Shakespeare, Mercador
de Veneza: frontispício
e Shylock, por Charles Buchel,
1914
A
dívida é o motor económico e subjetivo da sociedade contemporânea, considera Lazzarato
no seu livro “La fabrique de l’homme endetté, essai sur la condition
néolibérale” (2011) onde, de forma extraordinariamente pertinente, apresenta a dívida
como nada menos do que:
a)
uma
máquina de predação e captura da riqueza social;
b)
um
instrumento de gestão macro-económica;
c)
um
dispositivo de redistribuição (transferência) de rendimentos;
d)
um
dispositivo de produção e controlo de subjetividades (individuais e coletivas).
Relativamente ao último aspeto, aquele
que interessa aqui explorar (a dívida como dispositivo de produção e controlo
de subjetividades), Lazzarato, partindo do
segundo capítulo de “A Genealogia da Moral”, de Nietzche, e de “O Anti-Édipo”, de Deleuze e Guattari, oferece-nos uma reconstrução do neoliberalismo, segundo a qual em torno da dívida se produz um
dispositivo de poder que molda por completo a infraestrutura biopolítica, numa
reconfiguração do poder
disciplinar e biopolítico pela dívida.
Uma dívida não consiste apenas em dinheiro que deve ser pago, mas em
pensamentos e comportamentos que devem ser ajustados, precisamente para que
esse dinheiro seja pago. É preciso ligar a economia da dívida a processos de subjectivação para se compreender que a dívida funciona também como o tal dispositivo de
produção e controlo de subjetividades. A dívida exige a
construção de uma subjetividade dotada de uma memória, uma consciência e uma
moralidade que incite à confiança, à responsabilidade e à culpabilidade.
No mundo de hoje, a maior parte do dinheiro não se compõe de papel-moeda,
como o conhecemos, mas de títulos de crédito que representam promessas de
pagamento futuro, um “I owe you” (“eu
devo-lhe”). O bom funcionamento da economia global está subordinado ao
cumprimento desssas promessas, isto é, só pode funcionar se, na hora de receber,
acontecer o esperado pagamento daquilo que foi prometido. Se a maior parte do
dinheiro que existe é um “I owe you”,
é, portanto, fundamental criar uma memória da dívida para assegurar o seu pagamento.
O verdadeiro lastro sobre o dinheiro não é o ouro, o papel-moeda, o banco
central, o PIB ou outra medida de riqueza existente, mas a confiança que guarda a memória da dívida.
A confiança na expectativa do futuro ser garantido, não apenas através das
instituições legais, mas pela construção de uma moral, ou melhor, pela produção
de um subjetividade.
A subjetividade é compreendida como um
sistema complexo e heterogéneo, composto pelo sujeito e pelas inúmeras relações
que ele estabelece. Trata-se de uma construção social e histórica, assumida e
vivida pelos sujeitos nas suas existências particulares. É a construção da vida
em si mesma, pois a subjetividade está nas “maneiras de sentir, de amar, de
perceber, de imaginar, de sonhar, de fazer, mas também de habitar, de vestir-se,
de se embelezar, de fruir etc.” (Pelbart, 2000, p.37).
As sociedades disciplinares,
hegemónicas do século XVIII até à II Guerra Mundial, eram definidas por
instituições sociais rigidamente estruturadas, com fronteiras nítidas entre si
(escolas, hospitais, prisões, fábricas) e os modos de subjetivação daí decorrentes
eram deterministas, fixados em identidades rigidamente estruturadas.
Os padrões fixos que determinavam tais
relações foram sendo modulados e, aos poucos, cederam espaço a relações e a
linhas mais flexíveis nos processos de subjetivação. A disciplina, já
internalizada, podia funcionar agora em campos mais abertos. Além disto, ao
capitalismo, em fase mais competitiva, com possibilidades de produção mais
diversificada e em contexto de maior circulação de informações e produtos, não
interessava sujeitos confinados e “robotizados”, mas capacidade de “transitar”.
“Quando as fronteiras entre os espaços se apagam tudo é escola, e tudo é
empresa, e tudo é família” (Pelbart, 2000, p.30).
Estas transformações indicam o
trânsito de uma sociedade tipicamente disciplinar para uma outra configuração,
na qual ordenamento, em rede, quase impercetível, se dá nas micro esferas do quotidiano
social, configurando a chamada sociedade
de controlo.
“É o
dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto
que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de
medida padrão - , ao passo que o controlo remete para trocas flutuantes,
modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras
de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas
a serpente é o das sociedades de controlo. Passamos de um animal a outro, da
toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de
viver e nas relações com os outros. O homem da disciplina era um produtor
descontínuo de energia, mas o homem do controlo é antes ondulatório,
funcionando em órbita, num feixe contínuo. (…) O homem não á mais o homem confinado, mas o homem endividado.” (Deleuze,
2008, pp. 222-4, sublinhado nosso)
A dívida é cada vez mais uma relação
universal que “apanha” toda a sociedade: o Estado (social) através da dívida pública,
as empresas, transformadas em ativos financeiros e a população em geral:
trabalhadores, desempregados, beneficiários de apoios sociais, reformados,
estudantes e mesmo os muito pobres ou os “sem-abrigo”, que não têm conta no banco, pagam
a dívida nos atos mais prosaicos, como comprar pão, cujo preço incluiu impostos
que aumentam para pagar a dívida.
