Ticiano, As três idades do homem (1511-2)
As Três Idades
do homem de Ticiano é uma
representação da passagem do tempo, apresentando o ciclo da vida, anunciado no
quadro em planos distintos e bem identificados: a infância (as três crianças à
direita), a idade adulta (o casal, à esquerda) e a velhice (o idoso, ao fundo).
As personagens aí retratadas não exteriorizam sentimentos, o seu aspeto físico revela-nos que não se pode lutar contra o destino, contra a dualidade existencial da vida e da morte.
Como nos anuncia o quadro, a existência é efémera. Existe um dramático e inexorável momento em que o afastamento da força da vida e da existência vai sendo cada vez maior, até nos apagarmos definitivamente num afastado ponto do horizonte, como o velho de longas barbas, que, curvado e sozinho (é a única idade/personagem representada sozinha), segura as duas caveiras que anunciam a proximidade da morte.
As personagens aí retratadas não exteriorizam sentimentos, o seu aspeto físico revela-nos que não se pode lutar contra o destino, contra a dualidade existencial da vida e da morte.
Como nos anuncia o quadro, a existência é efémera. Existe um dramático e inexorável momento em que o afastamento da força da vida e da existência vai sendo cada vez maior, até nos apagarmos definitivamente num afastado ponto do horizonte, como o velho de longas barbas, que, curvado e sozinho (é a única idade/personagem representada sozinha), segura as duas caveiras que anunciam a proximidade da morte.
No
entanto, existe uma faculdade capaz de confundir e misturar as três idades: a memória humana.
A evocação pela memória retira o passado daquele recanto mais afastado e quase abandonado pela vida e deixa-o a vaguear inquieto pelo presente. Como se, por ação da memória, os três planos comunicassem através de passagens labirínticas ou existissem recantos sombrios com reaparecimentos de outras idades.
No quadro de Ticiano também existe, digo eu, esse elemento “sombrio” que “mistura” as idades e que causa alguma perplexidade ao observador: por que razão são representados os restos de uma velha árvore em fim de vida junto das crianças, precisamente aquelas que vêm anunciar o início ou o recomeço? Pode verificar-se que, por oposição, a árvore representada à esquerda, junto ao casal sentado num tufo verdejante, apresenta-se, naturalmente, frondosa.
A evocação pela memória retira o passado daquele recanto mais afastado e quase abandonado pela vida e deixa-o a vaguear inquieto pelo presente. Como se, por ação da memória, os três planos comunicassem através de passagens labirínticas ou existissem recantos sombrios com reaparecimentos de outras idades.
No quadro de Ticiano também existe, digo eu, esse elemento “sombrio” que “mistura” as idades e que causa alguma perplexidade ao observador: por que razão são representados os restos de uma velha árvore em fim de vida junto das crianças, precisamente aquelas que vêm anunciar o início ou o recomeço? Pode verificar-se que, por oposição, a árvore representada à esquerda, junto ao casal sentado num tufo verdejante, apresenta-se, naturalmente, frondosa.
As fotografias em geral, e aqui mais
especificamente aquelas imagens do vila do Bocoio que vou vendo no Facebook, de alguma forma, também “baralham” as idades da vida: a fotografia “repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” (Barthes,
1984, p. 13). Vejo as
imagens do Bocoio que vão surgindo ao meu olhar e a materialização
dessas imagens fotográficas são um elemento revelador e potencializador da
memória e da narrativa dessa memória,
“fotografar é apropriar-se da coisa fotografada.
Significa pôr-se a si mesmo numa determinada relação com o mundo” (Sontag, 2004,
p. 14).
As
imagens fotográficas que observo do Bocoio mostram-me um lugar do passado. No
meu caso pessoal, esses restos (ou rastos) ainda não se deixaram elaborar totalmente
e permanecem a vaguear inquietos e secretos: serão relíquias ou ruínas? As
minhas memórias não foram todas integradas (possivelmente nunca o serão), mas
também não foram apagadas e assim resistem ao esquecimento, numa relação de
estreita proximidade com a melancolia (existe uma melancolia penetrante nos
espaços do passado).
As
imagens do Bocoio que vou observando produzem uma tensão dinâmica entre o que
se vê e o que se sabe haver existido um dia, e que ainda existe de alguma forma
fragmentária ou simbólica. É o que resta de um passado, não inteiramente
passado, mas já não presente, e que conserva o seu carater residual, num jogo entre
a perda e a salvação desse passado.
A
“salvação” apresenta-se como algo difícil porque o movimento dialético entre a memória
e a História não funcionou. Isto é, a memória não se entregou ou não se
traduziu na História, não passou para o grande registo coletivo, mas permaneceu
apenas numa dimensão singular de memória- testemunho, uma pequena alma do passado.
