Henri Cartier Bresson
Estive
recentemente numa reunião de um movimento cidadão organizado em torno da
necessidade de uma auditoria à dívida pública, onde foi discutida a questão da
renegociação da dívida. Aí foram apresentadas algumas informações sobre casos
anteriores, como os da Argentina e da Grécia. Em virtude da renegociação da
dívida se tratar, a limite, de um processo técnico, a informação prestada também
era de natureza “técnica” (Economia).
Algumas
pessoas presentes diziam qualquer coisa como “Ok, está bem, tecnicamente será
assim, mas, temos que pensar politicamente,
a discussão tem que ser “política”.
Incluindo-me
eu nesse grupo de pessoas que considera que a discussão deve ser também política, sou obrigada a pensar o
que será pensar politicamente, ainda
mais quando um dos intervenientes diz, e com total razão, que não estava ali
para fazer “a gestão política da verdade”.
Tomemos
o seguinte exemplo:
O
leite que bebo de manhã ao pequeno-almoço fez um longo caminho, do produtor à
fábrica de processamento, à embalagem e controlo de qualidade, ao sistema de
distribuição, etc, etc. Mas não se consegue ver o circuito produtivo por trás
do leite que chega prontinho à mesa.
Mil
e uma operações de trabalho foram abstraídas, e no meio dessas abstrações uma
infinidade de relações na organização do trabalho entre os mais variados
patrões da cadeia e uma multidão de empregados. Não estamos habituados a pensar
nisso ou não fomos educados para nos preocuparmos com isso ou, simplesmente,
não é praticável estar sempre a pensar nisso. No caso do copo de leite, o que
importa é o preço e, quando muito, o rótulo. De resto, tudo desaparece.
Pensar
“tecnicamente” seria descrever toda a
sucessão de etapas e operações da cadeia produtiva que terminam na constituição
de um produto final e na sua colocação no mercado; Pensar “politicamente” seria
compreender a natureza das relações
sociais desiguais que terminam naquele copo de leite à mesa, trazendo à luz
todos os rastos apagados ou escondidos por trás das etapas do processo. Uma
discussão parecida com uma já aqui apresentada sobre alfaces (Post: "Contra factos há argumentos).
No que diz respeito à dívida pública, de um ponto de vista mais técnico pode responder-se desta forma à
pergunta “O que é a dívida pública?” da seguinte forma:
“As despesas do Estado são financiadas por receitas públicas, a maior
parte proveniente dos impostos e, quando as despesas ultrapassam as receitas,
também por empréstimos. A dívida pública resulta destes empréstimos contraídos
e amortizados pelo Estado ao longo do tempo.
Em muitos países o Banco Central é um dos financiadores dos
Estado, mas na União Europeia o recurso ao Banco Central por parte do Estado
foi tornado impossível pelos tratados europeus que obrigam os Estados a obter
todos os empréstimos através da "venda" de títulos de dívida (OT - Obrigações do Tesouro) a
investidores privados (bancos e fundos de investimento) e a particulares. Os
credores do Estado quando adquirem um título, passam a receber um juro todos os
anos até a um momento, definido pelo prazo (maturidade) do título, em que o
valor inicial é todo devolvido ao investidor (amortização).
(…)
Também é possível receber empréstimos de outras nações ou
instituições internacionais, como é o caso do empréstimo da troika (que inclui
o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário
Internacional). Em alguns empréstimos deste tipo há cláusulas de
"condicionalidade" o que quer dizer que o devedor é obrigado a
cumprir certas condições para ter acesso ao dinheiro.”
Esta resposta técnica, digamos assim, suscita, numa
perspetiva política, a reflexão sobre
alguns aspetos que foram referidos, designadamente os seguintes:
a) “…o recurso ao Banco Central (para empréstimos) por parte do
Estado foi tornado impossível pelos tratados europeus”;
b)
“… os Estados são
obrigados a obter todos os empréstimos através da "venda" de títulos
de dívida (OT) a investidores privados (bancos e fundos de investimento) e a
particulares”;
c) “Em alguns empréstimos deste tipo (troika) o devedor é obrigado a
cumprir certas condições para ter acesso ao dinheiro”.
Quanto ao primeiro aspeto “a impossibilidade
de recorrer ao Banco Central por parte do Estado, imposta pelos tratados
europeus”, pode referir-se que a suposta “independência”
do Banco Central face ao poder político, com o objetivo de garantir a
estabilidade dos preços e que determina que o BCE e os
outros bancos centrais nacionais fiquem impedidos de financiar diretamente os
défices públicos, o que, na verdade, faz, é com que o BCE delegue a monetarização das dívidas nos mercados,
injetando liquidez nos mesmos bancos que ajudaram a criar a dívida pública e
que, hoje, especulam contra ela.
O
poder fundamental do estado, a criação de dinheiro, foi transferido para elites
financeiras multinacionais, à margem dos governos democraticamente eleitos. Em
nome da “independência” do Banco Central, criou-se a
dependência (sem aspas) dos mercados, pela obrigação de recorrer a credores
privados e às condições ditadas por estes proprietários de obrigações.
A impossibilidade de recorrer ao Banco Central por parte do Estado
é um aspeto absolutamente crucial na política monetária, responsável pelo peso “colossal”
que os mercados financeiros têm como credores das dívidas públicas,
designadamente europeias, mas não só.
Como alguém sugeria na referida
reunião (um economista, por sinal), …só lá vai “reabrindo o banco de Portugal”.
Quanto ao terceiro aspeto
(o segundo fica para o fim), as condições para ter acesso ao empréstimo, deve
referir-se que essas “certas condições”
que o devedor
é obrigado a cumprir para ter acesso ao dinheiro são “apenas” estas: aumento
generalizado de impostos, redução de salários, despedimentos massivos, redução
das pensões e aumento da idade da reforma, aumento do tempo de trabalho, redução
das prestações sociais, redução das funções sociais do Estado na Educação,
Saúde e Segurança Social, liquidação do património do Estado em setores
estratégicos como os combustíveis, eletricidade, correios, águas, etc, etc…
condições de ajustamento (empobrecimento)
que tornam cada vez mais difícil a devolução desses empréstimos. A generosidade
da “ajuda” externa é tal, que vamos a caminho de um segundo resgate para pagar
o primeiro e, quem sabe, de um terceiro para pagar o segundo… Com “condições”
destas, é natural que nos emprestem dinheiro. Tendo um país como hipoteca
(austeridade e privatizações), por que razão não haveriam de nos emprestar?
Finalmente, o segundo
aspeto, relativo aos títulos de dívida
(OT), assume também uma enorme relevância política e sobre o qual é importante fazer
a seguinte reflexão.
A propriedade, mais do que referir-se aos meios
de produção, como afirmava Marx,
gira hoje em torno dos títulos de propriedade do capital, como as obrigações,
por exemplo. Isso significa que existe uma relação de poder que se modificou em
relação à tradição e que está desterritorializada (Deleuze e Guattari), está
num nível de abstração superior, razão pela qual é mais difícil enfrentá-la. O
crédito/débito foi a estratégia capitalista que, depois dos anos 1970, deslocou
completamente a relação de forças.
De qualquer forma, essa relação continua a
organizar-se em torno de uma propriedade: entre quem tem ou não acesso ao
dinheiro. No capitalismo contemporâneo, a propriedade é distribuída pela
posse ou privação de títulos de capital.
A facilidade da criação da mercadoria “dinheiro” torna mais atraente o
investimento nos seus “produtos” do que na chamada economia real, onde se
produzem os bens e os serviços necessários à vida. A imaterialidade, a facilidade
de transmissão e movimentação geográfica (desregulamentação dos movimentos), e
a ausência de tributação (isenção fiscal para o capital financeiro) dos
produtos financeiros - ampliaram as suas formas e o seu poder exorbitante, que
já não se limita aos instrumentos de crédito bancário.
No mundo hoje, como já aqui foi dito, a maior fatia do dinheiro não se compõe do papel-moeda como
o conhecemos, mas de títulos, designadamente os da dívida, o que possibilita que o dinheiro exista não só como
meio de pagamento atual, mas também como promessa de pagamento. Dessa maneira,
o sistema financeiro capitaliza o futuro, o que se dá com a emissão de títulos
de crédito que representam essas promessas. Ocorre uma entrada antecipada de
liquidez (mais dinheiro), atrelada ao pagamento futuro da parte dos devedores. O
futuro pertence ao detentor dos títulos. A dívida, como uma troca diferida no
tempo, produz a estranha sensação de uma vida sem futuro.
Portugal parece uma família em dificuldades financeiras, que em vez de tentar produzir algo com o seu trabalho recorre ao credito fácil, resultado é que a família pede um credito pra pagar outro credito, e quando da por si esta "enterrado" em dividas e nas mãos das instituições.
ResponderEliminarEstas instituições que sabiam de antemão que a família nao conseguia pagar, continuariam emprestar dinheiro para que no fim pudesse ficar com os bens que restavam da dita família,
E assim se passa com Portugal, vamos pedindo para pagar divida ate chegar ao ponto de ja não termos nada para por no " prego", e ai entrega-se o que resta do país aos investidores.
Deixamos de ser portugueses para sermos multinacionais (acho que nao existe tal palavra, mas pareceu-me adequada).
Rui, no essencial, concordo. Talvez acrescentasse que o crédito também foi largamente estimulado pela "sociedade dos sonhos".
ResponderEliminarSociedade dos sonhos e terra das oportunidades, pena é que no fim de tudo, apenas uns lucraram e tiveram as oportunidades, o resto do povo trabalha, quando tem trabalho, para ganhar uma miséria ao fim do mês.
ResponderEliminarPois é, se nos mantivermos num estado de vigília, o "sonho" desaparece e as oportunidades são só as reais e poucas.
Eliminar