Falar para um candeeiro...

terça-feira, 30 de julho de 2013

Alice, para sempre...

 Alice in Wonderland , Tim Burton

Com a (iminência da) queda de Alice, mil vezes representada, e outras tantas por representar, na toca de um certo coelho branco, também inicio o meu (muito mais prosaico) movimento de "queda" - nas minhas férias, entenda-se.
As férias querem-se próximas do sol e longe da tecnologia.
Boas férias, portanto, e até setembro.
 

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Só aprendemos o que já somos

Gérard Castello Lopes


As pessoas, umas em relação às outras, habitam em mundos diferentes ou, na melhor das hipóteses, falam línguas diferentes (o que acaba por criar os diferentes mundos). Quantas pessoas falam a mesma língua que eu e, no entanto, não são capazes de me entender, nem eu sou capaz de as alcançar?
  
Nunca serei capaz de entender por que razão algumas pessoas se vestem da forma mais pirosa que conseguem e sentem-se bonitas com uma roupa com a qual eu não conseguiria sair à rua, ou enchem a casa de móveis e biblôs que nem que me jurassem que seriam do mais vintage eu conseguiria tê-los cá em casa ou que conseguem achar imensa piada às anedotas mais grosseiras, pelas quais sinto uma vergonha enorme por aquela pessoa que as diz. Estas pessoas falam a mesma língua que eu, mas o seu mundo interior é-me completamente inacessível.
Como posso eu entender o que se passa dentro das suas cabeças? E como poderia explicar a certas pessoas que aquilo que vestem, por exemplo, é esteticamente deplorável? Com que argumentos se explica o mau gosto?
 
A mesma questão se aplica à discussão de assuntos com uma forte dimensão subjetiva, como a política, as questões ideológicas ou os problemas morais. Como discutir isto?
Os sujeitos não são neutros, pelo contrário, têm fortes disposições mentais prévias, frequentemente irredutíveis aos melhores argumentos ou aos raciocínios mais límpidos.
 
Há tempos, enquanto almoçava num restaurante, não pude deixar de ouvir a conversa entre dois homens angolanos que almoçavam na mesa ao lado. Dizia um deles que “o Eduardo dos Santos está convencido que Angola é dele”. Claro que o outro contrapunha que “não senhor, Angola não é dele”. Mas, o primeiro insistia: “claro que não é dele, mas ele pensa que sim. É a convicção. Tu davas uma coisa que não é tua? Ela também não dá uma coisa que é dele. Não interessa se Angola é dele, o que manda é a convicção.”
 
É isto mesmo: o que manda é a convicção. O facto de partilharmos a mesma língua cria a ilusão de que partilhamos as mesmas convicções. Fala-se mas não se compreende. Nós não queremos o que alguém nos explica, nós explicamos aquilo que queremos. Somos o que explicamos.
 
É assim que, já há alguns anos, entendo esta frase de Vergílio Ferreira, à qual volto sempre:
  
Mas eu não te ensinei nada! Ninguém nos ensina nada, talvez, minha amiga. Só se consegue aprender o que nos não interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo: se alguém no-lo ensinou não demos conta disso. Ensinar então é só confirmar.

Vergílio Ferreira, Aparição


domingo, 21 de julho de 2013

Bocoio (Angola): memórias, ruínas e preservação

Ticiano, As três idades do homem (1511-2)

 
As Três Idades do homem de Ticiano é uma representação da passagem do tempo, apresentando o ciclo da vida, anunciado no quadro em planos distintos e bem identificados: a infância (as três crianças à direita), a idade adulta (o casal, à esquerda) e a velhice (o idoso, ao fundo).
As personagens aí retratadas não exteriorizam sentimentos, o seu aspeto físico revela-nos que não se pode lutar contra o destino, contra a dualidade existencial da vida e da morte.

Como nos anuncia o quadro, a existência é efémera. Existe um dramático e inexorável momento em que o afastamento da força da vida e da existência vai sendo cada vez maior, até nos apagarmos definitivamente num afastado ponto do horizonte, como o velho de longas barbas, que, curvado e sozinho (é a única idade/personagem representada sozinha), segura as duas caveiras que anunciam a proximidade da morte.


No entanto, existe uma faculdade capaz de confundir e misturar as três idades: a memória humana.
A evocação pela memória retira o passado daquele recanto mais afastado e quase abandonado pela vida e deixa-o a vaguear inquieto pelo presente. Como se, por ação da memória, os três planos comunicassem através de passagens labirínticas ou existissem recantos sombrios com reaparecimentos de outras idades.

No quadro de Ticiano também existe, digo eu, esse elemento “sombrio” que “mistura” as idades e que causa alguma perplexidade ao observador: por que razão são representados os restos de uma velha árvore em fim de vida junto das crianças, precisamente aquelas que vêm anunciar o início ou o recomeço? Pode verificar-se que, por oposição, a árvore representada à esquerda, junto ao casal sentado num tufo verdejante, apresenta-se, naturalmente, frondosa.

 
As fotografias em geral, e aqui mais especificamente aquelas imagens do vila do Bocoio que vou vendo no Facebook, de alguma forma, também “baralham” as idades da vida: a fotografia “repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” (Barthes, 1984, p. 13). Vejo as imagens do Bocoio que vão surgindo ao meu olhar e a materialização dessas imagens fotográficas são um elemento revelador e potencializador da memória e da narrativa dessa memória, “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr-se a si mesmo numa determinada relação com o mundo” (Sontag, 2004, p. 14).

As imagens fotográficas que observo do Bocoio mostram-me um lugar do passado. No meu caso pessoal, esses restos (ou rastos) ainda não se deixaram elaborar totalmente e permanecem a vaguear inquietos e secretos: serão relíquias ou ruínas? As minhas memórias não foram todas integradas (possivelmente nunca o serão), mas também não foram apagadas e assim resistem ao esquecimento, numa relação de estreita proximidade com a melancolia (existe uma melancolia penetrante nos espaços do passado).

As imagens do Bocoio que vou observando produzem uma tensão dinâmica entre o que se vê e o que se sabe haver existido um dia, e que ainda existe de alguma forma fragmentária ou simbólica. É o que resta de um passado, não inteiramente passado, mas já não presente, e que conserva o seu carater residual, num jogo entre a perda e a salvação desse passado.

A “salvação” apresenta-se como algo difícil porque o movimento dialético entre a memória e a História não funcionou. Isto é, a memória não se entregou ou não se traduziu na História, não passou para o grande registo coletivo, mas permaneceu apenas numa dimensão singular de memória- testemunho, uma pequena alma do passado.

