Falar para um candeeiro...

quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A lição do deserto



Na prática, o recuo do Estado social transforma direitos em serviços. Os primeiros são gratuitos, ou melhor, são pagos com os impostos dos contribuintes (salário indireto); os segundos são pagos a entidades privadas (muitas vezes depois de já terem sido “pagos” como impostos).

A situação que vivemos atualmente atenta gravemente contra os direitos dos cidadãos e a conflitualidade social aumenta. No entanto, é inimaginável a dimensão que a pobreza e a tragédia podem atingir. Esta notícia choca no mais profundo do sentir humano. É deveras impressionante, nem imaginamos ser possível que coisas destas possam simplesmente acontecer.

Esquecemo-nos muitas vezes que uma parte da população mundial não tem acesso à água, enquanto a outra parte se chega a convencer que este bem nasce espontaneamente nas torneiras das nossas casas.

A água é um dos bens mais preciosos que a natureza nos concede. É um bem cada vez mais escasso e, sobretudo, é um bem público, é de todos. Embora há tempos tenha ficado a saber que na Bolívia, o neoliberalismo lembrou-se de privatizar a água da chuva (!!!) que passou a ser propriedade de um consórcio. O caso deu origem a um documentário em vídeo sobre Cochabamba intitulado “A guerra da chuva”.

Em Portugal, a privatização da água, ou como dizem, “a concessão privada do abastecimento” já começou.

A privatização vende água. Para ter lucro é preciso: reduzir os investimentos, aumentar os preços e aumentar o consumo. Rigorosamente o contrário do que deveria ser uma política de gestão de um bem fundamental à vida e escasso.

Da forma mais dramática possível, o que se lê nesta notícia é que o dono da água é o dono da vida. Que todos se lembrem disto agora que privatizam a água.
 

A guerra da água




segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O preço de uma obrigação moral

Michael Napples, Two Dollar Bill



Em 2000, Gneezy e Rustichini, estudaram um grupo de creches em Haifa, Israel, ao longo de vinte semanas. As creches abriam às 7h30 e fechavam às 16h. Se os pais não comparecessem a horas para recolher as crianças, um professor seria obrigado a sair mais tarde.
Durante as primeiras quatro semanas da experiência, os investigadores tomaram nota do número de pais que chegavam tarde todas as semanas. Depois, antes da quinta semana, com autorização das creches, afixaram o seguinte aviso:
 

 
Aviso
Multa para atrasos
A hora oficial de encerramento da cre­che é às 16 horas. A partir da próxima semana aplicaremos uma multa de 10 shekels* por cada hora de atraso aos pais que venham buscar os filhos depois da hora. A multa de será paga com a mensalidade do mês seguinte.
O diretor da creche

* 10 shekels eram equivalentes a cerca de 3 dólares americanos.

A teoria por trás da multa, diziam Gneezy e Rustichini, era clara: «Quando são impostas consequências negativas na sequência de certo comportamento, essas consequências vão produzir uma redução das ocorrências desse comportamento.» Por outras palavras, se forem castigados com uma multa, os pais deixam de chegar atrasados.
Acontece que não foi isso que sucedeu. Pelo contrário, depois de a multa ter sido introduzida, observou-se um aumento dos atra­sos dos pais, num nível quase duas vezes superior ao número inicial de atrasos.

Como explicar este aumento de atrasos?
Uma das razões por que a maior parte dos pais chegavam a horas era a sua relação pessoal com os professores e o desejo de os tratar bem. Esse desejo levava-os a ser escrupulosos com a pontualidade. No entanto, a ameaça de multa anulou essa motivação. A multa transformou a motivação moral dos pais (tra­tar bem os professores dos filhos), numa pura mercadoria (poder pagar pelo tempo extra). A punição não incentivou o bom comportamento, mas tornou-o confuso.
Daniel Pink (2011), Drive, A surpreendente verdade sobre aquilo que nos motiva
 
Até pelo exposto no post anterior, sabemos que existe uma crescente mercantilização: tudo tem o seu preço e isso normalmente é considerado "bom" em nome da “eficiência” de mercado. Porém, como vimos, mercantilizar não é um processo neutro. A mercantilização muda a própria natureza do  objeto. E não para melhor.
 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Buen Vivir - Sumak Kawsay, uma oportunidade para imaginar outros mundos

