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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A República segundo Carolina, a nossa “avó” rebelde



Carolina Beatriz Ângelo (1878 / 1911), porque ontem foi dia de eleições.



Carolina Beatriz Ângelo foi a primeira mulher a votar em Portugal. A primeira e a única que no ano de 1911 conseguiu (é a palavra certa) votar.

Estávamos em março de 1911, a jovem república portuguesa ainda não tinha sequer um ano de idade, quando saiu a Primeira Lei Eleitoral do Regime Republicano.

Quem podia votar? Segundo a lei, «os cidadãos portugueses com mais de 21 anos, que soubessem ler e escrever e fossem chefes de família».

Ora, sabe-se que gramaticalmente, o plural masculino das palavras inclui o género feminino. 
Huumm… isto interessa-me - terá pensado Carolina, que tinha mais de 21 anos, era médica, viúva e tinha uma filha menor a seu cargo. Portanto era em tudo um “cidadão português, com mais de 21 anos, que sabia ler e escrever e era chefe de família”!

Embora Carolina não estivesse contemplada na lei, a verdade é que o texto legislativo também não excluía explicitamente as mulheres.  Afinal, a palavra "cidadãos" também inclui as "cidadãs".

No dia 1 de abril do mesmo ano, dirigiu um requerimento ao presidente da Comissão de Recenseamento do Segundo Bairro de Lisboa no sentido do seu nome «ser incluído no novo recenseamento eleitoral a que tem de proceder-se».  A inédita pretensão foi remetida para o Ministro do Interior, o grande republicano António José de Almeida, que não deixou passar (os homens a quem se erguem grandes estátuas, também têm “pés de barro”).

Sem “baixar os braços”, a pretensa eleitora apresentou um recurso em tribunal, argumentando que a lei não excluía expressamente as mulheres.

Assim, no dia 28 de Abril, o juiz João Baptista de Castro proferia a sentença que ficaria para os anais da nossa História: «Excluir a mulher (…) só por ser mulher (…) é simplesmente absurdo e iníquo e em oposição com as próprias ideias da democracia e justiça proclamadas pelo partido republicano. (…) Onde a lei não distingue, não pode o julgador distinguir (…) e mando que a reclamante seja incluída no recenseamento eleitoral».  



Um pormenor: quis a força inexorável da fortuna (ou outra, não sei), que o juiz a quem coube proferir a referida sentença, fosse nada menos do que pai de Ana de Castro Osório!


Carolina com Ana de Castro Osório


Passado um mês, no dia 28 de Maio de 1911, nas eleições para a Assembleia Constituinte, Carolina Beatriz Ângelo tornou-se a primeira mulher portuguesa a exercer o direito de voto (no nosso país e no resto da Europa do Sul).

A eleitora n.º 2513 apresentou-se na assembleia de voto do Círculo n.º 34 de Lisboa Oriental, sita no Clube Estefânia, e votou!

Ainda assim com um pequeno incidente, relatado pela própria no jornal A Capital: «No final da primeira chamada, o presidente da assembleia [de voto], Sr. Constâncio de Oliveira, consultou a mesa sobre se deveria ou não aceitar o meu voto, consulta na verdade extravagante, porquanto, estando recenseada em virtude duma sentença judicial, a mesma não tinha competência para se intrometer no assunto». 

Carolina, a eleitora. Com o gesto de colocar o boletim de voto numa urna fez História. De resto, o caso processo mereceu prolongado alarido mediático e a sua fotografia surgiu nas primeiras páginas da imprensa. Num dos jornais lia-se: «‘Se a lei não nos abre a porta, também não nos põe na rua’ - Assim o entende uma denodada sufragista portuguesa».

O que Carolina deve ter dado de entrevistas e autógrafos.

Mas, os republicanos rapidamente contra-atacaram. O caso “Carolina” mostrou aos governantes da república a necessidade, que teriam julgado indispensável, de mostrar às mulheres o seu lugar. Não lhes deve ter ocorrido que fosse necessário explicar o óbvio carácter masculino da política portuguesa (até porque logo na sessão inaugural da Assembleia Constituinte (19 de Junho de 1911) ficou declarada a “cláusula de masculinidade” para a entrada no parlamento).

Só para homens!

Assim, em 1913, surgiu um novo código Eleitoral, que dizia o seguinte: «são eleitores de cargos legislativos os cidadãos portugueses do sexo masculino maiores de 21 anos ou que completem essa idade até ao termo das operações de recenseamento, que estejam no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos, saibam ler e escrever português, residam no território da República Portuguesa». Shame on you, avôs republicanos.

As mulheres portuguesas teriam de esperar pelo Estado Novo, pelo ano de 1931, para lhes ser concedido o direito de voto e, ainda assim, de forma precária: apenas podiam votar as que tivessem cursos secundários ou superiores, enquanto para os homens continuava a bastar saber ler e escrever. 

A lei eleitoral de Maio de 1946 alargou o direito de voto aos homens que, sendo analfabetos, pagassem ao Estado pelo menos 100 escudos de impostos e às mulheres chefes de família e às casadas que, sabendo ler e escrever, tivessem bens próprios e pagassem pelo menos 200 escudos de contribuição predial…

Em Dezembro de 1968 foi reconhecido o direito de voto político às mulheres, mas as Juntas de Freguesia continuaram a ser eleitas apenas pelos chefes de família. Só em 1974, já depois do 25 de Abril, seriam abolidas todas as restrições à capacidade eleitoral dos cidadãos tendo por base o género. 

  
É evidente que sabemos por que razão os ilustres republicanos se opuseram ao voto feminino quando ambos os movimentos políticos (o republicanismo e o feminismo) eram ideologicamente tão próximos (e quando a própria Carolina Ângelo era uma defensora e ativista do republicanismo).

Podemos encontrar a explicação para esta rejeição no anticlericalismo do movimento republicano, que ao reconhecer a mulher como muito religiosa, reconhecia-a também como facilmente influenciável pela igreja. Existia um enorme receio da influência que os padres pudessem ter nas decisões políticas das mulheres.

Se a monarquia não se preocupou com a educação das mulheres, a República acordou com medo da sua ignorância.

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Em Julho de 1911, Carolina escrevia as suas últimas vontades: «Por ocasião do meu falecimento, desejo que me seja feito enterro civil. (…) Peço que, logo depois da minha morte, me coloquem em qualquer compartimento de casa sem sinal algum de luto e enfeitem tudo com plantas verdes, que eu tanto amo». 

Morreu subitamente, no dia 3 de Outubro de 1911, tinha apenas 33 anos. “Viveu muito, mas em pouco tempo”.

Hoje existe um hospital com o seu nome.




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