Mas mesmo que a memória permaneça apenas a um nível individual, ou ao nível de um pequeno grupo, como é o caso, somos sempre tentados a um “regresso” e a uma reconstrução do passado. Esperamos que os resíduos ancestrais (restos ou rastos) nos levem à verdade, a uma verdade fora do tempo, capaz de descobrir os mistérios das ruínas. Mistérios esses governados por uma poética do desejo, da perda e do abandono, logo pouco compreendidos pelo nosso habitual e algo infeliz espirito científico.

A ruína apresenta-se na materialidade visível, que aparece em algumas imagens fotográficas que vou vendo, mas fala, sobretudo, através daquilo que é invisível ou que apenas é sugerido ou imaginado. Assim, a ruína contém a virtualidade do declínio e é desta condição que retira a sua força, permitindo reencontrar o passado e despertar a memória, numa viagem interior feita no espaço-memória sob o signo da ruína. «A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores» (Couto, 2006, p. 77).
 
 
Mas as ruínas são também destruição, devastação e desfuncionalização, que mostram a intensidade de um estado de desolação. Verifica-se, não só nas imagens fotográficas, mas através do conhecimento geral, que marcas indeléveis foram deixadas no espaço africano pelos portugueses: marcadores físicos (o cemitério, a igreja, a escola, o hospital, o parque), orais (língua, nomes), culturais (gastronomia, formas de vestir), etc. Com o passar do tempo esses objetos, materiais ou imateriais, que foram abandonados ou deixados, perderam inevitavelmente o seu contexto e significado originais. Estão hoje ilegíveis ou apagados, enquanto símbolos de uma cultura que se foi sumindo com a passagem do tempo, ou então foram absorvidos pela comunidade atual e encontram-se reescritos numa outra língua, tendo-se tornado menos familiares, ou mesmo estranhos, mas desta vez para a cultura (portuguesa) que os produziu originalmente.
 
 
Nas ruínas, enquanto corpo do passado, as forças da natureza, começam inexoravelmente a predominar sobre toda a obra humana, provando o seu poder sobre qualquer civilização. Por essa razão, podemos também observar nas imagens fotográficas a eternidade da natureza, como, por exemplo, a do morro Ulombe, que permanece intocável à passagem do tempo. Ele lá esta(rá) sempre na sua qualidade de elemento natural, não humanizado, sujeito à lenta erosão milenar mas não  à ruína que condena a obra humana.

No entanto, excecionalmente, no conflito entre a Natureza e a construção humana, esta última pode sair a ganhar sobre as próprias forças da natureza e do tempo. Por vezes, o carater histórico das ruínas atinge um ponto quase “absoluto”, convertendo essas próprias ruínas em formas intemporais, como as ruínas gregas ou romanas, por exemplo. Fora do próprio tempo e deslocadas de qualquer contexto real, o Pártenon de Atenas ou o Coliseu de Roma, são ruínas eternas, que se assemelham a um teatro trágico do mundo, capaz de devolver e mostrar aos espectadores as origens mais remotas das civilizações.

As ruínas que vou observando nas imagens fotográficas do Bocoio não têm, naturalmente, esta dimensão de eternidade do mundo. Pelo contrário, algumas imagens mostram estruturas abandonadas e emudecidas, à mercê de um constante processo de esfacelamento, como algumas casas, por exemplo. Essas casas já há muito que deixaram de ser espaços habitacionais vivos e são agora elementos desfuncionalizados que perderam o seu papel de habitação e universo do acolhimento.

“Mwadia sentia o escuro do aposento entrando no escuro dos seus olhos. Seus dedos roçaram a poeira dos móveis como que pedindo socorro. Os panos intactos pareciam adormecidos. Se Mwadia lhes tocava, porém, eles se esfumavam, vertidos em poalha. (…) Tudo pousado, parado, em pasmo sobre o passado.
(...) Ao chegar à praça, Mwadia se espantou: o que restava da barbearia não era mais que uma parede arruinada, localizada ao fundo, nas traseiras do que já havia sido um edifício. Não havia mais nenhuma outra parede. Nem tecto existia. Tudo se tinha desmoronado (…).
 
O espaço era aberto, devasso." (Couto, 2006, pp. 141 e 146).
 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
COUTO, Mia. O Outro Pé da Sereia. Lisboa: Editorial Caminho, 2006
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

  
No documento em anexo podem ver-se imagens do Bocoio, retiradas, entre outras fontes, do Facebook. Aí podem observar-se casas em ruínas, estruturas que se foram apagando com a passagem do tempo, ou mais provavelmente com a intervenção humana (como consequência do prolongado estado de guerra), bem como outros espaços que foram absorvidos pela comunidade atual e que se encontram bem preservados.
Apresentam-se também imagens de elementos naturais, como o morro Ulombe, insuscetíveis de intervenção ou destruição humana e que se conservam, naturalmente, intactos. Não estão sujeito às três idades da vida, o ciclo da efémera existência humana.
 
 
Para aumentar a imagem: clicar no canto inferior direito, em baixo. Para avançar, clicar na seta (=>)
 


 

sábado, 20 de julho de 2013

"Olhe, desculpe, não estarão a “esquecer-se” do mais importante?"


DN, hoje




Entre muitas outras coisas que não consigo compreender, esta é mais uma: por que razão se discute ao segundo e ao milímetro, o acordo, o desacordo, o Presidente, o Passos, o Portas (outra PPP!, embora esta mais "moribunda" que todas as outas), o (in)Seguro, as birras, as declarações, as propostas, as exigências, as negociações, as cartas, as reuniões, as idas à casa de banho e nunca se discutiu verdadeiramente o mais importante – por que razão se demitiu Gaspar?
 
Já caiu no esquecimento? É para nos desviar do essencial? Não vale a pena discutir por que razão o ministro das finanças abandonou o cargo? Ter-se-á ido embora porque, fracasso após fracasso, finalmente compreendeu que este programa de austeridade simplesmente não pode ser aplicado sem destruir o país? Mas, se é assim é, por que razão ficou lá uma nova ministra para continuar as mesmas políticas que levaram à demissão do anterior ministro?
 
A quem é que os media estão a fazer o frete?
A quem estas questões não interessa discutir?

É inacreditável este espetáculo: a qualidade dos políticos e destes partidos que (há muito não) nos representam e o "belo" serviço que o jornalismo presta à democracia.
Assim, não vamos lá.