Cada vez mais a relação credor/devedor se sobrepõe a todas as outras, como a
relação capital/trabalho, Estado social/utente, empresa/consumidor.
Como vimos,
no capitalismo contemporâneo
a propriedade, mais do que centrar-se nos meios de produção, como dizia Marx, gira em torno dos títulos de
propriedade do capital. Portanto, existe uma relação de poder que se modificou
em relação à tradição e que está agora desterritorializada,
como referem Deleuze e Guattari – está num nível de abstração
superior, mas que de qualquer forma continua, naturalmente, a organizar-se em
torno de uma propriedade: entre quem tem ou não acesso ao dinheiro.
Se a propriedade dos meios de produção exigia o
controlo principalmente sobre o trabalho, a propriedade abstrata, distribuida
pelo crédito/débito, não se dirige apenas ao trabalho, mas à sociedade em geral.
Se todos estão endividados, é preciso alargar, ou melhor, alterar os mecanismos
que asseguram o controlo, através da produção da subjetividade que constrói e
distribui a responsabilidade e a culpa.
A dívida altera profundamente ideias e conceitos
que já estavam definidos e desloca completamente as relações de força no sentido
de uma maior abstração e desterritorialização, razão pela qual temos hoje muito
mais dificuldade em enfrentar algo que, embora permeie todas as dimensões da
nossa vida, é uma “serpente” complexa, fugidia e ondulatória.
Mas aqui
fica um contributo. A sugestão para uma Bibliografia dos livros que, vou dizer assim, me
“encheram as medidas”. Uns recentes, outros
autênticas "lembraduras" com quem há muito tempo não me cruzava e foi
mesmo preciso o escadote para tirá-los da estante.
As palavras-chave
são: capitalismo, subjetividade (produção de) e dívida:
- Clastres, Pierre (1974). A sociedade contra o Estado. Investigações da antropologia política, Porto: Edições Afrontamento, 1979
- Graeber, David (2011). Debt: The First 5,000 Years, Brooklyn, New York: Melvillehouse, 2011
- Deleuze, Gilles, Conversações (1972-1990), S. Paulo: Editora 34, 2008 (7ª edição)
- Deleuze, Gilles e Guattari, Félix (1972). O Anti-Édipo, Capitalismo e esquizofrenia, Lisboa: Assírio e Alvim, 1995
- Foucault, Michel (1979). Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998 (13ª edição)
- Guattari, Félix e Rolnik, Suely (1982). Micropolítica. Cartografias do desejo, Petropolis: Editora Vozes, 1996 (4ª edição)
- Hard Michael e Negri, Antonio (2002). Império, de Janeiro, São Paulo: Editora Record, Rio 2001 (3ª edição)
- Harvey, David (2010). O enigma do capital e as crises do capitalismo, São Paulo: Boitempo Editorial, 2011
- Lazzarato, Maurizio et alia (2004). Capitalismo cognitivo, propiedad intelectual y creación colectiva, Madrid: Edición: Traficantes de Sueños
- Lazzarato, Maurizio (2011). La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Paris: Éditions Amsterdam
- Mauss, Marcel (1925).Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, São Paulo: Cosac Naify, 2007 (2ª edição)
- Lazzarato Maurizio e Negri Antonio Trabalho imaterial. Formas de vida e produção de subjetividade, Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
- Nietzsche, Friedrich (1877). A genealogia da moral, Lisboa: Guimarães Editores, 1976
- Pelbart, Peter Pál (2000). A vertigem por um fio. Políticas da subjetividade contemporânea, São Paulo: Editora Iluminuras
A literatura também:
- Machado de Assis, O Espelho - um conto sobre um alferes da Guarda Nacional que perdeu uma das almas…;
- William Shakespeare, O Mercador de Veneza – a dívida de Antonio, um mercador, tem como garantia uma libra da sua própria carne. Shylock, o credor pretende que a dívida seja paga com a matéria do próprio corpo do devedor. Muito simbólico.
A boa notícia: está tudo na net. Todos
estes livros (nas edições referidas) estão disponíveis online, é só googlar.
Boas leituras, bravos corajosos no gigantesco
combate ao gigantesco desconhecimento sobre a gigantesca dívida. Coragem!
Após uma ausência eis o regresso com um excelente post e umas boas propostas de leitura.
ResponderEliminar����������
Obrigada, Rui. Se tiveres tempo e paciência, vale a pena senão ler, pelo menos "folhear" alguns destes livros. Dão-nos uma visão das coisas muito diferente daquela que nos pespegam todos os dias na televisão e nos jornais. Podemos concordar ou discordar, o que interessa é procurar saber.
ResponderEliminarA ausência, pois, muito trabalhinho... :)
Abraço e obrigada, mais uma vez.