Buen Vivir - Sumak Kawsay,
uma oportunidade para imaginar outros mundos


O capítulo VI do livro El Buen Vivir - Sumak Kawsay, una oportunidad para imaginar otros mundos de Alberto Acosta,  dedicado ao “complexo desafio de construção de um estado plurinacional” apresenta como objetivo repensar e propor uma nova concepção de Estado enquanto forma de organização social e política, para além do conceito de Estado-nação Moderno e liberal.

Reconhecendo o Estado como um espaço político de dominação, Acosta afasta qualquer elemento de ligação às conceções liberais contratualistas, como a de John Locke (Estado como contrato social). Por essa razão, o autor não apresenta a questão do Estado polarizada na dicotomia habitual entre Estado e Mercado e nos efeitos da recomposição das relações entre esses dois elementos. Estado e Mercado não representam duas lógicas distintas, mas a expressão de uma mesma entidade: o Estado neoliberal baseado numa lógica de acumulação capitalista.


Mas recusa também o sentido da crítica marxista, historicamente polarizada na relação capital/ trabalho1, que, neste caso, apenas reconheceria o “problema indígena” como extensão natural de uma lógica sindical aplicada aos camponeses explorados. “Estas lutas não se esgotam na luta de classes”, uma vez que estas sociedades enfrentam também outro tipo de problemas decorrentes da sua própria estrutura social, como conflitos patriarcais, geracionais e racistas. Por exemplo, Spivak, ao teorizar o sujeito subalterno não parte de uma premissa “essencialista”, mas refere um sujeito que não ocupa uma categoria indiferenciada, mas irredutivelmente heterogénea. Se no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino ainda está mais profundamente na obscuridade.2

Nem a teoría marxista nem a teoría liberal explicam adequadamente o fenómeno do nacionalismo. As nações e o nacionalismo são produtos da Modernidade que foram criados sobretudo para fins económicos e políticos. Através do efeito de mecanismos de dominação ou de paternalismo, o neoliberalismo e o socialismo “conservador” acabam por reforçar ou, na melhor das hipóteses, manter, uma estrutura que opera, relativamente às culturas indígenas, uma tripla desapropriação: do poder, do saber e do ser (colonialidade).

O Estado dentro do sistema-mundo capitalista liberal representa o poder dominador e predatório da colonialidade, configurado num modelo de racialização e manifesto no racismo, como expressão económica, social e política. Por essa razão, os indígenas e as comunidades afro constituem grupos humanos severamente empobrecidos.


No resgate de elementos pré-capitalistas que sobrevivem aos Estados–nação modernos, Acosta propõe uma nova ontologia política, uma outra ideia de Estado e de nação que se funda na des-colonialidade do poder e  na afirmação da pluralidade de visões étnicas e culturais. Não se trata de um regresso a um “paraíso harmónico” ou a uma comunidade idealizada (menos ainda à “comunidade imaginada” de Anderson3), mas do reconhecimento de uma cidadania dotada de direitos (coletivos e não apenas individuais), com valores comunitários e verdadeiramente democráticos e reconhecendo a dimensão ontológica da natureza (cidadania ambiental).

Apesar do Estado plurinacional ter sido levado à categoria constitucional, a realidade não se altera no momento dessa inscrição mas envolve processos emancipatórios de rutura com estruturas neoliberais e lógicas de ação coloniais. Por outro lado, a plurinacionalidade não deve entender-se como nem como justaposição híbrida de visões do mundo indígenas conjugada com visões não indígenas, nem como uma parcialização do Estado, isto é, como uma espécie de reconhecimento paternalista do “indígena” ou dos “afro” como um Outro, a fala do “subalterno” numa palavra que nunca é escutada4.

 

O passo do Estado-nação ao Estado plurinacional, comunitário e autonómico representa um desafio extremamente complexo mas não impossível.