A perfeição de Nadia (Montreal, julho de 1976)


Estávamos em julho de 1976, tinha eu 10 anos, a 4ª classe acabada de fazer e umas longas férias pela frente. Como nasci em Angola, um país onde na altura não havia televisão, ainda tinha o deslumbramento por tudo o que (se) passava naquele ecrã a preto e branco. Via quase tudo o que aparecia, desde a publicidade à TV Rural.

Por aqueles dias a televisão ocupava-se das transmissões dos Jogos Olímpicos de Montreal, a que eu naturalmente assistia. Foi nessa altura que vi pela primeira vez imagens de uma atleta que ainda hoje está guardada na minha memória e na de milhões de outras pessoas por esse mundo: Nadia Comaneci. Assisti ao seu primeiro “10”, redondo e perfeito! Foi nas barras paralelas assimétricas que tudo começou e nada voltaria a ser como antes…  

Há quase 40 anos, alcançar a perfeição na ginástica era algo tão impensável que o próprio marcador eletrónico foi “apanhado” de surpresa naquele ginásio em Montreal: o marcador simplesmente não tinha espaço para quatro dígitos (10,00) e Nadia Comaneci, a primeira ginasta perfeita, acabou por posar para a posteridade ao lado do painel que exibia a ridícula nota "1,00", aquela que um marcador muito baralhado encontrou para mostrar a sua perfeição. Nos dias seguintes, realizou mais provas e obteve por mais seis vezes o mesmo score absoluto: 10.

Ainda hoje Nadia Comaneci foi a atleta que mais vezes obteve a nota 10 e foi a única a terminar um aparelho com uma avaliação perfeita (20 pontos, duas notas 10), nas mesmas barras assimétricas.

Nadia, 14 anos, romena, cinco medalhas de ouro e um lugar merecido e incontestado na História e seguramente na minha memória, tinha um ar sereno e muito concentrado. Era pequenina, magrinha e usava franja e o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo com uma fita. Usava um maillot branco da Adidas, com riscas dos lados. Tinha um ar simples e gracioso e por isso era agradável vê-la e observar sobretudo o ar natural e a ausência de esforço com que realizava aqueles movimentos perfeitos e impossíveis.

Naquela altura tinha uma ideia muito, muito vaga do que era a Roménia e do que se passava no seu país e nunca tinha ouvido falar de Ceausescu. Sabia apenas vagamente que o seu país pertencia, de uma certa forma, ao imenso grupo encabeçado pelos atletas CCCP (nunca percebi como podiam aquelas letras ser o nome de um país).

 
De volta à Roménia, Nadia foi recebida em júbilo e conseguiu a proeza de ganhar mais uma medalha: de Heroína do Trabalho Socialista (!, pobre Nadia), atribuída por Nicolae Ceausescu, para benefício da doutrina Socialista daquele sombrio regime comunista.

Muito mais tarde surgiriam notícias inquietantes de abusos sexuais por parte de autoridades (o ditador e o seu filho) e até de alguns técnicos.
 
O que é certo é que Nadia Comaneci voltaria a deixar o mundo suspenso quando, numa fuga espetacular pela Hungria, tenta livrar-se do domínio do decadente regime romeno. Durante dias nada se sabe do seu paradeiro. Chega a temer-se que a polícia secreta de Ceausescu tenha capturado e até executado a sua estrela maior. Mas, não. Nadia Comaneci reaparece no Canadá e finalmente obtém asilo nos Estados Unidos, onde atualmente reside.

A heroína do trabalho socialista tinha mesmo fugido do horror da ditadura da Roménia, um mês antes do próprio ditador Nicolae Ceausescu ser deposto, sumariamente julgado e fuzilado, em dezembro de 1989.



 
 

terça-feira, 16 de julho de 2013

O fantástico mundo do Memorando: como se diz “vender o país ao desbarato” em “memorandês”?


 
 
Privatizações
“O Governo acelerará o programa de privatizações. O plano existente para o período que decorre até 2013 abrange transportes (Aeroportos de Portugal, TAP, e a CP Carga), energia (GALP, EDP, e REN), comunicações (Correios de Portugal), e seguros (Caixa Seguros), bem como uma série de empresas de menor dimensão. O plano tem como objetivo uma antecipação de receitas de cerca de 5,5 mil milhões de euros até ao final do programa, apenas com alienação parcial prevista para todas as empresas de maior dimensão.”

(Memorando, p. 14)

  
Como se diz “vender o país ao desbarato” na nova língua do “memorandês”? Diz-se: “antecipação de receitas”.
 
Muito divertido (se não fosse trágico).

 

O fantástico mundo do Memorando: a força das privatizações e a sonolência das PPP

 
 
Parcerias PúblicoPrivadas (PPP)
O Governo irá:
3.17. Evitar entrar em qualquer novo acordo de PPP antes de finalizar a revisão das PPP existentes e as reformas legais e institucionais propostas…
3.18. Executar uma avaliação inicial, com a assistência técnica da CE e do FMI, e, pelo menos, os 20 mais significativos contratos de PPP (…)…
3.19. Recrutar uma empresa de auditoria internacionalmente reconhecida …
3.20. Pôr em prática um quadro legal e institucional reforçado, no âmbito do M.F.A.P., para a avaliação de riscos exante da participação em PPP, concessões e outros investimentos públicos, bem como a monitorização da respectiva execução…
3.21. Melhorar o relatório anual sobre as PPP e as concessões preparado pelo MFAP com uma avaliação abrangente dos riscos orçamentais derivados das PPP e das concessões.
 
(Memorando, pp. 12-3)
 
Privatizações
3.31. O Governo acelerará o programa de privatizações. (…) O Governo comprometese a ir ainda mais longe, prosseguindo uma alienação acelerada da totalidade das acções na EDP e na REN (…).
O overno identificará, na altura da segunda avaliação trimestral, duas grandes empresas adicionais para serem privatizadas até ao final de 2012. Será elaborado um plano actualizado de privatizações até Março de 2012.
3.32. Elaborar um inventário de bens, incluindo imóveis, detidos pelos municípios e pela administração regional, analisando a possibilidade da sua privatização. [T22012]
(Memorando, p. 14)
 
 
Segundo o Memorando, o que está previsto fazer com as PPP? “Evitar”, “avaliar” e “auditar”. Faz-me lembrar o também fabuloso currículo da Alice no País das Maravilhas, “reler, escrevinhar e desmaiar”.
 
Não estou a dizer que não fizessem avaliações, estudos, auditorias, relatórios e exposições sobre as PPP, o que digo é que há uma impressionante diferença de tom entre as palavras vagas e enfraquecidas para as parcerias público-privadas e as palavras enérgicas e vigorosas utilizadas para as privatizações: “acelerar”, “ir mais longe”, “encontrar mais empresas adicionais para serem privatizadas”.
 
