Como entender os “chumbos” do Tribunal Constitucional dia
sim, dia não? A Constituição perdeu-se nos arquivos de São Bento? Esqueceram-se de a ler? Ou já nem será preciso?
O que se passa?
O que se passa?
Uma possível resposta a partir de uma leitura do Estado de exceção , um livro indispensável de Giorgio Agamben.
“(…) mas as palavras que concluem o livro soam ainda
mais grotescas:
"Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande,
menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia."
(Giorgio Agamben, Estado de exceção)
"Nenhum sacrifício pela nossa democracia é demasiado grande,
menos ainda o sacrifício temporário da própria democracia."
(Giorgio Agamben, Estado de exceção)
O conjunto de recomposições que desde os anos 80 vêm produzindo
efeitos na sociedade global contemporânea, têm forçosamente que se repercutir na
relação do capitalismo com o sistema político.
A
dívida pública, uma realidade económico-política com que muitos países, de
forma dramática, se confrontam, tem necessariamente fortes consequências e
implicações políticas devido ao facto dos governos considerarem que o seu pagamento
deve “inevitavelmente” gerar políticas orçamentais austeritárias, pressões
fiscais (sobre os rendimentos mais baixos) e cortes nos gastos, sobretudo
sociais, considerados “improdutivos”, e em decorrência disso paralisar as
despesas públicas. Paralelamente, essa política tem vindo também a justificar a
retirada e a “desresponsabilização” do Estado de algumas áreas, favorecendo
parcerias e privatizações.
A dívida, e mais especificamente a
dificuldade (entenda-se a impossibilidade)
de a pagar cria na sociedade um sentimento difuso de “emergência” económica, um
sentimento de que alguma coisa deve ser feita, ou melhor, de que tudo deve ser feito para pagar a dívida. Como se vivêssemos
num tempo não de “normalidade” mas de exceção, que suspende a garantia dos
direitos constitucionais. Tanto os políticos como os “mercados” capitalizam o
medo nebuloso que satura o ambiente existencial da sociedade, mobilizando fantasmas
(a “perda de credibilidade” e a “desonra”) e soluções (o “consenso” e a “salvação
nacional”) numa produção simbólica do inimigo.
Não é de admirar que o medo, o instrumento que motivou o contrato social
hobbesiano do Leviatã, reapareça explicitamente. ( Para Hobbes o “estado de natureza”, anterior ao aparecimento do Estado, é um estado de guerra”, ao contrário de Locke, por exemplo, que reconhece já no “estado de natureza” a existência dos direitos naturais.)
Em
situações de crise, o carater “emergencial” do estado excecional de “assistência” tende a substituir uma lógica política da
representação por uma lógica funcional, isto é, por uma regulação técnica
“flexível” do poder político e das relações sociais. De que outra forma se
conseguiriam aplicar “reformas” austeritárias?
Em abril
deste ano Bill Gross, que gere o maior fundo de obrigações do mundo (a PIMCO Fund, com quase 290 mil milhões de dólares) afirmou que “foi
um erro pensar que os mercados obrigacionistas iam exigir aos governos que
aplicassem medidas orçamentais severas de austeridade. Os investidores em
obrigações querem tanto crescimento económico como os de ações, na medida em
que demasiada austeridade leva à recessão ou estagnação." (aqui)
O que é admirável nesta afirmação não é o facto dos “investidores querem
crescimento económico” (até porque sem isso os Estados não conseguem pagar a
dívida), o que é verdadeiramente esclarecedor é a clara referência ao facto dos
mercados obrigacionistas “exigirem aos governos que apliquem medidas de
austeridade”.
A
nova forma de governo técnico, aquele que terá que atender às “exigências dos
CEOs das PIMCOs”, terá que assentar numa recentralização da administração do dispositivo
de governação estatal, senão mesmo de uma privatização da governabilidade, que
deixa de fora a esfera representativa, a democracia dos cidadãos, numa atuação bastante
próxima dos “mercados” e, como tal, muito afastada das fontes tradicionais de
legitimação do Estado moderno.
Aliás,
o capitalismo
contemporâneo, enquanto uma nova ordem imperial caracteriza-se, primeiramente, pela
ausência de fronteiras (o poder exercido pelo “Império” não tem limites) e, em segundo
lugar, por não se apresentar como conquista histórica, mas sim como uma ordem
que suspende a História. (Hard Michael e Negri, Antonio (2001). Império,
Rio de Janeiro, São Paulo: Editora Record, 3ª edição, p. 14)
Segundo
Agamben, “a origem do instituto do “estado de sítio” encontra-se no decreto de
8 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte Francesa, que distinguia entre état
de paix (a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma na sua
própria esfera), état de guerre (a autoridade civil tem que agir em consonância
com a autoridade militar), e état de siége (a autoridade militar assume o comando de todas as funções de
que a autoridade civil é investida, para a manutenção da ordem interna) (Agamben, 2004, p. 16).