 


Notas



1 Também vários autores da tradição ocidental, pós-moderna e pós-estruturalista, opõem-se à dualização marxista capital/ trabalho. Consideram que existe uma relação de poder que se modificou em relação a essa tradição e que está desterritorializada (Deleuze e Guattari*) e opera num nível de abstração superior, embora se mantenha organizada em torno da propriedade.
A dívida, a estratégia capitalista pós-fordista, deslocou completamente o terreno da luta de classes, para um nível abstrato, universal e desterritorializado, sem distinções entre assalariados e não assalariados, ocupados e desempregados, estudantes ou aposentados, trabalho material ou imaterial. No capitalismo contemporâneo, “o objeto do seu governo é a vida social como um todo, e assim o Império apresenta-se como forma paradigmática de biopoder” (Hardt e Negri**).
Em “Império”, Hardt e Negri apresentam uma nova ordem mundial contemporânea, a que dão o nome de “Império”, a substancia política que, de facto, governa o mundo globalizado, regido por uma única lógica, a do mercado.
Se a propriedade dos meios de produção exigia a disciplina sobre o trabalho, a propriedade abstrata dos títulos de capital, distribuída pelo crédito/dívida, exige o controlo da sociedade em geral,  no alargamento dos mecanismos da produção da subjetividade que constrói e distribui a culpa que representa a “chave da captura da vida” (Agabem***).
*Deleuze, Gilles. e Guattari, Félix (2004). O anti-Édipo, Capitalismo e esquizofrenia 1. Lisboa: Assírio e Alvim
** Hard Michael e Negri, Antonio (2002). Império. Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, Rio (3ª edição)
***Agamben, Giorgio (1995). Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2007, p. 34
2 “Entre o patriarcado e o imperialismo, a constituição do sujeito e a formação do objeto, a figura da mulher desaparece, não num vazio imaculado, mas num violento arremesso que é a figuração deslocada da “mulher do Terceiro Mundo”, encurralada entre a tradição e a modernização.” (Spivak, Gayatri (2010). Pode o subalterno falar?, Belo Horizonte: Editora UFMG, p. 119)
3 Anderson, Benedict (2006). Imagined Communities, London, New York: Verso

4 Essas palavras porque não as ouvimos? Não as ouvimos enquanto elas forem apenas  tomadas na condição dos que “não são contados”: um pobre fala pobre, um imigrante fala imigrante, ele apenas faz reconhecer a sua condição. Espera-se que as vítimas se manifestem como vítimas, que os pobres se manifestem como pobres. (Ranciére, Jacques, “O filósofo da partilha, Entrevista à Revista Ípsilon, 06/04/2007)



quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Aquele (des)encontro à chuva

O filme As Pontes de Madison County (1995) conta-nos a história de Francesca Johnson e Robert Kincaid partir do exato momento em que as suas vidas acidentalmente se cruzam de tal modo que esse encontro os marcará para sempre.

Robert Kincaid, 52 anos, fotógrafo famoso da National Geographic, um estranho e quase místico viajante por todos os cantos do planeta, atravessa o calor e o pó de um verão no Michigan e chega perdido a uma quinta em busca de informações sobre as pontes de Madison County. Tem uma reportagem fotográfica para fazer e não as consegue encontrar. Finalmente encontra uma mulher a quem pede informações.
 
Francesca Johnson, 45 anos, é a mulher que vive nessa quinta. Casada com um agricultor do Iowa (o Condado de Madison é um dos 99 condados do estado norte-americano do Iowa), Francesca, noiva italiana do pós-guerra, é uma dona de casa, que vive no seu mundo, embora guarde as memórias dos seus sonhos de juventude.

O marido e os filhos de Francesca tinham acabado de partir. Estarão ausentes por quatro dias, visitando uma feira que acontece anualmente numa outra cidade. Esta é a altura do ano em que Francesca fica sozinha e deixa de viver, por breves dias, em função da sua família. E é este o momento que marca o início da história. A partir desse dia a estabilidade das suas vidas começa a desabar, numa experiência de que não estavam à procura mas que os acompanhará existencialmente para o resto dos seus dias. Provavelmente, para cada um deles as expectativas de mudança nas suas vidas pertenciam ao passado. Ou talvez não…

Este filme coloca-nos no núcleo da ação humana. A compreensão do agir humano é bastante complexa, existem múltiplas perspetivas, bem como elementos são quase impercetíveis que nos escapam. É impossível determinar todas as suas razões, acessíveis apenas àquele que age e, por vezes, nem e este. O agir humano é tão complexo que nem o próprio sujeito o compreende na sua totalidade.
 