Mas
mesmo que a memória permaneça apenas a um nível individual, ou ao nível de um
pequeno grupo, como é o caso, somos sempre tentados a um “regresso” e a uma reconstrução do
passado. Esperamos que os resíduos ancestrais (restos ou rastos) nos levem à
verdade, a uma verdade fora do tempo, capaz de descobrir os mistérios das
ruínas. Mistérios esses governados por uma poética do desejo, da perda e do abandono,
logo pouco compreendidos pelo nosso habitual e algo infeliz espirito
científico.
A ruína apresenta-se
na materialidade visível, que aparece em algumas imagens fotográficas que vou
vendo, mas fala, sobretudo, através daquilo que é invisível ou que apenas é
sugerido ou imaginado. Assim, a ruína contém a virtualidade do declínio e é
desta condição que retira a sua força, permitindo reencontrar o passado e
despertar a memória, numa viagem interior feita no espaço-memória sob o signo
da ruína. «A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se
atravessam as nossas fronteiras interiores» (Couto, 2006, p. 77).
Mas
as ruínas são também destruição, devastação e desfuncionalização, que mostram a
intensidade de um estado de desolação. Verifica-se,
não só nas imagens fotográficas, mas através do conhecimento geral, que marcas
indeléveis foram deixadas no espaço africano pelos portugueses: marcadores
físicos (o cemitério, a igreja, a escola, o hospital, o parque), orais (língua,
nomes), culturais (gastronomia, formas de vestir), etc. Com o passar do tempo
esses objetos, materiais ou imateriais,
que foram abandonados ou deixados, perderam inevitavelmente o seu contexto e significado
originais. Estão hoje ilegíveis ou apagados, enquanto símbolos de uma cultura
que se foi sumindo com a passagem do tempo, ou então foram absorvidos pela comunidade atual e
encontram-se reescritos numa outra língua, tendo-se tornado menos familiares, ou mesmo estranhos, mas desta vez para a cultura
(portuguesa) que os produziu originalmente.
Nas ruínas,
enquanto corpo do passado, as forças da natureza, começam inexoravelmente a
predominar sobre toda a obra humana, provando o seu poder sobre qualquer
civilização. Por essa razão, podemos também observar nas imagens fotográficas a
eternidade da natureza, como, por
exemplo, a do morro Ulombe, que
permanece intocável à passagem do tempo. Ele lá esta(rá) sempre na sua qualidade de
elemento natural, não humanizado, sujeito à lenta erosão milenar mas não à ruína que condena a obra humana.
No entanto, excecionalmente,
no conflito entre a Natureza e a construção humana, esta última pode sair a
ganhar sobre as próprias forças da natureza e do tempo. Por vezes, o carater histórico das ruínas atinge
um ponto quase “absoluto”, convertendo essas próprias ruínas em formas
intemporais, como as ruínas gregas ou romanas, por exemplo. Fora do próprio
tempo e deslocadas de qualquer contexto real, o Pártenon de Atenas ou o Coliseu
de Roma, são ruínas eternas, que se
assemelham a um teatro trágico do mundo, capaz de devolver e mostrar aos
espectadores as origens mais remotas das civilizações.
As ruínas que vou observando nas
imagens fotográficas do Bocoio não têm, naturalmente, esta dimensão de
eternidade do mundo. Pelo contrário, algumas imagens mostram estruturas
abandonadas e emudecidas, à mercê de um constante processo de esfacelamento,
como algumas casas, por exemplo. Essas casas já há muito que deixaram de ser
espaços habitacionais vivos e são agora elementos desfuncionalizados que perderam
o seu papel de habitação e universo do acolhimento.
“Mwadia sentia
o escuro do aposento entrando no escuro dos seus olhos. Seus dedos roçaram a
poeira dos móveis como que pedindo socorro. Os panos intactos pareciam
adormecidos. Se Mwadia lhes tocava, porém, eles se esfumavam, vertidos em
poalha. (…) Tudo pousado, parado, em pasmo sobre o passado.
(...) Ao
chegar à praça, Mwadia se espantou: o que restava da barbearia não era mais que
uma parede arruinada, localizada ao fundo, nas traseiras do que já havia sido
um edifício. Não havia mais nenhuma outra parede. Nem tecto existia. Tudo se
tinha desmoronado (…).
O espaço era aberto, devasso." (Couto, 2006, pp. 141 e
146).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
COUTO, Mia. O Outro Pé da Sereia. Lisboa: Editorial Caminho, 2006
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004
No
documento em anexo podem ver-se imagens do Bocoio, retiradas, entre outras fontes, do Facebook. Aí podem observar-se casas em ruínas, estruturas que se
foram apagando com a passagem
do tempo, ou mais provavelmente com a intervenção humana (como consequência do
prolongado estado de guerra), bem como outros espaços que foram absorvidos pela comunidade atual e que se encontram bem preservados.
Apresentam-se também
imagens de elementos naturais, como o morro
Ulombe, insuscetíveis de intervenção ou destruição humana e que se
conservam, naturalmente, intactos. Não estão sujeito às três idades da vida, o ciclo da efémera existência humana.
Para aumentar a imagem: clicar no canto inferior direito, em baixo. Para avançar, clicar na seta (=>)
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