Como é sabido “as PPP (parcerias público-privadas) são associações entre o Estado e consórcios privados pode assumir diversas formas – uma das mais frequentes é a concessão prolongada (30 anos ou mais), durante a qual as entidades privadas exploram serviços tradicionalmente prestados pelo Estado (por exemplo, uma autoestrada ou um hospital). (…)
 
Duma maneira geral, a relação entre o Estado e os interesses privados nas PPP pode definir-se assim: se houver prejuízos, o Estado paga; se houver lucros, revertem para as empresas privadas; é o Estado que entra com o grosso dos capitais necessários à exploração (e por vezes também a União Europeia); o custo final das obras públicas ultrapassa sempre 4 a 12 vezes o custo orçamentado, sendo o Estado quem entra com os capitais em falta, endividando-se; as concessões assentam sempre em pressupostos irrealistas (por exemplo, o número de veículos que irá passar numa ponte ou numa autoestrada) mas garantidos pelo Estado, que tem de pagar uma renda para compensar o défice de tráfego, os atrasos na construção, etc. Em suma, os contratos são minuciosamente calculados para que todos os anos os concessionários privados recebam rendas no valor de centenas de milhões de euros, pagos pelos contribuintes.” (Ver mais aqui)
 
Aos contribuintes as PPP custam 3,5 milhões por dia, um enorme “buraco negro” que acentua significativamente o aumento do défice e, consequentemente, da dívida pública.
 
A reforçar o carater intencionalmente “enfraquecido” com que o governo pretende lidar com o problema das PPP, refira-se que a “empresa de auditoria internacionalmente reconhecida”, recrutada para analisar estas parcerias (ponto 3.19.) foi nada menos que a consultora Ernst & Young. Esta consultora não pode assegurar critérios de "independência e imparcialidade" porque está envolvida com os grupos José de Mello Saúde, Somague e Iberdrola, que têm interesses diretos ou indiretos em várias das concessões e PPP que terá agora de analisar.
"As empresas para as quais a consultora presta serviços estão envolvidas, entre outras, nos consórcios da Lusoponte, Auto-Estradas do Atlântico, Auto-Estradas Túnel do Marão, Hospital de Braga e Hospital de Vila Franca". Este é um caso flagrante de conflito de interesses". (Ver “Jornal de Negócios: IAC diz que Ernst & Young nãotem imparcialidade para auditar PPP”).
 

domingo, 14 de julho de 2013

O fantástico mundo do Memorando: a procura ativa “Mike & Melga” de emprego



Políticas Ativas do Mercado de Trabalho
“O Governo irá garantir as boas práticas e um número eficiente de recursos para activação das políticas para fortalecer os esforços de procura de emprego por parte dos desempregados e outras Políticas Activas do Mercado de Trabalho (PAMT), no sentido de melhorar a empregabilidade dos jovens e das categorias mais desfavorecidas e diminuir os desajustamentos no mercado de trabalho.” (Memorando, p. 24)
 
Para “fortalecer os esforços de procura de emprego por parte dos desempregados”, previsto no Memorando, a grande “novidade” foi, como sabemos, o anúncio pelo ministro Álvaro Santos Pereira em fevereiro de 2012, da criação da figura de “gestor de carreira” do IEFP.
Cada desempregado vai ter um gestor carreira (não é uma carreira que ele vai gerir, é o desemprego mas dizer “gestor de desempregado”, não fica tão bem), que será desempenhada por técnicos dos centros de emprego, para assegurar o acompanhamento próximo e contínuo de cada desempregado, de modo a facilitar o seu regresso ao mercado de trabalho.
Ora, os gestores são cerca de 1000 e os desempregados mais de um milhão de pessoas, um número que aumenta todos os dias. Face à gravidade e dimensão do flagelo, esta solução para criar emprego é, absolutamente desconcertante, diria assim num esforço para evitar a palavra patética.
 
Não sei muito bem o que será um gestor de carreira, mas a avaliar por esta publicação de "gestão pró-ativa da carreira" (aqui), temo o pior. A publicação está ao nível da mais incrível TV Shop Mike & Melga.
 
 
Começa com frase-extremamente-bonita: “Se você encontrar um caminho sem obstáculos, ele provavelmente não leva a lugar nenhum” e vai por aí fora, não como se não houvesse amanhã, mas como se o amanhã já fosse hoje (a leitura deve ser feita ao som do estilo ambiente, neoclássico, progressivo de Vangelis).

 
Aqui ficam algumas passagens da "gestão pró-ativa da carreira" mas há muito mais donde estas vieram:
 
“Se acha que…
... já esgotou todas as estratégias para arranjar emprego?
... não quer ouvir falar em mais nada porque já não acredita em nada?
... a culpa é «deles»?
... agora mais vale é fazer o «horáriozinho» das 9 às 6, sem se chatear, para depois não se vir a arrepender?
... já não tem energia para mais nada? (…)
Então, está certo!
Vai falhar 100% daquilo que não tentar e o seu estado de «desespero aprendido» vai mesmo impedi-lo de agir e confirmar as suas expetativas de que não há nada a fazer e de que o mundo está contra si.

 
Pelo contrário, se pensa que…
... as crises nos obrigam a sair da nossa zona de conforto...
... o momento dá-lhe a oportunidade de experimentar algo de que nunca teve coragem...
... a necessidade aguça o engenho...
... ir à luta, só por si, nos torna mais fortes...
... é nos momentos difíceis que mostramos o que valemos...
... que nada se consegue sem trabalho e persistência...
… a Universidade da Vida é grátis...
... este é o momento ideal para aprender coisas que nunca teve tempo para aprender, projetando-se para um novo patamar de competência...
... este é o momento de valorizar o trabalho que tem e de trabalhar o dobro na empresa onde está porque o sucesso desta também depende de si...
... arrumar as botas só à noite, antes de dormir, e depois de bem engraxadas, porque amanhã é um novo dia e há muito caminho a calcorrear...

Então, está certo!
Irá descobrir em si novas capacidades e talento criativo. Será muito mais feliz na sua empresa ao decidir fazer parte da solução em vez de ser parte do problema. Irá descobrir que o mercado afinal tem novas oportunidades e normalmente as que nos fazem mais felizes somos nós a criá-las.

Venha daí, vamos falar de Gestão Pró-ativa da Carreira para o sucesso!”

