Estávamos em julho de 1976, tinha eu 10 anos, a 4ª
classe acabada de fazer e umas longas férias pela frente. Como nasci em Angola,
um país onde na altura não havia televisão, ainda tinha o deslumbramento por tudo
o que (se) passava naquele ecrã a preto e branco. Via quase tudo o que
aparecia, desde a publicidade à TV Rural.
Por aqueles dias a televisão ocupava-se das
transmissões dos Jogos Olímpicos de Montreal, a que eu naturalmente assistia. Foi
nessa altura que vi pela primeira vez imagens de uma atleta que ainda hoje está
guardada na minha memória e na de milhões de outras pessoas por esse mundo:
Nadia Comaneci. Assisti ao seu primeiro “10”, redondo e perfeito! Foi nas barras
paralelas assimétricas que tudo começou e nada voltaria a ser como antes…
Há quase 40 anos, alcançar a perfeição na
ginástica era algo tão impensável que o próprio marcador eletrónico foi “apanhado”
de surpresa naquele ginásio em Montreal: o marcador simplesmente não tinha
espaço para quatro dígitos (10,00) e Nadia Comaneci, a primeira ginasta
perfeita, acabou por posar para a posteridade ao lado do painel que exibia a
ridícula nota "1,00", aquela que um marcador muito baralhado encontrou para mostrar a sua perfeição. Nos dias seguintes,
realizou mais provas e obteve por mais seis vezes o mesmo score absoluto: 10.
Ainda hoje Nadia Comaneci foi a atleta que
mais vezes obteve a nota 10 e foi a única a terminar um aparelho com uma
avaliação perfeita (20 pontos, duas notas 10), nas mesmas barras assimétricas.
Nadia, 14 anos, romena, cinco medalhas de
ouro e um lugar merecido e incontestado na História e seguramente na minha
memória, tinha um ar sereno e muito concentrado. Era pequenina, magrinha e usava
franja e o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo com uma fita. Usava um maillot branco da Adidas, com riscas dos lados. Tinha um ar simples e gracioso e por
isso era agradável vê-la e observar sobretudo o ar natural e a ausência de
esforço com que realizava aqueles movimentos perfeitos e impossíveis.
Naquela altura tinha uma ideia muito, muito
vaga do que era a Roménia e do que se passava no seu país e nunca tinha ouvido
falar de Ceausescu. Sabia apenas vagamente que o seu país pertencia, de uma
certa forma, ao imenso grupo encabeçado pelos atletas CCCP (nunca percebi como podiam
aquelas letras ser o nome de um país).
De volta à Roménia, Nadia foi recebida em
júbilo e conseguiu a proeza de ganhar mais uma medalha: de Heroína do Trabalho
Socialista (!, pobre Nadia), atribuída por Nicolae Ceausescu, para benefício da doutrina
Socialista daquele sombrio regime comunista.
Muito mais tarde surgiriam notícias inquietantes de abusos sexuais por parte de
autoridades (o ditador e o seu filho) e até de alguns técnicos.
O que é certo é que Nadia Comaneci voltaria a deixar o
mundo suspenso quando, numa fuga espetacular pela Hungria, tenta livrar-se
do domínio do decadente regime romeno. Durante dias nada se sabe do seu
paradeiro. Chega a temer-se que a polícia secreta de Ceausescu tenha capturado
e até executado a sua estrela maior. Mas, não. Nadia Comaneci reaparece no
Canadá e finalmente obtém asilo nos Estados Unidos, onde atualmente reside.
A heroína
do trabalho socialista tinha mesmo fugido do horror da ditadura da Roménia,
um mês antes do próprio ditador Nicolae Ceausescu ser deposto, sumariamente julgado
e fuzilado, em dezembro de 1989.
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