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domingo, 6 de março de 2016

A pérfida Eva ou a virgem Maria: em que ficamos sobre as mulheres?

Rembrandt, Sagrada Família (Museu Hermitage)


De uma forma geral, podemos situar a idealização e valorização da mulher-mãe, da maternidade, no século XIX. A conceção da função parental como uma função especializada, para a qual as mulheres estão especialmente aptas, é uma invenção relativamente recente e que pode ser atribuída às transformações sociais decorrentes da Revolução Industrial. No final do século XVIII, no mundo ocidental, era essencial que se criassem cidadãos (a prole) que seriam, então, a riqueza do Estado e do Capital. Garantir a sobrevivência das crianças constituía um novo valor. Iniciava-se, então, um processo de incentivo às famílias (entenda-se, às mães) para o cuidado desta fase que agora se tornara um problema: a infância.

Para cuidar das crianças, os “sujeitos-infantis” eles próprios recém-descobertos, era necessário convencer as mães a aplicarem-se em tarefas que até então estavam afastadas do seu quotidiano, numa recodificação do seu papel em face da falência do velho código familiar. A maternidade torna-se, então, valorizada e encorajada na medida em que a “mulher-mãe” assume o papel de uma “agente” vital do biopoder. E a separação entre espaço de trabalho, domínio do sexo masculino, e espaço doméstico, domínio do sexo feminino, foi um dos fatores que contribuiu para que a responsabilidade pela criação e educação das crianças fosse atribuída às mães.

Foi também por esta altura que, na Europa, aconteceram as aparições da Virgem Maria (geralmente a crianças pobres), popularizando, assim, o culto a Nossa Senhora e restaurando a importância da divindade feminina como objeto de adoração. A mulher deixava de ser relacionada exclusivamente com a figura bíblica de Eva, astuta, perversa e diabólica. Agora era também associada a Maria, a Virgem doce e ponderada, de quem se espera comedimento e capacidade de sacrifício. E assim a metamorfose da curiosa, ambiciosa e audaciosa criatura num ser modesto, cujas ambições não ultrapassam os limites domésticos do lar.

Portanto, temos assim primeiro uma desqualificação “científica e bíblica” da mulher como “Eva”, um ser pérfido e traidor, depois a sua domesticidade, que a irá vincular à maternidade de “Maria”. Hoje estão perfeitamente naturalizados discursos que põem em associação as palavras “amor” e “materno”, o que significa não só a promoção de um sentimento, mas a importância considerável da mulher dentro da esfera privada familiar (hoje “compatibilizada” com a esfera profissional, com enormes custos), ao mesmo tempo que se mantêm as representações da mulher como Eva, eternamente a desencaminhar o pobre Adão do paraíso.


É preciso alguma complacência para tolerar dois discursos tão contraditórios quanto dominadores.