 E continua:
“Não diga: “Vou tentar e ver o que acontece. Diga: “Vou fazer.”
Não diga: “Estou demasiado cansado.” Diga: “O que posso fazer para aumentar a minha energia?””

E mais e mais e mais...  Que dizer de todo este discurso inflamado e miserabilista de responsabilização individual por aquilo que é um enorme flagelo social, económico e político, como o desemprego.

Anda, mexe-te, aprende, vai à luta, julgas que a culpa é "deles", mostra o que vales, projeta-te,  esquece o «horáriozinho» das 9 às 6, valoriza-te, trabalha o dobro na empresa, arruma as botas só à noite, e depois de bem engraxadas, porque amanhã é um novo dia e há muito caminho a calcorrear...
 
Inacreditável!!
Fantasticoooo Melga! Como consegues?

 

O fantástico mundo do Memorando: como se diz “ganância” em “memorandês”?






“Concorrência, contratos públicos e ambiente empresarial
Assegurar condições concorrenciais equitativas e minimizar comportamentos abusivos de procura de rendimentos (rentseeking behaviours), reforçando a concorrência e os reguladores sectoriais (…)” (Memorando, p. 33)
 

Como se diz “ganância” na nova língua do “memorandês” Diz-se: “comportamentos abusivos de procura de rendimentos (rent-seeking behaviours)”.

Muito divertido (se não fosse trágico).


O fantástico mundo do Memorando: como se divide a população escolar?




Como se combatia a baixa escolaridade há muito tempo atrás…
 
Há uns anos atrás (não é indicado o ano, mas terá sido por volta de 1932, uma vez que o documento faz referência a dados estatístico desse ano), o então ministro da Instrução Pública, o Sr. Dr. Eusébio Tamagnini, deu uma entrevista a um jornal no âmbito de uma “campanha patriótica” contra o analfabetismo, que, segundo o ministro, “estaria extinto em 10 anos no caso das crianças em idade escolar”. “No caso dos adultos estudar-se-á a forma de, pelo menos, o atenuar ou reduzir” (ainda devemos andar a estudar  o problema, uma vez que ainda “há quase um milhão de portugueses analfabetos”, segundo esta notícia do Expresso).
 
Para saber que verbas afetar a esta campanha (para a “construção de escolas, vencimento de professores e outras despesas”), o ministro precisava, naturalmente de saber, quantos alunos existiam. Ou melhor que tipo de alunos existiam. Considera o ministro que, de acordo um “pedagogo americano, Terman, está provado que os alunos não são todos iguais. A população escolar pode e deve dividir-se em cinco grupos, a saber:
 
1º - Ineducáveis …………….…..….   8%
2º - Normais estúpidos …………....  15%
3º - Inteligência média ……….........  60%
4º - Inteligência superior …….…….. 15%
5º - Notáveis ……………………. ....   2%”

Ora, afirma ainda o Ministro, que o problema podia ser bastante simplificado, pois de acordo com “as necessidades e exigências da população escolar”, “23% de alunos (8% de ineducáveis e 15% de normais estúpidos) não carecem de ensino complementar” (mas apenas de “ensino elementar”), nem carecem de “professores diplomados ou de carreira, bastam os postos de ensino”.
 
Quanto à construção desses postos de ensino, acrescenta o Ministro que “simplificaremos também o problema reduzindo ao mínimo o seu custo. Não são necessários grandes edifícios. Bastarão casas de madeira – como na América – e para a edificação dos quais é de esperar contribuam também, em comparticipação com o Estado, as próprias povoações interessadas.”

(Ver entrevista no fim. Para aumentar, clicar no canto inferior direito)



Como se combate hoje a baixa escolaridade hoje no Memorando
 
Sem dúvida, uma entrevista extraordinária, “notável” para utilizar as palavras do Dr. Tamagnini. Hoje, a esta distância, as palavras, absolutamente claras, ditas por aquele ministro constituem afirmações do mais politicamente incorreto que podemos imaginar. Alguma vez um ministro da educação poderia hoje dizer que há indivíduos “ineducáveis”? Ou classificar alunos como “normais estúpidos”? Alguma vez poderia dizer que “os alunos não são todos iguais”? E que uns terão boas escolas, em bons edifícios e com bons professores e outros estudarão em postos de ensino edificados em casas de madeira?
 
Não. Hoje, para combater a baixa escolaridade, dir-se-ia assim:
 
“ O Governo irá prosseguir a sua acção no sentido de combater a baixa escolaridade e o abandono escolar precoce e de melhorar a qualidade do ensino secundário e do ensino e formação profissional, tendo em vista o aumento da eficiência no sector educativo, o aumento da qualidade do capital humano e a facilitação da adaptação ao mercado de trabalho. Para este fim, o Governo irá:
 
a)  criar um sistema de análise, monitorização, avaliação e apresentação de resultados de modo a avaliar com rigor os resultados e os impactos das políticas de educação e de formação, nomeadamente os planos já implementados (por exemplo, relativos a medidas de redução de custos, ensino e formação profissional e políticas para melhorar os resultados escolares e limitar o abandono escolar precoce). [T42011]

b)  apresentar um plano de acção para melhorar a qualidade dos serviços do ensino secundário, nomeadamente através da generalização dos acordos de confiança entre o Estado e as escolas públicas, definindo autonomia alargada e um enquadramento de financiamento baseado numa fórmula que inclua critérios de evolução do desempenho e de responsabilização (…). [T12012]” (Memorando do Entendimento, p. 24). 
Este texto reúne todos os requisitos do discurso político atual: é politicamente correto, com recurso a linguagem técnica e absolutamente confuso para ninguém entender.

No texto, na alínea a) á apenas graças ao parêntesis, que conseguimos ficar a saber que o tal “sistema de análise, monitorização, avaliação e apresentação de resultados de modo a avaliar com rigor os resultados e os impactos das políticas de educação e de formação” é para analisar “medidas de redução de custos”.

Na alínea b), não compreendo bem de que “autonomia alargada”, depois de ter lido esta notícia, entre muitas outras. Já o “financiamento baseado numa fórmula que inclua critérios de evolução do desempenho e de responsabilização”, parece claro. Um bom “desempenho” nas escolas traduz-se me bons resultados escolares. Logo, bons resultados = mais financiamento; maus resultados = menos financiamento.
 
Eis a “dualização” da escola pública que mantém e acentua as desigualdades*: gastar mais dinheiro com uns e menos com outros.

Mais ou menos como que dizia aquele Ministro da Instrução.