Durante o filme somos investidos por emoções e sentimentos decorrentes da ação das personagens, mas também certamente, por dúvidas e considerações morais. Aquele encontro é uma descoberta, um daqueles momentos na vida da ordem da raridade? uma relação de amor entre duas pessoas? uma “mera” paixão? uma “traição” inaceitável para uma consciência moral(izadora)?
 
Como entender este Outro concreto, existencial, uma alteridade que perturba profundamente a vida de Francesca? Qual o significado deste encontro no sentido geral da sua vida? Um encontro que, sendo uma vivência especial, pode, afinal, acontecer a qualquer pessoa e em qualquer momento da vida.
 
Se nós fossemos o marido de Francesca, como nos sentiríamos e reagiríamos se conhecêssemos os “factos”? Na vida de Francesca não há qualquer disfunção, o seu marida não a maltrata, pelo contrário, o relacionamento de ambos decorre num quotidiano tranquilo.
 
Se fossemos Kincaid? Como compreenderíamos que o amor da nossa vida, estando à nossa frente, não está ao nosso alcance? Como conviver com a separação, ou melhor, com a impossibilidade de uma união?

E se fossemos Francesca? Como poderíamos escolher entre a família, a tradição, a vida que sempre conhecêramos e a atração por um mundo novo na figura daquele desconhecido? Como conviver com um amor para toda a vida que não será mais do que um grande segredo? Como compreender que para “permanecerem juntos” tenham que ficar separados, para não desabarem com o peso do abandono da sua família?

Talvez esta dimensão “sacrificial” do desejo seja a compreensão da verdadeira alteridade. Francesca não nega o que sente, apenas sofre e silencia a sua perda. Vai realizar a vivência desse amor com a permanência junto da sua família, numa liberdade interior extraordinária. Será na tensão desses opostos que ela vive o resto da sua vida.

E é isso que lhe irá permitir contar a história aos seus filhos. Este será o segredo de Francesca que só através do legado, de uma carta-testamento, transmitirá os filhos depois da sua morte.

 
Aquela cena à chuva

Na mais memorável e na mais suspensa das cenas de "Madison County", Francesca reencontra o seu forasteiro, o inesperado Robert do outro lado da estrada, e do outro lado do mundo, à sua espera, já depois da sua família ter regressado a casa.

Uma figura encharcada, destroçada, já quase espectral, coloca-se defronte do carro de Francesca e do seu marido antes de se dirigir ao seu carro e seguir à frente deles.

No cruzamento, o semáforo está vermelho, demora uma pequena eternidade, durante a qual Francesca, sentada ao lado do marido, vai apertando a maçaneta da porta em gestos de sufocada hesitação. O carro à sua frente… o semáforo... a luz vermelha... a vontade de partir... a indecisão, o intenso e desesperado aperto no coração (certamente partilhado com o espectador). A luz fica verde. O carro da frente demora a arrancar, espera por Francesca. Por fim, avança voltando à esquerda. O carro detrás segue outro caminho. Robert continua a sua viagem, Francesca e o marido também.

Lá fora a chuva continua torrencial.
 



 

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Obrigadinho Troika

José Malhoa
Houve um tempo em que os mercados eram assim...
 
 
Depois dos tratados europeus terem oferecido  o gigantesco negócio das dívidas soberanas aos mercados financeiros, os bancos dirigem-se a esses mesmo Estados “soberanos” como se falassem para (e de) empresas falidas. Na notícia do DN ficamos a saber que o “banco analisa”, o “banco compara”, o “banco entende que”, o “banco adverte”… O banco produz o regime da verdade, agenciado por forças económicas e políticas que o administram e ampliam e cujos ecos ouvimos todos os dias no governo e no presidente dessa “empresa falida”, com reminiscências, cada vez mais remotas de um país, de um lugar onde, por acaso, vivemos as nossas vidas.
 
