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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Fabricar o homem endividado


Shakespeare, Mercador de Veneza: frontispício e Shylock, por Charles Buchel, 1914




A dívida é o motor económico e subjetivo da sociedade contemporânea, considera Lazzarato no seu livro “La fabrique de l’homme endetté, essai sur la condition néolibérale” (2011) onde, de forma extraordinariamente pertinente, apresenta a dívida como nada menos do que:

a)     uma máquina de predação e captura da riqueza social;
b)     um instrumento de gestão macro-económica;
c)     um dispositivo de redistribuição (transferência) de rendimentos;
d)     um dispositivo de produção e controlo de subjetividades (individuais e coletivas).

 
Relativamente ao último aspeto, aquele que interessa aqui explorar (a dívida como dispositivo de produção e controlo de subjetividades), Lazzarato, partindo do segundo capítulo de “A Genealogia da Moral”, de Nietzche, e de “O Anti-Édipo”, de Deleuze e Guattari, oferece-nos uma reconstrução do neoliberalismo, segundo a qual em torno da dívida se produz um dispositivo de poder que molda por completo a infraestrutura biopolítica, numa reconfiguração do poder disciplinar e biopolítico pela dívida.
 

Uma dívida não consiste apenas em dinheiro que deve ser pago, mas em pensamentos e comportamentos que devem ser ajustados, precisamente para que esse dinheiro seja pago. É preciso ligar a economia da dívida a processos de subjectivação para se compreender que a dívida funciona também como o tal dispositivo de produção e controlo de subjetividades. A dívida exige a construção de uma subjetividade dotada de uma memória, uma consciência e uma moralidade que incite à confiança, à responsabilidade e à culpabilidade.

                               
No mundo de hoje, a maior parte do dinheiro não se compõe de papel-moeda, como o conhecemos, mas de títulos de crédito que representam promessas de pagamento futuro, um “I owe you” (“eu devo-lhe”). O bom funcionamento da economia global está subordinado ao cumprimento desssas promessas, isto é, só pode funcionar se, na hora de receber, acontecer o esperado pagamento daquilo que foi prometido. Se a maior parte do dinheiro que existe é um “I owe you”, é, portanto, fundamental criar uma memória da dívida para assegurar o seu pagamento.

O verdadeiro lastro sobre o dinheiro não é o ouro, o papel-moeda, o banco central, o PIB ou outra medida de riqueza existente, mas a confiança que guarda a memória da dívida. A confiança na expectativa do futuro ser garantido, não apenas através das instituições legais, mas pela construção de uma moral, ou melhor, pela produção de um subjetividade.

 
A subjetividade é compreendida como um sistema complexo e heterogéneo, composto pelo sujeito e pelas inúmeras relações que ele estabelece. Trata-se de uma construção social e histórica, assumida e vivida pelos sujeitos nas suas existências particulares. É a construção da vida em si mesma, pois a subjetividade está nas “maneiras de sentir, de amar, de perceber, de imaginar, de sonhar, de fazer, mas também de habitar, de vestir-se, de se embelezar, de fruir etc.” (Pelbart, 2000, p.37).

As sociedades disciplinares, hegemónicas do século XVIII até à II Guerra Mundial, eram definidas por instituições sociais rigidamente estruturadas, com fronteiras nítidas entre si (escolas, hospitais, prisões, fábricas) e os modos de subjetivação daí decorrentes eram deterministas, fixados em identidades rigidamente estruturadas.

Os padrões fixos que determinavam tais relações foram sendo modulados e, aos poucos, cederam espaço a relações e a linhas mais flexíveis nos processos de subjetivação. A disciplina, já internalizada, podia funcionar agora em campos mais abertos. Além disto, ao capitalismo, em fase mais competitiva, com possibilidades de produção mais diversificada e em contexto de maior circulação de informações e produtos, não interessava sujeitos confinados e “robotizados”, mas capacidade de “transitar”. “Quando as fronteiras entre os espaços se apagam tudo é escola, e tudo é empresa, e tudo é família” (Pelbart, 2000, p.30).

Estas transformações indicam o trânsito de uma sociedade tipicamente disciplinar para uma outra configuração, na qual ordenamento, em rede, quase impercetível, se dá nas micro esferas do quotidiano social, configurando a chamada sociedade de controlo.

 
“É o dinheiro que talvez melhor exprima a distinção entre as duas sociedades, visto que a disciplina sempre se referiu a moedas cunhadas em ouro – que servia de medida padrão - , ao passo que o controlo remete para trocas flutuantes, modulações que fazem intervir como cifra uma percentagem de diferentes amostras de moeda. A velha toupeira monetária é o animal dos meios de confinamento, mas a serpente é o das sociedades de controlo. Passamos de um animal a outro, da toupeira à serpente, no regime em que vivemos, mas também na nossa maneira de viver e nas relações com os outros. O homem da disciplina era um produtor descontínuo de energia, mas o homem do controlo é antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe contínuo. (…) O homem não á mais o homem confinado, mas o homem endividado.” (Deleuze, 2008, pp. 222-4, sublinhado nosso)

 
A dívida é cada vez mais uma relação universal que “apanha” toda a sociedade: o Estado (social) através da dívida pública, as empresas, transformadas em ativos financeiros e a população em geral: trabalhadores, desempregados, beneficiários de apoios sociais, reformados, estudantes e mesmo os muito pobres ou os “sem-abrigo”, que não têm conta no banco, pagam a dívida nos atos mais prosaicos, como comprar pão, cujo preço incluiu impostos que aumentam para pagar a dívida. Cada vez mais a relação credor/devedor se sobrepõe a todas as outras, como a relação capital/trabalho, Estado social/utente, empresa/consumidor.

