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domingo, 14 de julho de 2013

O fantástico mundo do Memorando: como se divide a população escolar?




Como se combatia a baixa escolaridade há muito tempo atrás…
 
Há uns anos atrás (não é indicado o ano, mas terá sido por volta de 1932, uma vez que o documento faz referência a dados estatístico desse ano), o então ministro da Instrução Pública, o Sr. Dr. Eusébio Tamagnini, deu uma entrevista a um jornal no âmbito de uma “campanha patriótica” contra o analfabetismo, que, segundo o ministro, “estaria extinto em 10 anos no caso das crianças em idade escolar”. “No caso dos adultos estudar-se-á a forma de, pelo menos, o atenuar ou reduzir” (ainda devemos andar a estudar  o problema, uma vez que ainda “há quase um milhão de portugueses analfabetos”, segundo esta notícia do Expresso).
 
Para saber que verbas afetar a esta campanha (para a “construção de escolas, vencimento de professores e outras despesas”), o ministro precisava, naturalmente de saber, quantos alunos existiam. Ou melhor que tipo de alunos existiam. Considera o ministro que, de acordo um “pedagogo americano, Terman, está provado que os alunos não são todos iguais. A população escolar pode e deve dividir-se em cinco grupos, a saber:
 
1º - Ineducáveis …………….…..….   8%
2º - Normais estúpidos …………....  15%
3º - Inteligência média ……….........  60%
4º - Inteligência superior …….…….. 15%
5º - Notáveis ……………………. ....   2%”

Ora, afirma ainda o Ministro, que o problema podia ser bastante simplificado, pois de acordo com “as necessidades e exigências da população escolar”, “23% de alunos (8% de ineducáveis e 15% de normais estúpidos) não carecem de ensino complementar” (mas apenas de “ensino elementar”), nem carecem de “professores diplomados ou de carreira, bastam os postos de ensino”.
 
Quanto à construção desses postos de ensino, acrescenta o Ministro que “simplificaremos também o problema reduzindo ao mínimo o seu custo. Não são necessários grandes edifícios. Bastarão casas de madeira – como na América – e para a edificação dos quais é de esperar contribuam também, em comparticipação com o Estado, as próprias povoações interessadas.”

(Ver entrevista no fim. Para aumentar, clicar no canto inferior direito)



Como se combate hoje a baixa escolaridade hoje no Memorando
 
Sem dúvida, uma entrevista extraordinária, “notável” para utilizar as palavras do Dr. Tamagnini. Hoje, a esta distância, as palavras, absolutamente claras, ditas por aquele ministro constituem afirmações do mais politicamente incorreto que podemos imaginar. Alguma vez um ministro da educação poderia hoje dizer que há indivíduos “ineducáveis”? Ou classificar alunos como “normais estúpidos”? Alguma vez poderia dizer que “os alunos não são todos iguais”? E que uns terão boas escolas, em bons edifícios e com bons professores e outros estudarão em postos de ensino edificados em casas de madeira?
 
Não. Hoje, para combater a baixa escolaridade, dir-se-ia assim:
 
“ O Governo irá prosseguir a sua acção no sentido de combater a baixa escolaridade e o abandono escolar precoce e de melhorar a qualidade do ensino secundário e do ensino e formação profissional, tendo em vista o aumento da eficiência no sector educativo, o aumento da qualidade do capital humano e a facilitação da adaptação ao mercado de trabalho. Para este fim, o Governo irá:
 
a)  criar um sistema de análise, monitorização, avaliação e apresentação de resultados de modo a avaliar com rigor os resultados e os impactos das políticas de educação e de formação, nomeadamente os planos já implementados (por exemplo, relativos a medidas de redução de custos, ensino e formação profissional e políticas para melhorar os resultados escolares e limitar o abandono escolar precoce). [T42011]

b)  apresentar um plano de acção para melhorar a qualidade dos serviços do ensino secundário, nomeadamente através da generalização dos acordos de confiança entre o Estado e as escolas públicas, definindo autonomia alargada e um enquadramento de financiamento baseado numa fórmula que inclua critérios de evolução do desempenho e de responsabilização (…). [T12012]” (Memorando do Entendimento, p. 24). 
Este texto reúne todos os requisitos do discurso político atual: é politicamente correto, com recurso a linguagem técnica e absolutamente confuso para ninguém entender.

No texto, na alínea a) á apenas graças ao parêntesis, que conseguimos ficar a saber que o tal “sistema de análise, monitorização, avaliação e apresentação de resultados de modo a avaliar com rigor os resultados e os impactos das políticas de educação e de formação” é para analisar “medidas de redução de custos”.

Na alínea b), não compreendo bem de que “autonomia alargada”, depois de ter lido esta notícia, entre muitas outras. Já o “financiamento baseado numa fórmula que inclua critérios de evolução do desempenho e de responsabilização”, parece claro. Um bom “desempenho” nas escolas traduz-se me bons resultados escolares. Logo, bons resultados = mais financiamento; maus resultados = menos financiamento.
 
Eis a “dualização” da escola pública que mantém e acentua as desigualdades*: gastar mais dinheiro com uns e menos com outros.

Mais ou menos como que dizia aquele Ministro da Instrução.



*Em economês também não se diz "desigualdade", diz-se "impacto assimétrico da crise". E já agora, "crise", diz-se "desacelaração severa".  E nem pense em dizer "recessão", diga "crescimento económico negativo".
 

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