Falar para um candeeiro...

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A República segundo Carolina, a nossa “avó” rebelde



Carolina Beatriz Ângelo (1878 / 1911), porque ontem foi dia de eleições.



Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em Portugal. A primeira e a única que no ano de 1911 conseguiu (é a palavra certa) votar.

Estávamos em março de 1911, a jovem república portuguesa ainda não tinha sequer um ano de idade, quando saiu a Primeira Lei Eleitoral do Regime Republicano.

Quem podia votar? Segundo a lei, «os cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família».

Ora, sabe-se que gramaticalmente, o plural masculino das palavras inclui o género feminino. 
Huumm… isto interessa-me - terá pensado Carolina, que tinha mais de 21 anos, era médica, viúva e tinha uma filha menor a seu cargo. Portanto era em tudo um “cidadão português, com mais de 21 anos, que sabia ler e escrever e era chefe de família”!

Embora Carolina não estivesse contemplada na lei, a verdade é que o texto legislativo também não excluía explicitamente as mulheres.  Afinal, a palavra "cidadãos" também inclui as "cidadãs".

No dia 1 de abril do mesmo ano, dirigiu um requerimento ao presidente da Comissão de Recenseamento do Segundo Bairro de Lisboa no sentido do seu nome «ser incluído no novo recenseamento eleitoral a que tem de proceder-se».  A inédita pretensão foi remetida para o Ministro do Interior, o grande republicano António José de Almeida, que não deixou passar (os homens a quem se erguem grandes estátuas, também têm “pés de barro”).

Sem “baixar os braços”, a pretensa eleitora apresentou um recurso em tribunal, argumentando que a lei não excluía expressamente as mulheres.

Assim, no dia 28 de Abril, o juiz João Baptista de Castro proferia a sentença que ficaria para os anais da nossa História: «Excluir a mulher (…) só por ser mulher (…) é simplesmente absurdo e iníquo e em oposição com as próprias ideias da democracia e justiça proclamadas pelo partido republicano. (…) Onde a lei não distingue, não pode o julgador distinguir (…) e mando que a reclamante seja incluída no recenseamento eleitoral».  



Um pormenor: quis a força inexorável da fortuna (ou outra, não sei), que o juiz a quem coube proferir a referida sentença, fosse nada menos do que pai de Ana de Castro Osório!


Carolina com Ana de Castro Osório


Passado um mês, no dia 28 de Maio de 1911, nas eleições para a Assembleia Constituinte, Carolina Beatriz Ângelo tornou-se a primeira mulher portuguesa a exercer o direito de voto (no nosso país e no resto da Europa do Sul).

A eleitora n.º 2513 apresentou-se na assembleia de voto do Círculo n.º 34 de Lisboa Oriental, sita no Clube Estefânia, e votou!

Ainda assim com um pequeno incidente, relatado pela própria no jornal A Capital: «No final da primeira chamada, o presidente da assembleia [de voto], Sr. Constâncio de Oliveira, consultou a mesa sobre se deveria ou não aceitar o meu voto, consulta na verdade extravagante, porquanto, estando recenseada em virtude duma sentença judicial, a mesma não tinha competência para se intrometer no assunto». 

Carolina, a eleitora. Com o gesto de colocar o boletim de voto numa urna fez História. De resto, o caso processo mereceu prolongado alarido mediático e a sua fotografia surgiu nas primeiras páginas da imprensa. Num dos jornais lia-se: «‘Se a lei não nos abre a porta, também não nos põe na rua’ - Assim o entende uma denodada sufragista portuguesa».

O que Carolina deve ter dado de entrevistas e autógrafos.

Mas, os republicanos rapidamente contra-atacaram. O caso “Carolina” mostrou aos governantes da república a necessidade, que teriam julgado indispensável, de mostrar às mulheres o seu lugar. Não lhes deve ter ocorrido que fosse necessário explicar o óbvio carácter masculino da política portuguesa (até porque logo na sessão inaugural da Assembleia Constituinte (19 de Junho de 1911) ficou declarada a “cláusula de masculinidade” para a entrada no parlamento).

Só para homens!