 
Como vimos, no capitalismo contemporâneo a propriedade, mais do que centrar-se nos meios de produção, como dizia Marx, gira em torno dos títulos de propriedade do capital. Portanto, existe uma relação de poder que se modificou em relação à tradição e que está agora desterritorializada, como referem Deleuze e Guattari – está num nível de abstração superior, mas que de qualquer forma continua, naturalmente, a organizar-se em torno de uma propriedade: entre quem tem ou não acesso ao dinheiro.

 
Se a propriedade dos meios de produção exigia o controlo principalmente sobre o trabalho, a propriedade abstrata, distribuida pelo crédito/débito, não se dirige apenas ao trabalho, mas à sociedade em geral. Se todos estão endividados, é preciso alargar, ou melhor, alterar os mecanismos que asseguram o controlo, através da produção da subjetividade que constrói e distribui a responsabilidade e a culpa.

 
A dívida altera profundamente ideias e conceitos que já estavam definidos e desloca completamente as relações de força no sentido de uma maior abstração e desterritorialização, razão pela qual temos hoje muito mais dificuldade em enfrentar algo que, embora permeie todas as dimensões da nossa vida, é uma “serpente” complexa, fugidia e ondulatória.

  
Mas aqui fica um contributo. A sugestão para uma Bibliografia dos livros que, vou dizer assim, me “encheram as medidas”. Uns recentes, outros autênticas "lembraduras" com quem há muito tempo não me cruzava e foi mesmo preciso o escadote para tirá-los da estante.

 
 
As palavras-chave são: capitalismo, subjetividade (produção de) e dívida:
 
  • Clastres, Pierre (1974). A sociedade contra o Estado. Investigações da antropologia política, Porto: Edições Afrontamento, 1979
  • Graeber, David (2011). Debt: The First 5,000 Years, Brooklyn, New York: Melvillehouse,  2011
  • Deleuze, Gilles, Conversações (1972-1990), S. Paulo: Editora 34, 2008 (7ª edição)
  • Deleuze, Gilles e Guattari, Félix (1972). O Anti-Édipo, Capitalismo e esquizofrenia, Lisboa: Assírio e Alvim, 1995
  • Foucault, Michel (1979). Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998 (13ª edição)
  • Guattari, Félix e Rolnik, Suely (1982). Micropolítica. Cartografias do desejo, Petropolis: Editora Vozes, 1996 (4ª edição)
  • Hard Michael e Negri, Antonio (2002). Império, de Janeiro, São Paulo: Editora Record, Rio 2001 (3ª edição)
  •  Harvey, David (2010). O enigma do capital e as crises do capitalismo, São Paulo: Boitempo Editorial, 2011
  • Lazzarato, Maurizio et alia (2004). Capitalismo cognitivo, propiedad intelectual y creación colectiva, Madrid: Edición: Traficantes de Sueños
  • Lazzarato, Maurizio  (2011). La fabrique de l’homme endetté. Essai sur la condition néolibérale, Paris: Éditions Amsterdam
  •  Mauss, Marcel (1925).Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, São Paulo: Cosac Naify, 2007 (2ª edição)
  •  Lazzarato Maurizio e Negri Antonio Trabalho imaterial. Formas de vida e produção de subjetividade, Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
  •  Nietzsche, Friedrich (1877). A genealogia da moral, Lisboa: Guimarães Editores, 1976
  •  Pelbart, Peter Pál (2000). A vertigem por um fio. Políticas da subjetividade contemporânea, São Paulo: Editora Iluminuras

A literatura também:
  • Machado de Assis, O Espelho - um conto sobre um alferes da Guarda Nacional que perdeu uma das almas…;
  • William Shakespeare, O Mercador de Veneza – a dívida de Antonio, um mercador, tem como garantia uma libra da sua própria carne. Shylock, o credor pretende que a dívida seja paga com a matéria do próprio corpo do devedor. Muito simbólico.
 
A boa notícia: está tudo na net. Todos estes livros (nas edições referidas) estão disponíveis online, é só googlar.

 
Boas leituras, bravos corajosos no gigantesco combate ao gigantesco desconhecimento sobre a gigantesca dívida. Coragem!

 

2 comentários:

  1. Após uma ausência eis o regresso com um excelente post e umas boas propostas de leitura.
    ����������

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  2. Obrigada, Rui. Se tiveres tempo e paciência, vale a pena senão ler, pelo menos "folhear" alguns destes livros. Dão-nos uma visão das coisas muito diferente daquela que nos pespegam todos os dias na televisão e nos jornais. Podemos concordar ou discordar, o que interessa é procurar saber.

    A ausência, pois, muito trabalhinho... :)

    Abraço e obrigada, mais uma vez.

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