O “estado de
sítio” nasce, portanto, vinculado à questão da existência da guerra e das
consequências dessa situação para a organização social, mas progressivamente vai-se
emancipando dessa situação inicial “para ser usado como medida extraordinária
de polícia em caso de desordens e sublevações internas, passando, assim, de
efetivo ou militar a fictício ou político” (idem)
Surge assim o estado de exceção.
“Assumo sem hesitar o comando do grande
exército do nosso povo para conduzir, com disciplina, o ataque aos nossos
problemas comuns (...). Pedirei ao Congresso o único instrumento que me resta
para enfrentar a crise: amplos poderes executivos para travar uma guerra
contra a emergência, poderes tão amplos quanto os que me seriam atribuídos
se fôssemos invadidos por um inimigo externo”.
Estas
palavras, retomadas por Agamben (idem,
p. 37), foram pronunciadas por Franklin Roosevelt, presidente dos Estados
Unidos, e culminaram no National Recovery Act, de 1933, que lhe delegou
um poder ilimitado de regulamentação e controlo sobre todos os aspetos da vida
económica do país, no rescaldo da crise de 1929.
Segundo
Agamben, o paralelismo entre emergência militar e emergência económica, evidente
no discurso de Roosevelt, é um traço que irá caracterizar a política durante
todo o século XX. E, mais uma vez, o estado de exceção, que deriva da necessidade de declarar uma “guerra à
emergência”, neste caso à emergência económica, vai atuar, não no sentido de
solucionar a emergência que supostamente gerou o estado de exceção, mas, ao
contrário, produzindo uma situação na qual a emergência se torna a regra e em
que já não se consegue distinguir entre
normalidade e emergência.
“Sob a pressão do paradigma do estado de exceção, é
toda a vida político-constitucional das sociedades ocidentais que,
progressivamente, começa a assumir uma nova forma que, talvez, só hoje tenha
atingido seu pleno desenvolvimento.” (idem,
p. 27).
O estado de exceção representa a possibilidade do poder
executivo deter poderes superiores, acima da própria Constituição, podendo desrespeitar
direitos fundamentais. Essa situação, característica das ditaduras, também se
manifesta, e cada vez mais, em democracias, com a ampliação de poderes do executivo.
“No nosso estudo do estado de
exceção, encontramos inúmeros exemplos da confusão entre atos do poder
executivo e atos do poder legislativo; tal confusão define, como vimos, uma das
características essenciais do estado de exceção. (idem, p. 61)
Dificilmente,
Agamben poderia ser mais explícito do que quando afirma com absoluta nitidez
estas palavras “(…) o princípio democrático da divisão dos poderes hoje está
caduco e o poder executivo absorveu de facto, ao menos em parte, o poder
legislativo. O Parlamento não é mais o órgão soberano a quem compete o poder
exclusivo de obrigar os cidadãos pela lei: ele limita-se a ratificar os
decretos emanados do poder executivo. Em sentido técnico, a República não é mais
parlamentar e, sim, governamental. E é significativo que semelhante
transformação da ordem constitucional, que hoje ocorre em graus diversos em
todas as democracias ocidentais, apesar de bem conhecida pelos juristas e pelos
políticos, permaneça totalmente despercebida por parte dos cidadãos. Exatamente
no momento em que gostaria de dar lições de democracia a culturas e a tradições
diferentes, a cultura política do Ocidente não se dá conta de haver perdido por
inteiro os princípios que a fundam.” (idem, p. 32-3)
O estado de exceção é sempre definido em virtude de
uma necessidade impreterível. A definição de Agamben sobre o papel da necessidade também é bastante significativa:
a necessidade encontra-se acima da própria lei e legitima-se exatamente por estar
acima da legitimidade. “Mais do que tornar lícito o ilícito, a necessidade age
aqui como uma justificativa para uma transgressão num caso específico por meio
de uma exceção.” (idem, p. 40-1)
É aqui que devemos perguntar: necessidade de quem?
A
lógica da crise é produzir uma regulação técnica das relações sociais num
estado de emergência. As medidas de
“austeridade” são usadas como “medidas emergenciais” porque permitem fazer “reformas”
que não se podem fazer em tempos normais: reduzir o Estado, comprimir salários,
atacar os direitos do trabalho.
O regime de emergência não têm por finalidade resolver o problema, a sua verdadeira finalidade é manter a situação de emergência, não é ultrapassá-la. Analogamente, a dívida pública não é para ser paga, nunca poderá ser paga, logo o estado de emergência também não pode acabar.
Portanto, o estado de emergência mostra-se como uma necessidade do capitalismo, necessidade que tende a transformar a exceção em norma. O estado de emergência económico que vivemos é condição de possibilidade para a nossa relação de total subserviência ao poder financeiro.
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