentes e escravos que perderão a sua vida para defender o poder que inevitavelmente lhe escapará.
 
Espinosa é o filósofo da liberdade, que nos alivia do peso esmagador da tirania e da servidão do imaginário da transcendência, do imaginário do medo e do terror (medo de Deus, medo dos homens, medo do desejo, medo dos governantes, medo da mudança), que nos faz compreender os afetos em vez de maldizê-los, que nos convida à alegria do pensamento e a descobrir que a liberdade é a potência do corpo e da mente.
 
Na sua obra, Espinosa procurou descobrir a servidão humana, em todas as suas formas, ilusoriamente imaginadas como liberdade. De tal maneira que a pergunta que colocou resume todo o programa da filosofia política: “Por que razão os homens perseguem a servidão como se procurassem a liberdade?” (Espinosa, via Deleuze e Guattari, em O Anti-Édipo, Capitalismo e esquizofrenia).  
 
Na  construção da sua resposta procurou caminhos pelos quais a verdadeira liberdade pudesse tornar-se desejada e acessível a todos os seres humanos. Localizou na sua época os lugares onde se alojavam as causas da servidão: superstição religiosa, tirania teológica, despotismo político e ignorância. As causas dessa servidão encontrou-as em nós mesmos enquanto seres passionais. Indagou, então, o que poderia ser feito para governar as paixões de maneira a desfazer a superstição religiosa, quebrar a tirania teológica, derrubar o despotismo político e alcançar o saber verdadeiro, oferecendo a sua própria filosofia como expressão desse caminho libertador.
 
 
A 30 de julho de 1881, um outro filósofo, Nietzsche, escreveu ao seu amigo Franz Overbeck um bilhete-postal dando conta das suas leituras sobre Espinosa e de quanto isso o inspirou.
 
Por essa altura, Aurora acabara de sair e Nietzsche, instalado em Sils-Maria, está prestes a dar início ao Zaratustra. Entre outras solicitações, pede a Overbeck dois volumes da biblioteca de Basileia, um deles é o volume sobre Espinosa de Kuno Fischer, um professor de filosofia de Heidelberg que escreveu a História da Filosofia Moderna. Overbeck atendeu ao pedido e Nietzsche lançou-se à leitura.
 
No postal que dirigiu ao seu amigo, que lhe fizera a gentileza de obter o livro, Nietzsche fará uma confissão comovida do efeito que aquele encontro, para lá das “diferenças enormes”, lhe provocou. Deixa salientar a alegria incontida do encontro, da passagem “da solidão para a dualidade”, como a alegria de um soldado que, sozinho e entrincheirado, encontra um companheiro de luta.
No postal que escreve em Sils-Maria ao seu amigo, diz-lhe Nietzsche: “estou inteiramente espantado, inteiramente encantado! Tenho um percursor e que percursor! Eu não conhecia quase nada de Espinosa (mas agora vejo que) a sua tendência geral é idêntica à minha: “O conhecimento é o mais potente dos afetos”. (Friedrich Nietzsche, A Franz Overbeck em Basileia (cartão-postal), Sils-Maria, 30 de julho de 1881”)

 
Foi assim que o filósofo alemão resumiu o poder que o ato de conhecer tem sobre a vida de um indivíduo. No século XVII, Espinosa tinha enunciado uma afirmação semelhante.

 
Galileu, outro verdadeiro príncipe no reino da ciência, resumiu, de certa forma, toda a força da "potentia" criadora quando afirmou, em condições pessoais particularmente duras e complicadas: “contudo, ela move-se”.
E o que a faz mover é também o conhecimento, “o mais potente dos afetos” porque através dele o ser humano é capaz de descobrir forças e poderes para além dos seus, acabar com formas de servidão e modificar a (sua) realidade.
 
O poder também se diz de potentia e não somente de potestas.

 

Referência Bibliográfica

Nietzsche, Friedrich, “Friedrich Nietzsche, A Franz Overbeck em Basileia (cartão-postal), Sils-Maria, 30 de julho de 1881”, p. 190, in Santiago, Homero (2011). Entre Servidão e Liberdade. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana
 
 
 

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Ainda Miró: poupar dinheiro aos contribuintes?