O “Grande credor” (Maurizio Lazzarato) falou: Portugal vai precisar de “um apoio oficial extra, na forma de uma linha de crédito cautelar ou na forma de um segundo resgate, em vez de uma reestruturação da dívida”. Com certeza que aquilo que uma “empresa falida” mais precisa é de ainda mais crédito / mais dívida. Quem é que se lembraria de pensar no absurdo de uma reestruturação da dívida?
 
O “Grande credor” repreende: “parece que a crise política recuou, mas o mercado ainda está a avaliar se a situação na coligação governamental mudou efetivamente depois da crise política recente", adverte o Morgan Stanley”. Depois de mais dívida, o que uma “empresa falida” precisa é de mais consenso e menos “crise política, precisa de pensamento único para garantir o pagamento. O “Grande credor” sabe que uma dívida não consiste apenas em dinheiro que deve ser pago, mas em pensamentos e comportamentos que devem ser ajustados para que a dívida seja paga, para sinalizar politicamente aos credores o “bom comportamento”.

 Tudo o que definimos como “economia” é simplesmente impossível sem a produção e o controlo da subjetividade. Não basta ter uma dívida, é necessário ser implicado por ela, ser capturado pela sua ação como um devedor, seja a “coligação governamental”, o maior partido da oposição, ou mesmo o menor, os que trabalham, os desempregados ou os aposentados. Todos devem.

A consciência endividada produz-se (e reproduz-se) segundo uma lógica de intensidades, que pode até formar modos hegemónicos de ser, “linhas duras”, normalizantes, sem qualquer ponto de fuga. Senão como compreender que "alguns cidadãos auto-intitulados “Obrigado, Troika” tenham organizado uma manifestação para agradecer a ajuda dos credores internacionais".  Ironicamente, a manifestação está marcada para hoje na Praça dos Restauradores. Restaurar a soberania… o que será isso para um movimento do tipo “Obrigadinho, Troika, bates forte cá dentro”?
 
Volto sempre à mesma pergunta de Espinosa, via Deleuze: Por que razão os homens perseguem a escravidão como se procurassem a liberdade?
Sem linhas de fuga por onde se liberta o desejo, ficamos fechados por dentro. A finança constrói a relação credor-devedor”, uma relação que não se limita a influenciar diretamente as outras relações sociais, pois ela mesma é uma relação de poder, uma das mais importantes e universais do capitalismo atual, o ”motor subjetivo da economia contemporânea”. (Lazzarato)


Obrigado, obrigadinho, estamos até quinta, o peixe é fresquinho...
Nunca descobri por que razão me lembro do Shrek dizer isto no filme. Mas hoje, fez sentido.


sexta-feira, 18 de outubro de 2013

"Eles querem é soldar a dívida" (A dívida pública aos 15 anos)

"O que é a dívida (pública)?"  As respostas quando se tem  15 anos. 

O devedor continua a ser o alfa e o ómega da dívida.
A força do poder credor guarda uma intensidade e uma violência que ainda lhes escapa, que nos escapa a quase todos, que permanece invisível sob as suas, e as nossas, tolerâncias, aos 15 anos, aos 20, 30, 40, 50 anos...

As respostas:

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

"J. Pinto Fernandes, que não tinha entrado na história"


Na fotografia, Patricia Highsmith, com cara de quem já "provou" o orçamento para 2014.
 
Para quem, como eu, ainda não teve tempo-coragem-raiva-energia para o ler, e muito menos para ouvir o redemoinho de comentadores, fica  Drummond de Andrade, a dissertar  sobre  pedras e quadrilhas.

A pedra no caminho sabemos todos qual é. O passa-culpas e a quadrilha, também. O “J. Pinto Fernandes” somos todos nós, “que não tínhamos entrado na história” senão para pagar.

 
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.

Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Carlos Drummond de Andrade

 
 
 
 

sábado, 12 de outubro de 2013

Uma pergunta ao sr. Francisco

"Sofro quando o papel da mulher é reduzido à "servidão"
 

 
Este sofrimento do sr. Francisco será extensivo a todas as mulheres que ao longo de séculos e séculos têm sido, e continuam a ser, discriminadas pela igreja católica? Ou a igualdade já chegou ao Vaticano e as mulheres até já podem ser ordenadas sacerdotes e ninguém me avisou?

Lê-se ainda na notícia que, além do sofrimento, "o papa argentino explicou que existem "dois perigos sempre presentes" (...) sendo um o "promover uma espécie de emancipação que abandona o feminino e os valiosos rasgos que o caracterizam"."
Pois, promover a emancipação da mulher é um “perigo”.

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

No reino dos mercados



Subitamente, põe o boné na cabeça, levanta-se da cadeira e “for no particular reason”, Forrest Gump começa a correr. Corre, corre, corre, sem ter qualquer ponto de chegada. Não existe qualquer meta, apenas corre, “just run”.

Pelo caminho, uma e outra pessoa começam a segui-lo. Correm atrás dele, igualmente sem qualquer razão e sem mesmo saberem para onde se dirigem. Cruzam os Estados Unidos a correr, vão da costa Leste à Oeste. De repente, Forrest pára e decide simplesmente voltar para casa. Tinham passado mais de 3 anos.

Enquanto corria, foi abordado por repórteres intrigados que perguntavam se corria pela paz mundial?, pelos direitos das mulheres?, pelo meio ambiente? pelos sem abrigos?… Respondeu que não, quesó estava com vontade de correr!“.

O que se fica desta fantástica cena do filme “Forrest Gump”? A irracionalidade de uma ação  humana desprovidade de intencionalidade, uma ação sem motivação ou objetivo.  

Faz lembrar o quê? Os “mercados”!

A insanidade é exatamente a mesma: um “investidor” desata a correr... e de repente, é a  debandada, lá vão os outros todos atrás. 

E é esta praga que tragicamente governa as nossas vidas.


Mais um dia normal nos mercados…




terça-feira, 8 de outubro de 2013

Há 100 anos o mundo começava a mudar: para melhor?

Ford, Linha de montagem do Modelo T



Ford concebeu a primeira linha de montagem em 1913 e revolucionou os processos de produção na sua primeira fábrica em Michigan, tornando-se um marco de referência para os métodos de produção em série no mundo. Pagava salários mais altos que os seus concorrentes: 5 dólares por dia (ao invés de 3). Reduziu a jornada diária de 9 para 8 horas de trabalho e a semanal de 6 para 5 dias. O modelo T mudou o mundo: foi o primeiro carro de “massas”, simples, robusto, seguro e principalmente barato.
Nascia a indústria e o consumo em massa.
O conceito de “fordismo”, muito para além da experiência empresarial de Henry Ford, por mais pioneira que possa ter sido, sintetiza um todo um macrossistema ou o "modo de vida total do último auge cíclico do capitalismo” (David Harvey (1989), The Condition of Postmodernity:131).



Fordismo / welfare State: Estado social ou pacto reformista?


A experiência da regulação fordista / welfare State (já no período pós Segunda Guerra) é normalmente identificada como o apogeu dos direitos sociais em toda a história do capitalismo. O estado de bem-estar social projetou-se como a possibilidade de um “lugar ao sol” para todos, como um meio de satisfação das necessidades humanas num arranjo social, político e económico que prescindiria do fim das classes sociais.

No entanto, a regulação fordista, a experiência dos Estados de bem-estar social nunca se universalizou, ficando geograficamente restrita a alguns países mais desenvolvidos na Europa ocidental e temporalmente não durou mais que 30 anos, constituindo, portanto, uma exceção no tempo e no espaço, resultante de uma conjuntura muito especial.
Nesses países, os “trinta anos gloriosos” foram especialmente marcados por avanços sociais que resultaram numa melhoria dos salários e das condições de vida e de trabalho. Mas nunca houve uma completa abrangência da população a incluir na lista pelos direitos sociais. A prosperidade da Europa ocidental não se instalou sem manter a desigualdade social e sem o consequente afloramento dos movimentos sociais de alguns segmentos dos excluídos, daqueles que não foram convidados a participar do pacto fordista. Jovens, mulheres e trabalhadores migrantes permaneceram como força de trabalho precarizada no fordismo, entre outros grupos sociais discriminados, como negros e homossexuais.

