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domingo, 21 de julho de 2013

Bocoio (Angola): memórias, ruínas e preservação

Ticiano, As três idades do homem (1511-2)

 
As Três Idades do homem de Ticiano é uma representação da passagem do tempo, apresentando o ciclo da vida, anunciado no quadro em planos distintos e bem identificados: a infância (as três crianças à direita), a idade adulta (o casal, à esquerda) e a velhice (o idoso, ao fundo).
As personagens aí retratadas não exteriorizam sentimentos, o seu aspeto físico revela-nos que não se pode lutar contra o destino, contra a dualidade existencial da vida e da morte.

Como nos anuncia o quadro, a existência é efémera. Existe um dramático e inexorável momento em que o afastamento da força da vida e da existência vai sendo cada vez maior, até nos apagarmos definitivamente num afastado ponto do horizonte, como o velho de longas barbas, que, curvado e sozinho (é a única idade/personagem representada sozinha), segura as duas caveiras que anunciam a proximidade da morte.


No entanto, existe uma faculdade capaz de confundir e misturar as três idades: a memória humana.
A evocação pela memória retira o passado daquele recanto mais afastado e quase abandonado pela vida e deixa-o a vaguear inquieto pelo presente. Como se, por ação da memória, os três planos comunicassem através de passagens labirínticas ou existissem recantos sombrios com reaparecimentos de outras idades.

No quadro de Ticiano também existe, digo eu, esse elemento “sombrio” que “mistura” as idades e que causa alguma perplexidade ao observador: por que razão são representados os restos de uma velha árvore em fim de vida junto das crianças, precisamente aquelas que vêm anunciar o início ou o recomeço? Pode verificar-se que, por oposição, a árvore representada à esquerda, junto ao casal sentado num tufo verdejante, apresenta-se, naturalmente, frondosa.

 
As fotografias em geral, e aqui mais especificamente aquelas imagens do vila do Bocoio que vou vendo no Facebook, de alguma forma, também “baralham” as idades da vida: a fotografia “repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente” (Barthes, 1984, p. 13). Vejo as imagens do Bocoio que vão surgindo ao meu olhar e a materialização dessas imagens fotográficas são um elemento revelador e potencializador da memória e da narrativa dessa memória, “fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr-se a si mesmo numa determinada relação com o mundo” (Sontag, 2004, p. 14).

As imagens fotográficas que observo do Bocoio mostram-me um lugar do passado. No meu caso pessoal, esses restos (ou rastos) ainda não se deixaram elaborar totalmente e permanecem a vaguear inquietos e secretos: serão relíquias ou ruínas? As minhas memórias não foram todas integradas (possivelmente nunca o serão), mas também não foram apagadas e assim resistem ao esquecimento, numa relação de estreita proximidade com a melancolia (existe uma melancolia penetrante nos espaços do passado).

As imagens do Bocoio que vou observando produzem uma tensão dinâmica entre o que se vê e o que se sabe haver existido um dia, e que ainda existe de alguma forma fragmentária ou simbólica. É o que resta de um passado, não inteiramente passado, mas já não presente, e que conserva o seu carater residual, num jogo entre a perda e a salvação desse passado.

A “salvação” apresenta-se como algo difícil porque o movimento dialético entre a memória e a História não funcionou. Isto é, a memória não se entregou ou não se traduziu na História, não passou para o grande registo coletivo, mas permaneceu apenas numa dimensão singular de memória- testemunho, uma pequena alma do passado.

Mas mesmo que a memória permaneça apenas a um nível individual, ou ao nível de um pequeno grupo, como é o caso, somos sempre tentados a um “regresso” e a uma reconstrução do passado. Esperamos que os resíduos ancestrais (restos ou rastos) nos levem à verdade, a uma verdade fora do tempo, capaz de descobrir os mistérios das ruínas. Mistérios esses governados por uma poética do desejo, da perda e do abandono, logo pouco compreendidos pelo nosso habitual e algo infeliz espirito científico.

A ruína apresenta-se na materialidade visível, que aparece em algumas imagens fotográficas que vou vendo, mas fala, sobretudo, através daquilo que é invisível ou que apenas é sugerido ou imaginado. Assim, a ruína contém a virtualidade do declínio e é desta condição que retira a sua força, permitindo reencontrar o passado e despertar a memória, numa viagem interior feita no espaço-memória sob o signo da ruína. «A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se atravessam as nossas fronteiras interiores» (Couto, 2006, p. 77).
 