Como aceitar o argumento do governo do “poupar dinheiro dos contribuintes” para pagar uma dívida (impagável) face ao que já foi dado aos bancos e face à importância artística de semelhante património para o país?
 
Com a venda dos quadros do Miró, o governo tenciona poupar 150 milhões de euros aos contribuintes.
Ora, a nacionalização do (prejuízo do) BPN já custou aos contribuintes portugueses 6 mil milhões de euros.

E na Europa, desde 2008 até 2012, só em apoios “implícitos” (fora as ajudas diretas), os bancos já custaram aos contribuintes europeus 1,3 biliões de euros, que representa 10,3% do PIB europeu (ou seja 10,3% da riqueza produzida pelos europeus foi para salvar bancos!!).


Ver Relatório "Subsídios implícitos no setor bancário da União Europeia" em:


 

Blues para Miró: quando Duke Ellington e Miró se encontram

Só para dizer (e ouvir) que num certo dia a lenda do jazz tocou para Miró: Duke Ellington ao piano e Miró à escultura. Mágico.
 


 

Como se víssemos tudo pela primeira vez (Miró)


Joan Miró, La Masía
 
 
A infância é um sentimento em que todas as coisas regressam à luz originária.
 
Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias, 1928
 

Miró desde o início dos seus trabalhos encontra-se imerso na procura de um conceito de pintura ligado ao originário. Não se trata de procurar a origem no mundo idealizado, como o mundo helénico, mas nas suas verdadeiras raízes originárias, o “regresso a uma luz originária”, reinventar uma represntação do mundo com linhas muito simples.


O seu pai tinha uma pequena propriedade rural em Montroig, na Catalunha, onde Miró, (que nasceu em Barcelona), passou largas temporadas desde 1911. Nesse local o pintor recuperou de um momento depressivo e de um quadro de febre tifoide aos 18 anos. “Montroig é a força que me alimenta, o choque primitivo a que sempre regresso”.

 
Críticos e historiadores da arte contemporânea apontam o quadro La Masía (1920-1921), ainda no período figurativo, como estando na origem das formas ditas mironianas, e o próprio Miró considerava ser La Masía (A Quinta) a fundação e a chave para todo o seu trabalho.
 

Na pintura, onde a calma e imobilidade reinam, o tempo parece suspenso, na eterna leis da vida no campo, se não fosse a primeira página do Jornal de Paris – L’Intransigeant – pintado no quadro como um corpo estranho, junto a um regador, criando um par dissociativo de objetos.

 
O quadro desenvolve-se a partir do eixo do eucalipto, a árvore que centra toda a representação. À esquerda vemos a fachada da casa. Da porta de entrada podemos ver a parte posterior de um asno. Do lado oposto, à direita, centrado sob os ramos da árvore, está representado o galinheiro, emoldurado por um retângulo de cor vermelha.

A parede do galinheiro foi retirada para que visualizássemos o seu interior.

A árvore nasce de um grande círculo negro, círculo estaria relacionado com as forças renovadoras que vêm da terra. De cada lado do círculo aparecem outros dois círculos: o sol, simbolizado na roda do carro, pintado de vermelho, e a lua, à direita do quadro.

Em relação à iconografia gótica catalã, temos no espaço enquadrado pintado de vermelho, e dentro do espaço desse galinheiro, os motivos que se relacionam com a crucificação e paixão de Cristo, representando a dolorosa despedida das coisas do mundo visível, e o nascimento para outro espaço de significados, uma nova visão da pintura.

As “armas de Cristo” estão aqui representadas: a escada, o galo, o cordão amarrado e a coluna. As demais armas são indicadas: os ramos eriçados de espinhos fazendo referência à coroa de espinhos, o comedouro alude às moedas de ouro e a enxada ou instrumento agrícola representando a lança. Dentro dessa iconografia temos também os animais, onde a cabra e o coelho representariam o princípio de renovação cíclica da vida.

Na frente do galinheiro a vida brota em cada pequeno elemento, como o caracol e o lagarto que vão desempenhar um papel crucial no desenvolvimento das formas mironianas.

