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terça-feira, 9 de julho de 2013

A técnica e a política: ainda (e sempre) a dívida

Henri Cartier Bresson

Estive recentemente numa reunião de um movimento cidadão organizado em torno da necessidade de uma auditoria à dívida pública, onde foi discutida a questão da renegociação da dívida. Aí foram apresentadas algumas informações sobre casos anteriores, como os da Argentina e da Grécia. Em virtude da renegociação da dívida se tratar, a limite, de um processo técnico, a informação prestada também era de natureza “técnica” (Economia).
Algumas pessoas presentes diziam qualquer coisa como “Ok, está bem, tecnicamente será assim, mas, temos que pensar politicamente, a discussão tem que ser “política”.
Incluindo-me eu nesse grupo de pessoas que considera que a discussão deve ser também política, sou obrigada a pensar o que será pensar politicamente, ainda mais quando um dos intervenientes diz, e com total razão, que não estava ali para fazer “a gestão política da verdade”.
 
Tomemos o seguinte exemplo:
O leite que bebo de manhã ao pequeno-almoço fez um longo caminho, do produtor à fábrica de processamento, à embalagem e controlo de qualidade, ao sistema de distribuição, etc, etc. Mas não se consegue ver o circuito produtivo por trás do leite que chega prontinho à mesa.
Mil e uma operações de trabalho foram abstraídas, e no meio dessas abstrações uma infinidade de relações na organização do trabalho entre os mais variados patrões da cadeia e uma multidão de empregados. Não estamos habituados a pensar nisso ou não fomos educados para nos preocuparmos com isso ou, simplesmente, não é praticável estar sempre a pensar nisso. No caso do copo de leite, o que importa é o preço e, quando muito, o rótulo. De resto, tudo desaparece.
Pensar “tecnicamente” seria descrever toda a sucessão de etapas e operações da cadeia produtiva que terminam na constituição de um produto final e na sua colocação no mercado; Pensar “politicamente” seria compreender a natureza das relações sociais desiguais que terminam naquele copo de leite à mesa, trazendo à luz todos os rastos apagados ou escondidos por trás das etapas do processo. Uma discussão parecida com uma já aqui apresentada sobre alfaces (Post: "Contra factos há argumentos).
 
No que diz respeito à dívida pública, de um ponto de vista mais técnico pode responder-se desta forma à pergunta “O que é a dívida pública?” da seguinte forma:
As despesas do Estado são financiadas por receitas públicas, a maior parte proveniente dos impostos e, quando as despesas ultrapassam as receitas, também por empréstimos. A dívida pública resulta destes empréstimos contraídos e amortizados pelo Estado ao longo do tempo. 
Em muitos países o Banco Central é um dos financiadores dos Estado, mas na União Europeia o recurso ao Banco Central por parte do Estado foi tornado impossível pelos tratados europeus que obrigam os Estados a obter todos os empréstimos através da "venda" de títulos de dívida (OT - Obrigações do Tesouro) a investidores privados (bancos e fundos de investimento) e a particulares. Os credores do Estado quando adquirem um título, passam a receber um juro todos os anos até a um momento, definido pelo prazo (maturidade) do título, em que o valor inicial é todo devolvido ao investidor (amortização).
(…)
Também é possível receber empréstimos de outras nações ou instituições internacionais, como é o caso do empréstimo da troika (que inclui o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional). Em alguns empréstimos deste tipo há cláusulas de "condicionalidade" o que quer dizer que o devedor é obrigado a cumprir certas condições para ter acesso ao dinheiro.”

 
Esta resposta técnica, digamos assim, suscita, numa perspetiva política, a reflexão sobre alguns aspetos que foram referidos, designadamente os seguintes:
 
a)    “…o recurso ao Banco Central (para empréstimos) por parte do Estado foi tornado impossível pelos tratados europeus”;
b)      “… os Estados são obrigados a obter todos os empréstimos através da "venda" de títulos de dívida (OT) a investidores privados (bancos e fundos de investimento) e a particulares”;
c)    “Em alguns empréstimos deste tipo (troika) o devedor é obrigado a cumprir certas condições para ter acesso ao dinheiro”.
 
Quanto ao primeiro aspeto “a impossibilidade de recorrer ao Banco Central por parte do Estado, imposta pelos tratados europeus”, pode referir-se que a suposta “independência” do Banco Central face ao poder político, com o objetivo de garantir a estabilidade dos preços e que determina que o BCE e os outros bancos centrais nacionais fiquem impedidos de financiar diretamente os défices públicos, o que, na verdade, faz, é com que o BCE delegue a monetarização das dívidas nos mercados, injetando liquidez nos mesmos bancos que ajudaram a criar a dívida pública e que, hoje, especulam contra ela.
O poder fundamental do estado, a criação de dinheiro, foi transferido para elites financeiras multinacionais, à margem dos governos democraticamente eleitos. Em nome da “independência” do Banco Central, criou-se a dependência (sem aspas) dos mercados, pela obrigação de recorrer a credores privados e às condições ditadas por estes proprietários de obrigações.
A impossibilidade de recorrer ao Banco Central por parte do Estado é um aspeto absolutamente crucial na política monetária, responsável pelo peso “colossal” que os mercados financeiros têm como credores das dívidas públicas, designadamente europeias, mas não só.
Como alguém sugeria na referida reunião (um economista, por sinal), …só lá vai “reabrindo o banco de Portugal”.