 
Mas as ruínas são também destruição, devastação e desfuncionalização, que mostram a intensidade de um estado de desolação. Verifica-se, não só nas imagens fotográficas, mas através do conhecimento geral, que marcas indeléveis foram deixadas no espaço africano pelos portugueses: marcadores físicos (o cemitério, a igreja, a escola, o hospital, o parque), orais (língua, nomes), culturais (gastronomia, formas de vestir), etc. Com o passar do tempo esses objetos, materiais ou imateriais, que foram abandonados ou deixados, perderam inevitavelmente o seu contexto e significado originais. Estão hoje ilegíveis ou apagados, enquanto símbolos de uma cultura que se foi sumindo com a passagem do tempo, ou então foram absorvidos pela comunidade atual e encontram-se reescritos numa outra língua, tendo-se tornado menos familiares, ou mesmo estranhos, mas desta vez para a cultura (portuguesa) que os produziu originalmente.
 
 
Nas ruínas, enquanto corpo do passado, as forças da natureza, começam inexoravelmente a predominar sobre toda a obra humana, provando o seu poder sobre qualquer civilização. Por essa razão, podemos também observar nas imagens fotográficas a eternidade da natureza, como, por exemplo, a do morro Ulombe, que permanece intocável à passagem do tempo. Ele lá esta(rá) sempre na sua qualidade de elemento natural, não humanizado, sujeito à lenta erosão milenar mas não  à ruína que condena a obra humana.

No entanto, excecionalmente, no conflito entre a Natureza e a construção humana, esta última pode sair a ganhar sobre as próprias forças da natureza e do tempo. Por vezes, o carater histórico das ruínas atinge um ponto quase “absoluto”, convertendo essas próprias ruínas em formas intemporais, como as ruínas gregas ou romanas, por exemplo. Fora do próprio tempo e deslocadas de qualquer contexto real, o Pártenon de Atenas ou o Coliseu de Roma, são ruínas eternas, que se assemelham a um teatro trágico do mundo, capaz de devolver e mostrar aos espectadores as origens mais remotas das civilizações.

As ruínas que vou observando nas imagens fotográficas do Bocoio não têm, naturalmente, esta dimensão de eternidade do mundo. Pelo contrário, algumas imagens mostram estruturas abandonadas e emudecidas, à mercê de um constante processo de esfacelamento, como algumas casas, por exemplo. Essas casas já há muito que deixaram de ser espaços habitacionais vivos e são agora elementos desfuncionalizados que perderam o seu papel de habitação e universo do acolhimento.

“Mwadia sentia o escuro do aposento entrando no escuro dos seus olhos. Seus dedos roçaram a poeira dos móveis como que pedindo socorro. Os panos intactos pareciam adormecidos. Se Mwadia lhes tocava, porém, eles se esfumavam, vertidos em poalha. (…) Tudo pousado, parado, em pasmo sobre o passado.
(...) Ao chegar à praça, Mwadia se espantou: o que restava da barbearia não era mais que uma parede arruinada, localizada ao fundo, nas traseiras do que já havia sido um edifício. Não havia mais nenhuma outra parede. Nem tecto existia. Tudo se tinha desmoronado (…).
 
O espaço era aberto, devasso." (Couto, 2006, pp. 141 e 146).
 



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984
COUTO, Mia. O Outro Pé da Sereia. Lisboa: Editorial Caminho, 2006
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

  
No documento em anexo podem ver-se imagens do Bocoio, retiradas, entre outras fontes, do Facebook. Aí podem observar-se casas em ruínas, estruturas que se foram apagando com a passagem do tempo, ou mais provavelmente com a intervenção humana (como consequência do prolongado estado de guerra), bem como outros espaços que foram absorvidos pela comunidade atual e que se encontram bem preservados.
Apresentam-se também imagens de elementos naturais, como o morro Ulombe, insuscetíveis de intervenção ou destruição humana e que se conservam, naturalmente, intactos. Não estão sujeito às três idades da vida, o ciclo da efémera existência humana.
 
 
Para aumentar a imagem: clicar no canto inferior direito, em baixo. Para avançar, clicar na seta (=>)
 


 

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