 No caminho que vai das lajes até ao tanque, vemos a camponesa nas primeiras luzes do dia. Ao lado temos uma estranha figura nua, agachada sobre a terra que sugere um homúnculo, homúnculo que aparece no Fausto de Goethe, e simbolizaria o caminho da transmutação espiritual para a culminação da obra. Atrás, a roda d’água gira e gira para extrair a água das profundezas. As sete marcas pintadas no começo do caminho são, junto com o arbusto, o cachorro e a letra alfa que forma uma pequena mesa de madeira, a entrada alegórica que indica esse novo começo da arte mironiana.



Para a próxima que nos sentirmos tentados a dizer “até o meu filho fazia isto”, quando virmos o traço "infantil" de Miró...
 

Referências

Balsach, Maria Josep (2007). Joan Miró. Cosmogonias de um mundo originário (1918-1939). Barcelona: Galáxia Gutenberg; Circulo de Lectores.

Nishikawa, Eunice, Miró e o originário: uma inscrição na análise de uma criança. São Paulo. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v43n78/v43n78a10.pdf


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

"É fazer as contas"

Dívida sobe no mínimo 6000 milhões com reclassificação de empresas do Estado. Mais aqui.

Enquanto isso a "Despesa anual de mais de 850 milhões com pensões vai desaparecer do défice". Mais aqui.


O “novo Sistema Europeu de Contas ("o conjunto de regras que definem como é que cada país deve calcular indicadores como o PIB, o défice público ou a dívida pública") vai conduzir à inclusão de mais entidades no perímetro” da dívida. A dívida "aumenta".
 
Mas, por outro lado, "desaparecem" despesas, "uma ajuda preciosa ao Governo na tentativa de atingir o objectivo de défice de 4% em 2014".

Pois…, os números são objetivos mas o resultado depende da pessoa que faz (ou manda fazer) a conta.
 
Torturem os números que eles confessam”!



terça-feira, 21 de janeiro de 2014

L’air du temps


OPERAÇÃO FURAÇÃO
No final dos anos 90, era “chique, era bem, era inteligente, era sofisticado, era distintivo, era de classe social superior” fugir ao fisco. Não através da corriqueira evasão fiscal, mas sim pelo “planeamento ou elisão fiscal”, que nada tinha a ver com a evasão. Nesse tempo, até os “fiscalistas”, os especialistas, “sorriam com um esgar de complacente superioridade quando os neófitos perguntavam se X conduta não constituía um comportamento criminoso”. Continuar a ler aqui

Estas palavras (a “linha de argumentação que o advogado Tiago Vaz Mascarenhas, acusado de 16 crimes de fraude fiscal qualificada no primeiro caso da “Operação Furacão”, apresentou a sua defesa no Tribunal Central de Instrução Criminal”) são absolutamente extraordinárias! Mas talvez mais extraordinário seja o facto delas corresponderem a uma certa verdade. “À data dos factos imputados na acusação (1999-2003) o crime de fraude fiscal era desvalorizado, socialmente e até grandes bancos ofereciam serviços de “planeamento fiscal” agressivo entendido”.

 
Ninguém levava a mal, portanto. Podia fazer-se, com a mesma naturalidade com que os banqueiros hoje dizem “Aí aguenta, aguenta”. É o ar do tempo, um ar fétido que se respira…

Vivia-se o rescaldo dos tempos do ícone Pedro Caldeira, o corretor da bolsa de valores portuguesa que dominava mais de 50% do mercado (pelo menos tina a reputação de ter sido responsável por 60% das operações que tinham lugar na bolsa portuguesa) e que no verão de 1992 foi detido nos EUA por alegados crimes de burla e abuso de confiança, sendo posteriormente absolvido de todas essas acusações (apenas um dos seus clientes manteve a acusação, todos os outros afirmaram que apesar do dinheiro que perderam, Pedro Caldeira deu-lhes a ganhar muito mais); Ou dos tempos de Mario Conde, o banqueiro que ficou famoso pelo «caso Banesto» que abalou a vida política e financeira espanhola no princípio dos anos noventa, e que foi condenado a uma pena de 20 anos de prisão por apropriação indevida, falsificação e burla.

Eram os tempos dos Young Urban Professional, YUP” ou "Yuppies”, jovens profissionais entre os 20 e os 40 anos de idade, em situação financeira entre a classe média e alta, que tinham formação universitária, e que seguiam as últimas tendências da moda: Sucederam à geração anterior, os hippies.

Continuam por aí.
 
 
 

domingo, 19 de janeiro de 2014

O euro, a surrealizar por aí

Revoltados com preços altos no Rio, internautas criam moeda $urreal, com imagem de Salvador Dalí


Nós já temos uma moeda surreal: chama-se “euro” e na outra encarnação chamava-se “marco” e era alemão.

Com a entrada de Portugal no euro, o país perdeu, pela primeira vez desde a sua fundação em 1143, a capacidade de criar moeda. Não dispomos de política monetária própria, não controlamos a quantidade de moeda em circulação, a taxa de juro, nem a taxa de câmbio. A soberania monetária foi transferida para uma nova instituição da União Europeia, o Banco Central Europeu, governada por tecnocratas, vindos de grandes instituições financeiras privadas, que, naturalmente, defendem os seus interesses.

Claro que isto não se aplica apenas a Portugal mas aos 18 países que compõem hoje a Zona Euro. O problema é que estes países caracterizam-se por uma enorme heterogeneidade. Os países do “centro”, geográfico e económico, como a Alemanha, (ainda) a França e a Holanda não têm os mesmos problemas nem os mesmos interesses estratégicos que os países da “periferia”, como Portugal ou a Grécia.
 

Portugal entrou no euro com uma moeda demasiado forte. Uma supermoeda surreal para uma microeconomia e as exportações tornaram-se ainda mais caras e difíceis (para quem não exporta “Mercedes” mas pares de sapatos) e as importações cada vez mais agradáveis. Tudo isto acentuou o domínio exportador alemão. Em nome de um mercado único, os países do “centro” da Europa inundaram as economias dos outros estados membros de dinheiro em troca da destruição do tecido produtivo desses países. Mais do que membros de pleno direito de uma união monetária, os países menos industrializados foram vistos como novos mercados. Nessa altura Portugal como mercado consumidor poderia representar, e representou, uma fonte de lucros e expansão para os capitais do norte. E para transformar países como Portugal em consumidores deram-lhes uma moeda estável, com credibilidade e juros baixos (a adesão ao euro significou uma enorme descida na taxa de juros).
 

Como competir com os países do “centro” que têm a mesma moeda, mas não têm, como nós, uma estrutura produtiva (a que ainda resta) muito baseada em setores tecnologicamente atrasados - mão-de-obra pouco qualificada, baixo padrão de especialização produtiva, logo exportações muito dependentes do preço?

A nossa falta de competitividade externa traduziu-se em desequilíbrios crescentes na balança de pagamentos, que foram iludidos pelo fácil endividamento (afinal pertencíamos à Europa e na carteira tínhamos euros).

 
Mas, quando o resultado nos rebentou nas mãos (défices sucessivos, preocupação dos “investidores”, subida do risco e, logo, dos juros, queda do investimento, estagnação económica e aumento do desemprego), quando nos revelámos tão vulneráveis ao abalo financeiro internacional, explicaram-nos que andámos a viver acima das nossas possibilidades, que não produzimos o suficiente para manter um Estado Social demasiado caro.
 

Não deixa de ser irónico que países como a Alemanha critique Portugal ou a Grécia, , pelo seu ‘despesismo’, quando o facto destes países ‘viverem acima das suas possibilidades’ lhe possibilitou gerar um excedente comercial que permite que o seu governo tenha défices orçamentais mais baixos (“Alemanha foi o único país da UE sem défice em 2012”. Onde pode ler-se também que “O défice mais elevado em percentagem do PIB registou-se em Espanha (10,6%), seguindo-se o de outros quatro países em dificuldades e sob intervenção externa: Grécia (com um défice de 10%), Irlanda (7,6%), Portugal (6,4%) e Chipre (6,3%).” Ler mais aqui. E Alemanha prevê défice nulo em 2015 e excedente nos anos seguintes”, Ler mais aqui.)

Grande Alemanha, sim senhor, o seu excedente na balança é o défice do vizinho. Por isso é que a zona euro como um todo tem uma balança corrente aproximadamente equilibrada com o resto do mundo. A zona euro é um jogo de soma nula.
 

Este é, portanto, o estado a que a nossa moeda surreal, com uma arquitetura que acentua as assimetrias e as desigualdades, nos ajudou a chegar e à qual estamos amarrados.

Até quando esta moeda surreal nas nossas carteiras e na nossa vida?