 
Quanto ao terceiro aspeto (o segundo fica para o fim), as condições para ter acesso ao empréstimo, deve referir-se que essas “certas condições” que o devedor é obrigado a cumprir para ter acesso ao dinheiro são “apenas” estas: aumento generalizado de impostos, redução de salários, despedimentos massivos, redução das pensões e aumento da idade da reforma, aumento do tempo de trabalho, redução das prestações sociais, redução das funções sociais do Estado na Educação, Saúde e Segurança Social, liquidação do património do Estado em setores estratégicos como os combustíveis, eletricidade, correios, águas, etc, etc… condições de ajustamento (empobrecimento) que tornam cada vez mais difícil a devolução desses empréstimos. A generosidade da “ajuda” externa é tal, que vamos a caminho de um segundo resgate para pagar o primeiro e, quem sabe, de um terceiro para pagar o segundo… Com “condições” destas, é natural que nos emprestem dinheiro. Tendo um país como hipoteca (austeridade e privatizações), por que razão não haveriam de nos emprestar?
 
Finalmente, o segundo aspeto, relativo aos títulos de dívida (OT), assume também uma enorme relevância política e sobre o qual é importante fazer a seguinte reflexão.
A propriedade, mais do que referir-se aos meios de produção, como afirmava Marx, gira hoje em torno dos títulos de propriedade do capital, como as obrigações, por exemplo. Isso significa que existe uma relação de poder que se modificou em relação à tradição e que está desterritorializada (Deleuze e Guattari), está num nível de abstração superior, razão pela qual é mais difícil enfrentá-la. O crédito/débito foi a estratégia capitalista que, depois dos anos 1970, deslocou completamente a relação de forças.
De qualquer forma, essa relação continua a organizar-se em torno de uma propriedade: entre quem tem ou não acesso ao dinheiro. No capitalismo contemporâneo, a propriedade é distribuída pela posse ou privação de títulos de capital.
A facilidade da criação da mercadoria “dinheiro” torna mais atraente o investimento nos seus “produtos” do que na chamada economia real, onde se produzem os bens e os serviços necessários à vida. A imaterialidade, a facilidade de transmissão e movimentação geográfica (desregulamentação dos movimentos), e a ausência de tributação (isenção fiscal para o capital financeiro) dos produtos financeiros - ampliaram as suas formas e o seu poder exorbitante, que já não se limita aos instrumentos de crédito bancário.
No mundo hoje, como já aqui foi dito, a maior fatia do dinheiro não se compõe do papel-moeda como o conhecemos, mas de títulos, designadamente os da dívida, o que  possibilita que o dinheiro exista não só como meio de pagamento atual, mas também como promessa de pagamento. Dessa maneira, o sistema financeiro capitaliza o futuro, o que se dá com a emissão de títulos de crédito que representam essas promessas. Ocorre uma entrada antecipada de liquidez (mais dinheiro), atrelada ao pagamento futuro da parte dos devedores. O futuro pertence ao detentor dos títulos. A dívida, como uma troca diferida no tempo, produz a estranha sensação de uma vida sem futuro.
 
 

4 comentários:

  1. Portugal parece uma família em dificuldades financeiras, que em vez de tentar produzir algo com o seu trabalho recorre ao credito fácil, resultado é que a família pede um credito pra pagar outro credito, e quando da por si esta "enterrado" em dividas e nas mãos das instituições.
    Estas instituições que sabiam de antemão que a família nao conseguia pagar, continuariam emprestar dinheiro para que no fim pudesse ficar com os bens que restavam da dita família,
    E assim se passa com Portugal, vamos pedindo para pagar divida ate chegar ao ponto de ja não termos nada para por no " prego", e ai entrega-se o que resta do país aos investidores.
    Deixamos de ser portugueses para sermos multinacionais (acho que nao existe tal palavra, mas pareceu-me adequada).

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  2. Rui, no essencial, concordo. Talvez acrescentasse que o crédito também foi largamente estimulado pela "sociedade dos sonhos".

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  3. Sociedade dos sonhos e terra das oportunidades, pena é que no fim de tudo, apenas uns lucraram e tiveram as oportunidades, o resto do povo trabalha, quando tem trabalho, para ganhar uma miséria ao fim do mês.

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    1. Pois é, se nos mantivermos num estado de vigília, o "sonho" desaparece e as oportunidades são só as reais e poucas.

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