Assim, em 1913, surgiu um novo código Eleitoral, que dizia o seguinte: «são eleitores de cargos legislativos os cidadãos portugueses do sexo masculino maiores de 21 anos ou que completem essa idade até ao termo das operações de recenseamento, que estejam no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, saibam ler e escrever português, residam no território da República Portuguesa». Shame on you, avôs republicanos.

As mulheres portuguesas teriam de esperar pelo Estado Novo, pelo ano de 1931, para lhes ser concedido o direito de voto e, ainda assim, de forma precária: apenas podiam votar as que tivessem cursos secundários ou superiores, enquanto para os homens continuava a bastar saber ler e escrever. 

A lei eleitoral de Maio de 1946 alargou o direito de voto aos homens que, sendo analfabetos, pagassem ao Estado pelo menos 100 escudos de impostos e às mulheres chefes de família e às casadas que, sabendo ler e escrever, tivessem bens próprios e pagassem pelo menos 200 escudos de contribuição predial…

Em Dezembro de 1968 foi reconhecido o direito de voto político às mulheres, mas as Juntas de Freguesia continuaram a ser eleitas apenas pelos chefes de família. Só em 1974, já depois do 25 de Abril, seriam abolidas todas as restrições à capacidade eleitoral dos cidadãos tendo por base o género. 

  
É evidente que sabemos por que razão os ilustres republicanos se opuseram ao voto feminino quando ambos os movimentos políticos (o republicanismo e o feminismo) eram ideologicamente tão próximos (e quando a própria Carolina Ângelo era uma defensora e ativista do republicanismo).

Podemos encontrar a explicação para esta rejeição no anticlericalismo do movimento republicano, que ao reconhecer a mulher como muito religiosa, reconhecia-a também como facilmente influenciável pela igreja. Existia um enorme receio da influência que os padres pudessem ter nas decisões políticas das mulheres.

Se a monarquia não se preocupou com a educação das mulheres, a República acordou com medo da sua ignorância.

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Em Julho de 1911, Carolina escrevia as suas últimas vontades: «Por ocasião do meu falecimento, desejo que me seja feito enterro civil. (…) Peço que, logo depois da minha morte, me coloquem em qualquer compartimento de casa sem sinal algum de luto e enfeitem tudo com plantas verdes, que eu tanto amo». 

Morreu subitamente, no dia 3 de Outubro de 1911, tinha apenas 33 anos. “Viveu muito, mas em pouco tempo”.

Hoje existe um hospital com o seu nome.




domingo, 29 de setembro de 2013

Guardas, prendam a má língua!

Elliott Erwitt, Metropolitan Museum

Papa confia nova tarefa aos guardas do Vaticano: combater a má-língua

“Não à discórdia”, uma vil “tentação que agrada ao diabo, contra a unidade”, diz o papa.

Onde é que eu já ouvi isto?

É exatamente isto que oiço nos discursos dos nossos políticos quando apelam ao "consenso", à “salvação nacional”, melhor dizendo, ao pensamento único. Também eles querem esconjurar a “discórdia”, afastar a “tentação que agrada ao diabo”, entregar a mediação das forcas sociais e políticas aos “guardas”, para “defenderem as portas e as janelas”.
 
A política  é discórdia, é oposição, são "portas abertas". Os espaços "consensuais", aparentemente destituídos dos seus conflitos e desentendimentos inerentes, são lugares apolíticos, são espaços mortos. O “desentendimento” é da ordem do político, o conflito e o dissenso caracterizam a própria vida pública.
 
Os sistemáticos apelos de todos estes "políticos", portugueses e europeus para o “consenso” como a solução para o país, são a própria negação do político, “o que o consenso pressupõe portanto é (...), em suma, o desaparecimento da política” (Jacques Rancière (1996), O desentendimento. São Paulo: Editora 34, p. 105).

O dissenso, não é simplesmente o conflito de interesses ou de valores entre grupos, caricaturalmente apresentado como “intriga”, “calúnia” ou “má-língua”, mas, mais profundamente, é o que possibilita a aparição de certos recortes do mundo que não são evidentes, que não são ditos, que têm que ser construídos.
 