*Em economês também não se diz "desigualdade", diz-se "impacto assimétrico da crise". E já agora, "crise", diz-se "desacelaração severa".  E nem pense em dizer "recessão", diga "crescimento económico negativo".
 

sábado, 13 de julho de 2013

Faça-se dinheiro! E o dinheiro fez-se.

Afredo Cunha

 
A sociedade atual é formada por várias instituições, sejam elas religiosas, políticas, profissionais, etc. É evidente a influência que essas instituições exercem sobre a nossa visão e compreensão do mundo. No entanto, existe uma instituição cujo poder de atuação está profundamente mal compreendido e, por isso, subestimado, mas que produz um enorme efeito sobre toda a toda formação social e diretamente sobre a vida de cada um de nós. Uma instituição de proporções quase religiosas, cuja dimensão gigantesca é proporcional ao seu desconhecimento: falamos do sistema monetário, aquele que cria o dinheiro.
 
Como é criado o dinheiro? Que políticas o governam e de que forma ele afeta toda a sociedade? Para entender por que razão o problema nunca é a ‘falta de dinheiro’, é essencial entender como funcionam as políticas monetárias, as políticas que regem o dinheiro.

Infelizmente, a economia é um assunto algo chato e para dificultar ainda mais, os meios de comunicação utilizam um “economês” confuso e incompatível com o nível de informação da maioria das pessoas, que resulta numa sequência infinita de termos financeiros e cálculos intimidadores, fazendo com que se desista rapidamente de tentar entender. Contudo, esta complexidade é apenas criada para ocultar uma estrutura simples e uma das maiores que a humanidade já criou, ou tolerou.
 
Isabel Jonet, numa já célebre entrevista à Sic Notícias, no dia 6 de Novembro de 2012, entre outras coisas, afirmou o seguinte: “Temos que fazer um esforço não olhando para o que vai deixar de ter como um empobrecimento, mas se calhar como uma necessidade de voltar para aquilo que é o mais básico. E não ter uma expectativa que podemos viver com mais do que aquilo que necessitamos, como estávamos a viver, porque não há dinheiro, na sociedade como em todo…”

 Isabel Jonet, dirigente do Banco Alimentar, diz que os Portugueses se devem habituar ao empobrecimento e o seu argumento final é o de que ‘não há dinheiro’.

Passando ao lado de todas as considerações políticas, morais e caritativo-assistenciais que as suas palavras abundante e merecidamente suscitaram, é o seu argumento de que ‘não há dinheiro’ que interessa aqui relevar, com o objetivo de mostrar que o problema não é, nem nunca será a ‘falta de dinheiro’: o problema da pobreza será sempre o da má distribuição de riqueza.

Hoje em dia o dinheiro é emitido sem valor adicionado, sendo portanto dinheiro simbólico que se pode emitir arbitrariamente, tendo a inflação excessiva como o seu único verdadeiro entrave. Para compreender como o argumento da ‘falta de dinheiro’ é falacioso, é necessário compreender o mecanismo da ‘moeda fiat’ (‘faça-se moeda’).

 
Mas para explicar esta ideia, é necessário procurar responder a uma pergunta fundamental: o que é o dinheiro?
Por sua vez, responder a esta questão requer que se divida a questão em duas:
1.    Como é criado o dinheiro?
2.    Como é que esse dinheiro que foi criado, entra na economia?

Para responder à pergunta 1, contaremos uma “história” de um certo plástico irlandês Frank Buckley, que construiu uma estranha casa; para responder à pergunta 2, recorreremos a uma publicação da Reserva Federal dos Estados Unidos, amplamente difundida na internet, a “Mecânica Monetária Moderna” (Modern Money Mechanics).

  
1. A história de um artista plástico irlandês que construiu uma casa com mais de '1 bilhão de euros'

 Segundo uma notícia da BBC, o irlandês Frank Buckley, que perdeu a sua casa devido à crise, construiu uma casa (na verdade uma instalação artística, embora funcional) com mais de '1 bilhão de euros', isto é, uma casa literalmente construída com notas que foram retiradas de circulação e que, portanto, foram destruídas. Diz a notícia que “certo dia, enquanto olhava para um bloco de notas de euro fora de circulação que havia comprado a um amigo para usar como confete no seu casamento (!), Buckley começou a questionar o valor real do dinheiro.

O artista, que queria lançar luz sobre o absurdo da crise económica na Irlanda, fez pinturas das notas rasgadas e moedas. Em seguida veio a ideia de construir uma casa. Buckley ligou para um agente da área de construção que concordou em encaminhar a sua proposta ao proprietário do edifício, que também concordou. Em seguida, o artista conseguiu convencer a Casa da Moeda a emprestar-lhe os “tijolos” de notas fora de circulação, que serão devolvidas e destruídas ao fim da exposição. Originalmente construída como galeria, a casa é hoje completamente funcional. Tem sala de estar, quarto e casa de banho, com um duchae que lança notas de dinheiro.” (Consultar aqui o site oficial deste projeto e maisinformações aqui)

Mas o mais interessante na aventura deste artista irlandês são os factos que podemos apurar sobre o próprio sistema monetário dentro do qual estamos inseridos. Ainda se acredita que as notas, no caso, os euros, são intrinsecamente valiosas, facto que é exemplificado através de afirmações como as que defendem que os problemas económicos são fruto de “não haver dinheiro suficiente”. Não é esse o caso: as notas de euro estão inseridas dentro de um fluxo, ou seja, um ciclo com princípio, meio e fim.

No princípio, no cado da Europa, o dinheiro é emitido pelo Banco Central Europeu (através das suas sucursais nacionais no nosso caso, o Banco de Portugal), e é posteriormente emprestado a outros bancos privados com taxas de juro baixas, sendo depois emprestado e injetado na economia real pelos bancos, a taxas de juro mais elevadas, como veremos mais à frente.

Durante este período as notas são utilizadas pelo ‘público em geral’ para as transações económicas. Este período corresponde ao seu ciclo intermédio.

Mas estas mesmas notas têm um final de vida, chegam ao fim do seu ciclo. Quando voltam às mãos do BCE, ou às suas agências nacionais, são destruídas, mas somente depois da sua referência única ter sido tomada em conta, pois esta referência demonstra qual a dívida que está a ser paga no ato da destruição da mesma.

 

 
Todas as notas de euro têm uma referência.

 
Isto permite concluir que as notas de euro não representam um valor real; elas não são nada mais, nada menos do que um comprovativo de uma dívida.

Só através de exemplos como o do artista Irlandês, ou através da história sobre o que acontece às notas danificadas é que podemos estabelecer certos factos sobre este processo, como exemplifica esta reportagem da SIC, que admite que o processo de destruição das notas não pode ser filmado ‘por razões de segurança’.


