A infância
é um sentimento em que todas as coisas regressam à luz originária.
Teixeira
de Pascoaes, Livro de Memórias, 1928
Miró desde o início dos seus trabalhos
encontra-se imerso na procura de um conceito de pintura ligado ao originário. Não
se trata de procurar a origem no mundo idealizado, como o mundo helénico, mas
nas suas verdadeiras raízes originárias, o “regresso a uma luz originária”, reinventar uma represntação do mundo com linhas muito simples.
O seu pai tinha uma pequena
propriedade rural em Montroig, na Catalunha, onde Miró, (que nasceu em
Barcelona), passou largas temporadas desde 1911. Nesse local o pintor recuperou
de um momento depressivo e de um quadro de febre tifoide aos 18 anos. “Montroig
é a força que me alimenta, o choque primitivo a que sempre regresso”.
Críticos e historiadores da arte
contemporânea apontam o quadro La Masía
(1920-1921), ainda no período figurativo, como estando na origem das formas
ditas mironianas, e o próprio Miró considerava ser La Masía (A Quinta) a fundação e a chave para todo o seu trabalho.
Na pintura, onde a calma e imobilidade
reinam, o tempo parece suspenso, na eterna leis da vida no campo, se não fosse
a primeira página do Jornal de Paris – L’Intransigeant – pintado no quadro como
um corpo estranho, junto a um regador, criando um par dissociativo de objetos.
O quadro desenvolve-se a partir do
eixo do eucalipto, a árvore que centra toda a representação. À esquerda vemos a
fachada da casa. Da porta de entrada podemos ver a parte posterior de um asno.
Do lado oposto, à direita, centrado sob os ramos da árvore, está representado o
galinheiro, emoldurado por um retângulo de cor vermelha.
A parede do galinheiro foi retirada
para que visualizássemos o seu interior.
A árvore nasce de um grande círculo
negro, círculo estaria relacionado com as forças renovadoras que vêm da terra.
De cada lado do círculo aparecem outros dois círculos: o sol, simbolizado na
roda do carro, pintado de vermelho, e a lua, à direita do quadro.
Em relação à iconografia gótica
catalã, temos no espaço enquadrado pintado de vermelho, e dentro do espaço
desse galinheiro, os motivos que se relacionam com a crucificação e paixão de
Cristo, representando a dolorosa despedida das coisas do mundo visível, e o
nascimento para outro espaço de significados, uma nova visão da pintura.
As “armas de Cristo” estão aqui
representadas: a escada, o galo, o cordão amarrado e a coluna. As demais armas
são indicadas: os ramos eriçados de espinhos fazendo referência à coroa de
espinhos, o comedouro alude às moedas de ouro e a enxada ou instrumento
agrícola representando a lança. Dentro dessa iconografia temos também os animais,
onde a cabra e o coelho representariam o princípio de renovação cíclica da
vida.
Na frente do galinheiro a vida brota
em cada pequeno elemento, como o caracol e o lagarto que vão desempenhar um papel
crucial no desenvolvimento das formas mironianas.
No caminho que vai das lajes até ao tanque,
vemos a camponesa nas primeiras luzes do dia. Ao lado temos uma estranha figura
nua, agachada sobre a terra que sugere um homúnculo, homúnculo que aparece no Fausto
de Goethe, e simbolizaria o caminho da transmutação espiritual para a
culminação da obra. Atrás, a roda d’água gira e gira para extrair a água das
profundezas. As sete marcas pintadas no começo do caminho são, junto com o arbusto,
o cachorro e a letra alfa que forma uma pequena mesa de madeira, a entrada
alegórica que indica esse novo começo da arte mironiana.
Para a próxima que nos sentirmos tentados a dizer “até o meu filho fazia isto”, quando virmos o traço "infantil" de Miró...
Referências
Balsach, Maria Josep (2007). Joan
Miró. Cosmogonias de um mundo originário (1918-1939). Barcelona: Galáxia Gutenberg;
Circulo de Lectores.
Nishikawa, Eunice, Miró e o originário: uma inscrição na
análise de uma criança. São Paulo. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/jp/v43n78/v43n78a10.pdf
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