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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Aquele (des)encontro à chuva

O filme As Pontes de Madison County (1995) conta-nos a história de Francesca Johnson e Robert Kincaid partir do exato momento em que as suas vidas acidentalmente se cruzam de tal modo que esse encontro os marcará para sempre.

Robert Kincaid, 52 anos, fotógrafo famoso da National Geographic, um estranho e quase místico viajante por todos os cantos do planeta, atravessa o calor e o pó de um verão no Michigan e chega perdido a uma quinta em busca de informações sobre as pontes de Madison County. Tem uma reportagem fotográfica para fazer e não as consegue encontrar. Finalmente encontra uma mulher a quem pede informações.
 
Francesca Johnson, 45 anos, é a mulher que vive nessa quinta. Casada com um agricultor do Iowa (o Condado de Madison é um dos 99 condados do estado norte-americano do Iowa), Francesca, noiva italiana do pós-guerra, é uma dona de casa, que vive no seu mundo, embora guarde as memórias dos seus sonhos de juventude.

O marido e os filhos de Francesca tinham acabado de partir. Estarão ausentes por quatro dias, visitando uma feira que acontece anualmente numa outra cidade. Esta é a altura do ano em que Francesca fica sozinha e deixa de viver, por breves dias, em função da sua família. E é este o momento que marca o início da história. A partir desse dia a estabilidade das suas vidas começa a desabar, numa experiência de que não estavam à procura mas que os acompanhará existencialmente para o resto dos seus dias. Provavelmente, para cada um deles as expectativas de mudança nas suas vidas pertenciam ao passado. Ou talvez não…

Este filme coloca-nos no núcleo da ação humana. A compreensão do agir humano é bastante complexa, existem múltiplas perspetivas, bem como elementos são quase impercetíveis que nos escapam. É impossível determinar todas as suas razões, acessíveis apenas àquele que age e, por vezes, nem e este. O agir humano é tão complexo que nem o próprio sujeito o compreende na sua totalidade.
 
Durante o filme somos investidos por emoções e sentimentos decorrentes da ação das personagens, mas também certamente, por dúvidas e considerações morais. Aquele encontro é uma descoberta, um daqueles momentos na vida da ordem da raridade? uma relação de amor entre duas pessoas? uma “mera” paixão? uma “traição” inaceitável para uma consciência moral(izadora)?
 
Como entender este Outro concreto, existencial, uma alteridade que perturba profundamente a vida de Francesca? Qual o significado deste encontro no sentido geral da sua vida? Um encontro que, sendo uma vivência especial, pode, afinal, acontecer a qualquer pessoa e em qualquer momento da vida.
 
Se nós fossemos o marido de Francesca, como nos sentiríamos e reagiríamos se conhecêssemos os “factos”? Na vida de Francesca não há qualquer disfunção, o seu marida não a maltrata, pelo contrário, o relacionamento de ambos decorre num quotidiano tranquilo.
 
Se fossemos Kincaid? Como compreenderíamos que o amor da nossa vida, estando à nossa frente, não está ao nosso alcance? Como conviver com a separação, ou melhor, com a impossibilidade de uma união?

E se fossemos Francesca? Como poderíamos escolher entre a família, a tradição, a vida que sempre conhecêramos e a atração por um mundo novo na figura daquele desconhecido? Como conviver com um amor para toda a vida que não será mais do que um grande segredo? Como compreender que para “permanecerem juntos” tenham que ficar separados, para não desabarem com o peso do abandono da sua família?

Talvez esta dimensão “sacrificial” do desejo seja a compreensão da verdadeira alteridade. Francesca não nega o que sente, apenas sofre e silencia a sua perda. Vai realizar a vivência desse amor com a permanência junto da sua família, numa liberdade interior extraordinária. Será na tensão desses opostos que ela vive o resto da sua vida.

E é isso que lhe irá permitir contar a história aos seus filhos. Este será o segredo de Francesca que só através do legado, de uma carta-testamento, transmitirá os filhos depois da sua morte.

 
Aquela cena à chuva

Na mais memorável e na mais suspensa das cenas de "Madison County", Francesca reencontra o seu forasteiro, o inesperado Robert do outro lado da estrada, e do outro lado do mundo, à sua espera, já depois da sua família ter regressado a casa.

Uma figura encharcada, destroçada, já quase espectral, coloca-se defronte do carro de Francesca e do seu marido antes de se dirigir ao seu carro e seguir à frente deles.

No cruzamento, o semáforo está vermelho, demora uma pequena eternidade, durante a qual Francesca, sentada ao lado do marido, vai apertando a maçaneta da porta em gestos de sufocada hesitação. O carro à sua frente… o semáforo... a luz vermelha... a vontade de partir... a indecisão, o intenso e desesperado aperto no coração (certamente partilhado com o espectador). A luz fica verde. O carro da frente demora a arrancar, espera por Francesca. Por fim, avança voltando à esquerda. O carro detrás segue outro caminho. Robert continua a sua viagem, Francesca e o marido também.

Lá fora a chuva continua torrencial.
 



 

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