A entidade que destrói as notas de euros em Portugal é o Bando de Portugal, mas este processo é feito em segredo. Mostrar as imagens de euros a serem queimadas seria, em primeiro lugar, visto como um sacrilégio pela multidão que passa a sua vida a tentar angariar o que pensam ser valor real. Mas em segundo, e esta é a verdadeira razão pela qual o público não pode testemunhar o processo de ‘descomissionamento’ (notas que foram retiradas), é que se o vissem, começariam a questionar a verdadeira natureza da moeda que utilizam.

O processo através do qual o Banco de Portugal rasga notas, ou seja, o momento em que declara que uma certa dívida foi paga, não são para os olhos dos profanos que nada sabem sobre o sistema monetário moderno. Se soubessem, mais rapidamente se aperceberiam da natureza fraudulenta da ‘dívida pública’, e mesmo da ‘crise da dívida soberana’, que nada mais é do que um processo através do qual instrumentos financeiros são utilizados para afetar a dinâmica da detenção de propriedade privada e do valor real (terra, casas, apartamentos, ouro, prata, produtos de consumo, etc…) através da utilização de valor fictício (notas, moedas). Esta dinâmica tem sempre beneficiado as elites, mas acima de tudo, beneficia inevitavelmente quem tem o poder de emitir a moeda, e que decide o valor da mesma através da inflação e deflação.

 
O dinheiro é uma invenção, uma ficção tão forte que parece real. Mas não é, trata-se de um esquema que permite aos governos controlarem as trocas de bens e aos agentes financeiros apoderarem-se do trabalho das populações. O problema é que o dinheiro, para já, não tem alternativa, e uma economia sem bancos, regressaria ao período feudal.

 
Se fosse nos Estados Unidos, a criação do dinheiro funcionaria de forma semelhante. Seria mais ou menos assim: o governo dos EUA decide que precisa de dinheiro. Então dirige-se à Reserva Federal (RF) e pede, digamos, 10 bilhões de dólares. A RF responde: “Claro, vamos comprar a vocês 10 bilhões em títulos públicos”. Nessa altura, o governo pega nalguns papéis, coloca-lhes símbolos que os fazem parecer oficiais, e chama-os de “títulos do Tesouro”. Atribui a esses papéis o valor de 10 bilhões de dólares e os envia para a RF. Em troca, a RF imprime uma quantia de papéis próprios. Só que desta vez, com o nome de notas da Reserva Federal. Também atribuindo o valor de 10 bilhões de dólares a esses papéis. A RF pega nessas notas troca-as pelos títulos. Assim que a transição é concluída, o governo fica com os 10 bilhões em notas da RF e deposita-as numa conta bancária. E com esse depósito, as notas de papel passam oficialmente a ter valor de moeda.

Claro que este exemplo é uma generalização, pois na realidade essa transação ocorre eletronicamente, sem nenhum recurso ao papel. Na verdade só 3% do provimento monetário dos EUA existe em moeda física. Os outros 97% existe somente em computadores.

Então, os títulos públicos são, por definição, instrumentos de endividamento, e quando a RF compra esses títulos com dinheiro criado basicamente do nada, o governo está na verdade a prometer devolver esse dinheiro à RF, um IOU (Owe You, que significa ‘Eu devo-te’)

 
A troca foi, então, realizada e agora os 10 bilhões de dólares estão numa conta de um banco privado. Aqui é onde a coisa fica mais interessante, já que, agora não estamos a falar apenas da criação da moeda, mas da forma como a moeda é “distribuída” e entra em circulação. Mas isso fica para depois.

 
A questão agora é esta: que ativos cobrem os passivos do Tesouro (a entidade do governo que pediu emprestado)? Serão esses ativos uma outra coisa qualquer de valor real, bens como ouro? Não. Os ativos do Tesouro são hoje a “fé e confiança” no governo dos EUA. No nosso mundo às avessas, fé e confiança são hoje chamados “ativos”! Antes da I Guerra Mundial teria sido o ouro, mas hoje não.

Nessa altura, o mundo ainda era regido pelo padrão-ouro clássico. Naquela época, era perfeitamente claro que notas de banco eram IOU’s que prometem pagar dinheiro (ouro), ou seja, as notas do banco seriam resgatáveis em dinheiro real. Mas, tudo isso mudou drasticamente. Os analistas na época previram que uma grande guerra poderia durar mais do que alguns meses o que “secaria” os seus “tesouros”, isto é, o seu ouro. Em antecipação a isso, foram aprovadas leis, pela primeira vez em França, seguida da Alemanha, que decretavam que as notas dos bancos fossem consideradas… dinheiro! Agitando uma “varinha mágica”, os governos supostamente transformaram IOU’s em dinheiro, colocando o primeiro de outros pregos no caixão do padrão-ouro clássico.

  

2. A “Mecânica Monetária Moderna” (Modern MoneyMechanics)

 O dinheiro está criado e o governo tem agora os 10 bilhões em notas da RF e deposita-as numa conta de um banco privado.

Esse depósito de 10 bilhões torna-se instantaneamente parte das reservas do banco, como todo e qualquer outro depósito. Com base na prática de reservas fracionadas, e conforme vem referido na “Mecânica monetária moderna”: “Um banco deve manter reservas legalmente exigidas equivalente a uma percentagem definida dos seus depósitos.” Pelas normas vigentes, a reserva exigida para a maioria das contas correntes é de 10%. Assim, dos 10 bilhões depositados, 10%, ou seja, 1 bilhão, é guardado como reserva exigida enquanto que os outros 9 bilhões são considerados excedente de reserva e podem ser usados como base para novos empréstimos.

Agora vamos imaginar que alguém entra num banco e recebe de empréstimo os 9 bilhões recém-disponibilizados. Provavelmente irá pegar nesse dinheiro e depositá-lo na sua própria conta bancária, num qualquer banco do sistema bancário. O processo então repete-se, já que esse depósito torna-se parte das reservas do banco. 10% é isolado e em seguida 90% dos 9 bilhões, ou 8,1 bilhões, tornam-se dinheiro recém-criado, disponível para mais empréstimos.

E claro, esses 8,1 bilhões podem ser emprestados e depositados criando mais 7,2 bilhões e mais 6,5 bilhões e mais 5,9 bilhões... E assim por diante. Este ciclo de criação de dinheiro pode tornar-se tecnicamente infinito. O cálculo médio é de que cerca de 90 bilhões de dólares podem ser criados a partir dos 10 bilhões originais. Por outras palavras: Para cada depósito que é feito no sistema bancário, pode-se criar 9 vezes esse valor a partir do nada.