Quando aqueles que habitualmente não têm o direito à palavra pela imposição do silenciamento (silêncio como interdição) se apropriam desse direito, surge a "política" na sua expressão mais verdadeira de acontecimento que perturba e reconfigura a distribuição “consensual” do direito à fala.
 
E hoje é dia de “dizer”.

 

sábado, 28 de setembro de 2013

Tenta outra vez. Fracassa de novo. Fracassa melhor.


Tenta. Fracassa.
Não importa.
Tenta outra vez.
Fracassa de novo.
Fracassa melhor.
 Samuel Beckett
First they ignore you, then they laugh at you, then they fight you, then you win.
Mahatma Gandhi
 
 
Corria o verão de 1993 quando, após sete anos de trabalho, o matemático e professor da Universidade de Princeton, Andrew Wiles anunciou em Cambridge ter encontrado uma demonstração para o “teorema de Fermat”.
Pouco tempo depois é verificada uma pequena falha. Wiles retira-se por mais um ano e, finalmente, surge com a demonstração reformulada (Wiles começou a interessar-se pelo enigma matemático mais famoso dos últimos séculos quanto tinha cerca de 10 anos!).
Em novembro de 1994, depois de passarem a “pente fino” as suas 200 páginas, a demonstração é definitivamente aceite pela comunidade científica, ou mais precisamente pelas poucas pessoas no planeta que estariam capazes de seguir o raciocínio, tal era a complexidade e o rigor técnico da demonstração.
 
Mas a verdade é que a longa “noite” dos 359 anos de busca pelo “santo graal” matemático havia chegado admiravelmente ao seu fim. Todas as tentativas, erros, acertos produziram, finalmente, um resultado e o senhor que no século XVII se lembrou de criar este imbróglio, o senhor Pierre de Fermat (que ainda por cima era jurista e magistrado e dedicava-se à matemática apenas nas horas vagas!), podia “descansar em paz”.
 
Para além da descoberta, que é brilhante, fica ainda um outro brilho maior: “foi fundamental que a hipótese não tivesse sido abandonada durante os três séculos em que foi impossível demonstrá-la. A fecundidade desses fracassos, da sua análise, das suas consequências, estimulou a vida matemática. Nesse sentido, o fracasso, desde que não provoque o abandono da hipótese, é apenas a história da justificação dessa hipótese” (Alain Badiou).
 
 
Um bom exemplo que os cientistas nos dão a todos: tenta outra vez, fracassa melhor, then you win.
 


 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Que te diz o vento que passa?

 Lisboa, Parque Eduardo VII (27 de setembro de 2013)

Adensam-se as nuvens e os maus ventos pairam sobre Portugal, “um vento (que não) cala a desgraça, um vento que tudo diz”.

Muito simbólico o estado infeliz desta pobre bandeira, que é a nossa. (daqui)

 
Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?
Que é, vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?
(…)
 Fernando Pessoa in O guardador de rebanhos
 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A estupidificação da mercadoria



 
E por que não a atitude "arrojada" de desafiarmos uma verdadeira lei da física? A verdade é que algumas pessoas (... vá, mulheres), conseguem mesmo "ignorar" o centro de gravidade, deslocando-se graciosamente (imagine-se na calçada lisboeta) com uns bons centímetro a mais.

Às vezes há danos colaterais, como nesta senhora.

Vou ficar ansiosamente à espera das novidades para este Outono-Inverno.


terça-feira, 24 de setembro de 2013

"Tu, pour moi, viens de charrette" (O verdadeiro artista)

Hoje no final de uma aula fui abordada por dois alunos da turma, já no pátio do recreio. Dizia-me um deles que o outro tinha descoberto uma fórmula infalível de ganhar todos os debates (na aula falou-se da argumentação). A fórmula, disse-me o aluno, é esta: no debate, terminar as intervenções sempre com um “porque não?!”

Huumm… este rapaz vai longe. Havemos de vê-lo comentador de política ou de economia na televisão ou mesmo candidato a presidente da Câmara Municipal da capital do nosso país.

Se és um jovem ambicioso e pretendes aprender a arte do “se não consegues vencê-los, confundi-os”, aqui fica um verdadeiro mestre, um homem com “parafusos antes do tempo”. 

Ora vê como se faz. Profundo.



segunda-feira, 23 de setembro de 2013

É oficial. O pai natal não existe.


Para os simples mortais, existe uma espécie especial de seres humanos que vivem de forma etérea num Olimpo. Um dia, no entanto, descobrimos que os grandes génios da humanidade, como Orson Welles (na fotografia com Peter Bogdanovich) também utilizam o carrinho de compras. É difícil encontrar melhor imagem para a expressão de Max Weber quando fala do “desencantamento do mundo” do que ver Orson Wells a fazer compras num supermercado.

Mas não fica por aqui. Há tempos encontrei também uma versão infantil e inofensiva de Marx metamorfoseado em boneco de peluche e do mítico “Che”, ícone da revolução e ídolo de tantas gerações (pessoalmente, tenho muitas reservas), transformado em porta-chaves.

Um dia as revoluções transformam-se em souvenirs, arrumados em prateleiras por esse mundo fora.

Definitivamente, o pai natal não existe. 

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança

 Alfred Eisenstaedt, 1943


Há um ponto que se tornou central no capitalismo contemporâneo: a propriedade intelectual.

A propriedade intelectual é a transformação do conhecimento humano coletivo em mercadoria por meio da apropriação privada. Cada vez que um grupo farmacêutico, por exemplo, regista uma patente, apropria-se dos conhecimentos produzidos socialmente e, provavelmente na maioria dos casos, financiados com dinheiros públicos. Aquele produto que é patenteado é sempre o resultado de uma acumulação de saberes que ultrapassa em muito as pesquisas do grupo que a patenteia. Como sabiamente diz um provérbio africano “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. A missão de educar e ensinar não é da exclusiva competência dos agentes educativos, mas muitos outros elementos sociais participam nesse trabalho.
 
De cada vez que os grandes grupos registam uma patente, transformam esse saber social numa renda, logo num instrumento de dispõe de poder social, económico e político. A escola (pública) e todos as outros elementos que socialmente participaram desse longo processo do conhecimento desaparecem. Fica apenas a patente.
 
 
Vale a pena relembrar também o poema de Brecht:

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras? (…)
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? (…)
O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos,
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?


 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A escola e a sua mercadoria

Fotografia de Alfredo Cunha


O vocacionalismo é o termo que designa a subordinação da educação às necessidades da economia e que está na origem do processo de profissionalização do sistema educativo.

Este “mandato” surge no início da década de 80 quando a maior parte dos países industrializados se vê confrontada com a desaceleração do crescimento económico e com elevadas taxas de desemprego juvenil. Agora, tal como nesse período, a Educação foi chamada a desempenhar um papel fundamental para aumentar a competitividade das economias e para combater o flagelo do desemprego.

 
O raciocínio é o seguinte: “mais educação profissionalizante = mais recursos humanos qualificados = mais competitividade = mais riqueza = redução do desemprego e dos seus efeitos”.


Sendo difícil demonstrar a existência de uma relação direta entre os elementos da igualdade acima referida (por ausência de suporte empírico que a sustente), parece mais claro que o vocacionalismo é a forma mais eficaz de assegurar o cumprimento de uma escolaridade de 12 anos. Mas ela é também, para muitos dos jovens que a frequentam, uma escolha forçada, uma via de exclusão dos percursos “nobres” (de prosseguimento de estudos para o ensino superior), uma espécie de gueto destinado aos protagonistas de trajetórias de insucesso.
 
A educação profissionalizante cumpre, no quadro do sistema educativo, várias funções: apresenta-se como uma oferta suficientemente atraente (mais prática) para um número elevado de jovens, permitindo-lhes fazer face à desvalorização dos diplomas; ao manter durante mais tempo um maior número de jovens na escola, a educação profissionalizante contribui para diminuir as taxas de desemprego juvenil; ao ter currículos que só formalmente permitem o prosseguimento de estudos, contribui para manter controlada a base social de recrutamento do ensino superior.

A escola é cada vez mais uma empresa e a sua mercadoria é a mão-de-obra educativa. Veja-se na Portaria n.º276/2013 de 23 de agosto a matriz curricular dos cursos vocacionais de nível secundário (a Portaria n.º 292 -A/2012, de 26 de setembro, já havia criado uma experiência-piloto de oferta formativa dos cursos vocacionais para o ensino básico).

Segundo o preâmbulo da Portaria n.º 276/2013, “a introdução destes cursos visa criar condições para o cumprimento da escolaridade obrigatória, a redução do abandono escolar precoce e o desenvolvimento de conhecimentos e capacidades, científicas, culturais e de natureza técnica, prática e profissional que permitam uma melhor integração no mercado de trabalho e o prosseguimento de estudos.”

 
Que “conhecimentos e capacidades científicas e culturais”?
Que “ prosseguimento de estudos”?
E, acrescente-se, que mobilidade social?

Como diz Natália Alves, “é necessário excluir para incluir”. O problema é que quando se exclui dificilmente se consegue incluir.
  

Artigo consultado: Natália Alves, “Políticas de educação-formação para jovens: tensões e contradições”




segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O secretário que “come resgates ao pequeno almoço”

Alfred Eisenstaedt, Drum Major (1950)

Secretário-geral da UGT diz que portugueses não devem temer resgates


Este episódio já tem várias semanas, mas há notícias que, de alguma forma, se mantêm atuais.

O secretário-geral da UGT, numa bravata extraordinária, afirmou que “os portugueses não precisam de ter medo de um segundo resgate, nem têm que ter medo do que quer que seja.” Um estonteante “venham de lá esses resgates!” que fez lembrar o Buzz Lightyear, o herói do Toy Story com o seu: “Ao infinito e mais além.”

Sabendo nós da força devastadora do “ajustamento” dos programas de “resgate” e sabendo que a variável-chave do ajustamento-destruição é precisamente o Trabalho (salários, desemprego, precarização), como entender o guardião dos trabalhadores que assim dá o “peito às balas”.

O resgate é verdadeiramente temível, sim. E muito. Serve para manter esta ordem a qualquer custo, para impedir que o sistema financeiro entre em colapso, garantindo que os “investidores” permaneçam no mercado (seria trágico se todos se lembrassem de vender os títulos) e obrigando os devedores a “sinalizar” que vão pagar. O “socorro” financeiro serve para restabelecer a dinâmica, sempre ameaçada pela intrínseca “desregulação”, à custa da extorsão do trabalho e do enfraquecimento do social pelo financeiro.

Talvez quisesse dizer que, sendo temível, a nossa resposta não deve ser o medo, que, de facto, já paira. E já poisa, mobilizado por diversos fantasmas (a “perda de credibilidade”, a “salvação nacional”, com o respetivo apelo litúrgico da virtude da “paciência dos portugueses”), numa produção simbólica do inimigo. Não espanta que o medo, o instrumento que motivou a contratualidade social de tipo hobbesiano, o Leviatã, reapareça cada vez mais explicitamente (para Hobbes o “estado de natureza”, anterior ao aparecimento do Estado, é um “estado de guerra”, ao contrário de Locke que reconhece no “estado de natureza” a existência de direitos naturais).

Nem a bravata, nem o medo. Por muitas dificuldades de reapropriação do social pela sociedade, por muito difícil que seja a constituição de uma mobilização social crítica e contestatória, ela deve sempre existir, tem que existir e existe.

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer o inferno. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”


Estas são palavras de Marco Polo, postas na escrita por Italo Calvino n’As Cidades invisíveis, que foi citado por Bauman, que agora é citado por mim. É assim o conhecimento, o “mais potente de todos os afetos” e que se reparte como o meio mais eficaz contra o medo. Bravatas à parte.
 

Algumas desigualdades são mais desiguais que outras (ainda o “piropo”)

Peggy Lee



O tema já tem algumas semanas. Mas vem sempre a tempo, afinal discutimos eternamente os mesmos assuntos, nas suas múltiplas variantes. O tema aqui não é propriamente o piropo mas a forma como foi apresentado por dois comentadores habituais do jornal Expresso, à semelhança de muitos outros comentários afins.

No essencial, um e outro comentador apostaram na superficialização do problema, um deles avança até para a sua ridicularização. Superficializar, para não dizer ridicularizar, é a estratégia mais eficaz de silenciamento. Consegue apagar as relações de poder, de forma a que no debate (sobre o género ou outras questões) reste apenas o elemento ridículo e risível e depois disso, enfim, o silêncio, o não assunto. Nesta matéria, diga-se que o primeiro-ministro foi bem mais desajeitado (isto é, mais explícito) quando simplesmente decretou que "(o processo da licenciatura de Miguel Relvas) é um não assunto." (04-07-2012). Faltou subtileza.

Algo que se chame “piropo” até soa a uma coisa “engraçada”. E que mal é que pode haver numa coisa “engraçada”, numa espécie de “animação de rua”? 
Para os mais ingénuos, nada, porque acham que é um piropo. Não é. É mesmo uma forma de assédio, cuja aparente leveza de ato “simples”, que até pode ser “espirituoso” e do contexto casual e fortuito em que ocorre, só aos mais atentos revela as verdadeiras regras do jogo: o piropo é do homem, dirigido a quem ele quiser, onde e quando ele entender, e nos termos em que bem lhe apetecer. A mulher limita-se a ter que “aceitar” aquilo que não pediu. Tem que ouvir, mesmo que seja a tal “mulher honrada (que) não tem ouvidos”, (um provérbio tão inocente como o piropo). Tem que ouvir, por mais grosseiro que seja. E é sempre grosseiro porque ocorre em circunstâncias sempre desiguais, porque alguém impõe o que a outra parte não pediu nem consentiu. É este o princípio. E o que se deve discutir são princípios e não a suposta “elegância” ou a grosseria deste ou daquele piropo.

O assédio, mesmo na sua versão piropo, é a manifestação de uma relação social. E todas essas relações são, de facto, relações de poder. O poder, como tal, não existe, não é um atributo, o que existe são as relações de poder. É por essa razão que numa situação de violência doméstica a vítima pode ser o homem e a mulher a agressora. O poder não é um atributo dos atores, mas da relação. E o lugar da manifestação desse poder é o nosso mais prosaico quotidiano, o lugar onde tudo acontece na sua imediatez. Concordo assim que não há razão para legislar sobre o piropo, porque, em variados aspetos da nossa vida, o jurídico não pode, e não deve, substituir o que é função da educação e da cidadania.

Um dos comentadores decretou que “o piropo, como quase tudo o que se queira analisar nas relações entre homens e mulheres depende da forma, do contexto, da elegância, da oportunidade” – o contexto é o do não consentimento, pelo que não consigo ver a oportunidade, muito menos a elegância. O outro comentador, mais condescendente, sentenciou que o piropo “Não é tema político”. Quererá porventura dizer que não é um tema partidário - uma confusão demasiado recorrente. Um tema político será certamente, como o são todas as manifestações de poder.

As formas rudimentares produzem o silenciamento ou, na melhor das hipóteses, superficializam a discussão e o pensamento. O pequeno arbusto é a árvore possível quando não se consegue ver a floresta.


Declaração de interesses: não sou militante do Bloco de Esquerda, nem de nenhum outro partido (e não é por acaso). Também não creio ter a independência comprometida por ser mulher, porque há muitos homens que estarão de acordo. Os outros, se se esforçarem, também hão-de conseguir. 


Ao jovem aprendiz de filosofia

Quando um filósofo vai à fonte... (Na foto Martin Heidegger)


Há já muitos anos que a filosofia faz parte da minha vida. E fará sempre. Mas, que posso eu dizer aos jovens que hoje iniciam a aprendizagem da metafísica?

Resumidamente isto: ao longo dos anos fui compreendendo que todo o programa da filosofia, que se iniciou há mais de 2.500 anos, consiste em três perguntas fundamentais:

"Haverá algum conhecimento tão certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?” É a pergunta de Russell sobre o conhecimento (epistemologia);

Por que razão os homens perseguem a escravidão como se procurassem a liberdade?” É a pergunta de Espinosa, via Deleuze, sobre a ação humana (ética, axiologia, política);

Por que existe o ser e não o nada?” É a pergunta de Leibniz, retomada por Schelling e Heidegger, sobre o ser (ontologia).

E as respostas? Bem, continuamos a tentar, 2.500 anos depois. Somos todos aprendizes, portanto.
Boas ideias. Boa filosofia.