O modelo do welfare State desponta num contexto em que o pacto fordista-keynesiano se impõe como a melhor saída para um sistema que não poderia falhar. Terminada a Segunda Guerra Mundial, num contexto de instabilidade próprio do pós-guerra, os trabalhadores não estavam dispostos a deixar as trincheiras e simplesmente voltar para as fábricas, ainda por cima num mundo em que a União Soviética saía fortalecida politicamente do confronto mundial. O final da Segunda Guerra Mundial mudou, de facto, a correlação de forças no planeta em resultado do papel determinante na vitória da URSS, o Estado socialista. Se a mão invisível do mercado conduzisse a sociedade a um “novo 1929”, o capitalismo poderia não mais conseguir deter a ofensiva anticapitalista, viesse ela das forças das forças estalinistas ou de outras forças comprometidas com o socialismo.

Para além do fator político, o modelo fordista-keynesiano também procurou evitar o erro económico que em 1929 havia conduzido o capitalismo à Grande Depressão. “Ford e Keynes haviam percebido que a aceleração dos ganhos de produtividade provocada pela revolução taylorista levaria a uma gigantesca crise de superprodução se não encontrasse contrapartida numa revolução paralela do lado da procura. (...) Mas Ford e Keynes pregavam no deserto. (...) Os temores de Ford, de Keynes e dos sindicatos diante do conservantismo liberal de Hoover, Lloyd George ou Laval encontraram por isso, na Grande Depressão dos anos 30, naquela gigantesca crise de superprodução, uma trágica confirmação", como refere Alain Lipietz.

Portanto, tornava-se agora claro que sem o aumento dos salários e dos “direitos sociais” (salário indireto) para aumentar proporcionalmente o consumo, corria-se seriamente o risco de emergir uma nova crise de superprodução.

Foi assim que o capitalismo convocou os seus representantes no aparelho estatal e nas direções da classe trabalhadora para uma “coexistência pacífica”, para negociar um regime de acumulação capaz de levantar uma economia em ruínas e assegurar que os movimentos operários não ultrapassariam o horizonte do reformismo. O resultado foi a manutenção do capitalismo, embora numa plataforma pouco usual, a começar pela notável expansão do salário indireto, responsável pelo consumo de massa de bens duráveis, o verdadeiro motor do fordismo.

Para esta inédita concertação política e económica entre os países capitalistas, também foram decisivas outras condições objetivas como o controlo do fluxo de capitais, que permitiu uma sujeição das finanças à produção. Só a partir dos anos 1970, com as políticas de desregulamentação Thatcher/Reagan é que este quadro começaria a inverter-se.

Existiu mesmo aquilo que hoje (nostalgicamente) chamamos “Estado social” ou o que existiu foi um pacto destinado, por um lado, a impedir o avanço perigoso da URSS e, por outro, a evitar uma nova crise de superprodução, elevando, para isso, os salários (diretos e indiretos) e assim promovendo (massivamente) o aumento do consumo? (E daí ao endividamento, foi um passo muito pequeno).

A experiência do pacto fordista-keynesiano, que ajustou o capital a determinados compromissos, só foi possível mediante as condições conjunturais caraterísticas do período histórico em que emergiu. Talvez a maior prova das limitações (meramente reformistas) desse pacto seja a própria História. Assim que este modelo deixou de corresponder positivamente à dinâmica da valorização e da acumulação, eis que começa a desaparecer. Ou nunca terá existido...?



Referências bibliográficas
Harvey, David (1989). The condition of postmodernity. An Enquiry into the Origins of Cultural Change. Oxford: Blackwell.
Lipietz, Alain, Audácia: uma alternativa para o século XXI, citado em Veiga, José, “O “fordismo” na aceção regulacionista”, Departamento de Economia da FEA-USP, Revista de Economia Política, vol.17, n.3 (67), julho-set. 1997, pp: 63-70)


O artista amado

As regras da internet são as regras da vida. A net apenas devolve o que é humano.
Assim mesmo, Chico Buarque, rir é bom, de nós próprios ainda melhor.