 
(Ver como funciona o multiplicador bancário (aqui), que calcula a quantidade máxima de dinheiro que um depósito inicial pode expandir numa dada taxa de reserva.)
 

Agora entendemos como o dinheiro é “criado” pelo sistema de reservas fracionárias. Pode ocorrer-nos uma pergunta lógica, ainda que desconcertante: mas o que está a dar valor a esse dinheiro recém-criado?

A resposta: O dinheiro que já existe. O dinheiro novo basicamente tira valor do provimento monetário já existente, já que o montante total de dinheiro está a aumentar independentemente da procura de bens e serviços. E como a oferta e procura definem o equilíbrio, os preços sobem reduzindo o poder de compra de cada dólar. É aquilo a que normalmente se chama inflação e a inflação é basicamente um imposto oculto cobrado das pessoas.

 
A verdadeira fraudulência ocorre quando distorcemos o valor do dinheiro. Quando criamos dinheiro do nada, não temos economia. A pergunta resume-se a: como é que podemos esperar resolver os problemas da inflação, ou seja, o aumento da oferta de dinheiro, com mais inflação? Claro que não podemos. O sistema de reservas fracionárias para expansão monetária é inflacionário por si só, uma vez que o ato de aumentar as ofertas de dinheiro, sem que haja uma expansão proporcional de bens e serviços na economia sempre vai depreciar a moeda.

De facto, uma análise rápida dos valores do dólar americano em comparação com a oferta de dinheiro reflete claramente essa questão, já que a relação completa é óbvia. 1U$ em 1913 valia o equivalente a 21,60U$ em 2007. Isso é uma desvalorização de 96% desde que a Reserva Federal passou a existir, uma inflação inerente e perpétua, que parece absurda e economicamente auto-destrutiva.

 
Até agora discutimos o facto real de que o dinheiro é criado de dívidas a partir de empréstimos. Estes empréstimos são baseados nas reservas de um banco, reservas originadas por depósitos. Através desse sistema de reservas fracionadas, qualquer depósito pode criar 9 vezes o seu valor original. Por sua vez, a depreciação do dinheiro em circulação eleva os preços para a sociedade e, como todo esse dinheiro é criado a partir de dívidas e circula aleatoriamente através do comércio, as pessoas acabam distanciadas de sua dívida original. Existe um desequilíbrio quando pessoas são forçadas a competir por empregos a fim de obterem dinheiro suficiente do provimento monetário, para cobrir o seu custo de vida.

 
Mas, por mais defeituoso e distorcido que tudo isso pareça, ainda falta um elemento que nesta equação, e é esse elemento da estrutura que revela a natureza fraudulenta inerente ao sistema: a cobrança de juros.

Quando uma pessoa recebe um empréstimo de um banco, este deve ser sempre devolvido com juros. Por outras palavras: quase todos os dólares que existem, um dia terão de ser devolvidos a um banco, acrescidos de juros.

 Porém, se todo o dinheiro é emprestado do Banco Central e expandidos pelos bancos comerciais através de empréstimos, somente o que chamamos de “principal” está a ser criado no provimento de dinheiro. Então, onde está o dinheiro para cobrir os juros que são cobrados?

Em lugar nenhum. Ele não existe.

As ramificações disso são inacreditáveis, pois a quantia de dinheiro devida aos bancos será SEMPRE maior que a quantia de dinheiro em circulação. E é por isso que a inflação é uma constante na economia, pois o dinheiro novo é SEMPRE necessário para ajudar a cobrir o défice embutido no sistema, causado pela necessidade de se pagar juros. Isso também significa que, matematicamente, a inadimplência (não pagamento, até à data de vencimento, de um compromisso financeiro) e as falências são literalmente partes do sistema. E será sempre a parte mais pobre da sociedade que sofrerá com isso. Uma analogia seria a dança das cadeiras: Quando a música pára sempre sobra alguém, que ficará de fora.
 

E a ideia é essa: as riquezas verdadeiras são invariavelmente transferidas das pessoas para os bancos, pois se alguém não puder pagar a sua hipoteca, ficarão com a sua propriedade. Isso é particularmente revoltante quando se percebe não só que a inadimplência é inevitável devido à prática de reservas fracionadas, mas também porque o dinheiro que o banco lhe emprestou, nunca chegou a existir de facto.

E é o medo da perda de bens, juntamente com as dívidas perpétuas, a inflação como parte do sistema e os juros que nunca poderão ser pagos, que mantém milhões de pessoas a correr sem saírem do lugar. Efetivamente, fortalecendo um império que só beneficia a elite no topo da pirâmide. A dívida é a arma usada para prender a sociedade e os juros são a munição principal.


Poderá ver esta “história” contada neste vídeo.
 

Recapitulando: os bancos centrais são os responsáveis pela oferta monetária primária, ou base monetária. Este dinheiro de alto poder expansivo é o que chega aos bancos privados, que são quem o reproduz pela via do crédito. A reprodução do dinheiro original depende da taxa de reservas mínimas requeridas, que produz o efeito inverso: quanto menor é a exigência de reservas, maior é a quantidade de dinheiro que a banca privada cria.


Grande parte da desregulamentação financeira promovida desde os anos 80 consistiu em dar aos bancos a maior das liberdades para o montante das suas reservas. Deste modo, a clássica norma de reservas em torno de 10% ou 20% foi reduzida a níveis de 1%, e mesmo inferiores, como aconteceu com Citigroup, Goldman Sach. JP Morgan e Bank of America, que, nos momentos mais sérios, afirmavam ter uma taxa de reservas de 0,5%, com o qual o multiplicador (m=1/0,005) permitia criar 200 milhões de dólares com um só milhão em depósito. E no período da bolha, as reservas chegaram a ser inferiores a 0,001%, o que indica que por cada milhão de dólares em depósito real, se criavam 1.000 milhões do nada. Esta foi a galinha dos ovos de ouro dos bancos.

Uma galinha que era de todas as formas insustentável e que foi assassinada pela própria cobiça dos banqueiros que se aproximaram do crescimento exponencial do dinheiro até que este entrou em colapso.

Entende-se agora o abismo em que estamos e por que razão governos e bancos centrais correm a tapar os enormes buracos que o dinheiro falsamente criado deixou. Entende-se por que razão a Reserva Federal e o BCE correm a resgatar o lixo dos ativos tóxicos criado neste tipo de operações.

 
 

Fontes: