Falar para um candeeiro...

sábado, 20 de julho de 2013

A perfeição de Nadia (Montreal, julho de 1976)


Estávamos em julho de 1976, tinha eu 10 anos, a 4ª classe acabada de fazer e umas longas férias pela frente. Como nasci em Angola, um país onde na altura não havia televisão, ainda tinha o deslumbramento por tudo o que (se) passava naquele ecrã a preto e branco. Via quase tudo o que aparecia, desde a publicidade à TV Rural.

Por aqueles dias a televisão ocupava-se das transmissões dos Jogos Olímpicos de Montreal, a que eu naturalmente assistia. Foi nessa altura que vi pela primeira vez imagens de uma atleta que ainda hoje está guardada na minha memória e na de milhões de outras pessoas por esse mundo: Nadia Comaneci. Assisti ao seu primeiro “10”, redondo e perfeito! Foi nas barras paralelas assimétricas que tudo começou e nada voltaria a ser como antes…  

Há quase 40 anos, alcançar a perfeição na ginástica era algo tão impensável que o próprio marcador eletrónico foi “apanhado” de surpresa naquele ginásio em Montreal: o marcador simplesmente não tinha espaço para quatro dígitos (10,00) e Nadia Comaneci, a primeira ginasta perfeita, acabou por posar para a posteridade ao lado do painel que exibia a ridícula nota "1,00", aquela que um marcador muito baralhado encontrou para mostrar a sua perfeição. Nos dias seguintes, realizou mais provas e obteve por mais seis vezes o mesmo score absoluto: 10.

Ainda hoje Nadia Comaneci foi a atleta que mais vezes obteve a nota 10 e foi a única a terminar um aparelho com uma avaliação perfeita (20 pontos, duas notas 10), nas mesmas barras assimétricas.

Nadia, 14 anos, romena, cinco medalhas de ouro e um lugar merecido e incontestado na História e seguramente na minha memória, tinha um ar sereno e muito concentrado. Era pequenina, magrinha e usava franja e o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo com uma fita. Usava um maillot branco da Adidas, com riscas dos lados. Tinha um ar simples e gracioso e por isso era agradável vê-la e observar sobretudo o ar natural e a ausência de esforço com que realizava aqueles movimentos perfeitos e impossíveis.

Naquela altura tinha uma ideia muito, muito vaga do que era a Roménia e do que se passava no seu país e nunca tinha ouvido falar de Ceausescu. Sabia apenas vagamente que o seu país pertencia, de uma certa forma, ao imenso grupo encabeçado pelos atletas CCCP (nunca percebi como podiam aquelas letras ser o nome de um país).

 
De volta à Roménia, Nadia foi recebida em júbilo e conseguiu a proeza de ganhar mais uma medalha: de Heroína do Trabalho Socialista (!, pobre Nadia), atribuída por Nicolae Ceausescu, para benefício da doutrina Socialista daquele sombrio regime comunista.

Muito mais tarde surgiriam notícias inquietantes de abusos sexuais por parte de autoridades (o ditador e o seu filho) e até de alguns técnicos.
 
O que é certo é que Nadia Comaneci voltaria a deixar o mundo suspenso quando, numa fuga espetacular pela Hungria, tenta livrar-se do domínio do decadente regime romeno. Durante dias nada se sabe do seu paradeiro. Chega a temer-se que a polícia secreta de Ceausescu tenha capturado e até executado a sua estrela maior. Mas, não. Nadia Comaneci reaparece no Canadá e finalmente obtém asilo nos Estados Unidos, onde atualmente reside.

A heroína do trabalho socialista tinha mesmo fugido do horror da ditadura da Roménia, um mês antes do próprio ditador Nicolae Ceausescu ser deposto, sumariamente julgado e fuzilado, em dezembro de 1989.



 
 

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