 

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

De "Próspero a Caliban"



"Portugal vai perder com atitude de subserviência face ao poder de Angola"

Portugal deve:
a)  Continuar de joelhos;
b)  Mudar de posição e pôr-se de cócoras;
c)  Continuar subserviente à cleptocracia (em qualquer posição);
d)  Pedir desculpas por ter pedido desculpas.

Sobrou algum pingo de vergonha?

O buraco da agulha


 Walker Evans



Não sei qual é o grau de dificuldade de "um camelo passar por um buraco da agulha", mas consigo saber que é muito mais fácil castigar os pobres do que  acabar com a pobreza.
A propósito desta notícia da criminalização dos pobres, aqui ficam as palavras contundentes de Zygmunt Bauman, num excerto do seu livro Vida a crédito.
Vale a pena ler.

“À medida que avançamos para longe da época das conquistas territoriais e da indústria ("fordista") de massa, os pobres já não são mais vistos como os "reservistas" da indústria e do Exército, que devem ser mantidos em boa forma, pois devem estar prontos para serem chamados ao ativo a qualquer momento. Hoje, o gasto com os pobres não é um "investimento racional". Eles são uma dependência perpétua, e não um recurso em potencial. As chances do seu "retorno às fileiras" da indústria são fracas, ao mesmo tempo, os novos exércitos profissionais, pequenos e esmerados, não têm necessidade de buchas de canhão. O "problema do pobre", outrora considerado questão social, tem sido em grande medida redefinido como uma questão de lei e ordem. Há uma clara tendência à "criminalização" da pobreza, como comprova a substituição da "subclasse" por termos como classe "baixa", "trabalhadora" ou "destituída". (Em oposição a esses termos, "subclasse" insinua uma categoria "abaixo", que está do lado de fora, não das outras classes, mas do sistema de classes como tal, isto é da sociedade.)

O propósito primário, definidor, da preocupação do Estado com a pobreza, não está mais em manter os pobres em boa forma, mas em policiar os pobres, mantendo-os afastados das ações maléficas e dos problemas, controlados, vigiados, disciplinados.

As agências para se lidar com os pobres e desocupados não são uma continuação do "Estado social", salvo pelo nome, elas são em tudo os últimos vestígios do panótico, de Jeremy Bentham, ou uma versão atualizada dos abrigos para pobres que precederam o advento do Estado de bem-estar. Essas instituições são muito mais veículos de exclusão que de inclusão; são ferramentas para manter os pobres (isto é, os consumidores falhos numa sociedade de consumidores) fora, e não dentro.

Sejamos claros a esse respeito: não se trata de uma evidência de "esquizofrenia do Estado", nem, como você sugere, da "impossibilidade de Estado". As políticas do Estado moderno, orientado na época e agora por tudo o que é percebido como parte do "interesse da economia", são agora, como antes, "respostas racionais" - muito embora ajustadas ao estado de transformação da sociedade. O "Estado social", que se sente em casa numa "sociedade de produtores", é um corpo estranho e um visitante incómodo numa sociedade de consumidores. Poucas - se é que alguma - forças sociais dão apoio a essa ideia, quanto mais para se mobilizar no sentido de forçar sua criação e manutenção. Para a maior parte de nós, na sociedade de consumidores, os cuidados com a sobrevivência e o bem-estar têm sido "subsidiados" pelo Estado para atender os interesses, recursos e competências individuais.

O que hoje se chama de "Estado de bem-estar" é apenas uma geringonça para combater o resíduo de indivíduos sem capacidade de garantir a sua própria sobrevivência por falta de recursos adequados. Trata-se de agências para registrar, separar e excluir essas pessoas - e mantê-las excluídas e isoladas da parte "normal" da sociedade. Essas agências administram algo como um gueto sem paredes, um campo de prisioneiros sem arame farpado (embora densamente contido por torres de vigia!).”

Bauman, Zygmunt (2010). Vida a crédito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, p. 51-3