Falar para um candeeiro...

sábado, 21 de dezembro de 2013

A sul do Natal

Sempre me lembro de ver postais de Natal com imagens que mostravam a lareira acesa numa sala toda decorada com motivos de Natal e onde pela janela se via a neve a cair lá fora, ou postais onde se viam os bonecos de neve, geralmente com um chapéu ou gorro na cabeça e cachecol enrolado ao pescoço, para além do inevitável nariz feito com uma cenoura, ou aqueles postais que simplesmente mostravam o Pai Natal bem agasalhado com o seu habitual fato vermelho e as suas botas pretas.

Os postais de Natal podiam ser diferentes, mas todos eles ilustravam a mesma ideia: no natal está frio.  E todo aquele cenário da  lareira numa sala quentinha  ou a neve lá fora a cair, compunham lindos postais e mostravam como o verdadeiro Natal deveria ser.

Mas no Bocoio, onde nasci, não havia nada daquilo! Quem é que podia levar a sério um natal cheio de calor? Mesmo os pedaços de algodão branco espalhados pela árvore de Natal a imitar os flocos de neve não podiam produzir aquele efeito. Um pinheiro com pedaços de algodão podia ter um valor simbólico mas não apagava o incontornável  facto do Natal em Angola ser mais propício a ser passado no calor da praia do que no calor da lareira.
Perante esta evidência, a minha dúvida de criança era saber se alguém simplesmente se lembrou de inventar aquele cenário de frio apenas para conceber uma estética natalícia que produzia lindos postais de Natal , ou se, afinal, o menino Jesus não tinha mesmo nascido em Angola.  Esta era a hipótese mais terrível, era como se o Natal fosse uma mentira.

Consoante o meu estado de espirito, acreditava numa ou noutra destas hipóteses, mas sempre soube que havia ali alguma coisa de “errado”. Se alguma vez cheguei  a perguntar, não ficou registado  na minha memória qualquer explicação para este facto. Suponho que, mesmo que tivesse existido alguma explicação, não seria muito esclarecedora, mas seria apenas mais uma teoria vinda do complicado mundo dos “adultos”.

Mas, depois lá vinha a noite da véspera de Natal e a minha atenção era inteiramente desviada para o mais importante: os presentes! Depois disso, o próprio Natal acabava sempre por terminar e eu só  voltaria a pensar nestas questões importantantes no ano seguinte, por  altura dos postais, que eram o primeiro sinal a anunciar a chegada do Natal.

Por fim, num certo Natal, todas as minhas  dúvidas se dissiparam. No primeiro inverno que passei em Portugal percebi logo que devia ser aqui que se faziam os postais de Natal. Eu própria, de gorro e cachecol, quase parecia um boneco de neve. Mais tarde percebi ainda que a verdadeira-verdadeira terra dos postais de Natal afinal ficava lá mais acima, nos países do Norte.

Talvez um dia ainda vá até à Lapónia e envie de lá um postal de Natal às crianças do Bocoio, garantindo-lhe que, apesar do ar nórdico dos postais, o Natal na sua terra  é tão certo como em qualquer outro sítio do mundo. E se não festejarem o Natal continuam a estar certos. 

Aos povos do Norte, um Natal quentinho e cheio de luz e aos povos do Sul um Natal fresquinho mas cheio de sol. Talvez  um pouco mais de Sul no Norte e um pouco mais de Norte no Sul. O mundo é GLOBAL e é só um.


terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Ajustamento ou penalização salarial"? Não. É mesmo roubo.

Walker Evans

(...)
Olhando para o índice dos custos salariais publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, verifica-se um recuo entre o terceiro trimestre de 2008 e o mesmo período de 2013. Num estudo recente, o Banco de Portugal também dava conta de um ajustamento dos salários que foi feito, sobretudo à custa da "rotação de trabalhadores". As empresas em que houve entradas e saídas de trabalhadores ofereceram, em média, um salário 110 euros mais baixo (ou 11%) aos novos funcionários. O banco referia, na altura. que o aumento da duração do desemprego reflecte-se também numa "penalização salarial no retorno ao emprego".
(...) Jornal Público, Artigo completo aqui

A Troika serviu para baixar:
a) o défice
b)  a dívida
c) o desemprego
d) os salários.

Ainda alguma dúvida?
Mesmo os "mais honrados" que sempre acharam que tinham que pagar esta dívida impagável, afinal não a pagaram. A única coisa que lhes aconteceu foi o mesmo que a todos os outros que trabalham: roubaram-lhes parte do seu salário. "Roubo" é mesmo a designação técnica para "ajustamento dos salários" ou "penalização salarial".
 
 

domingo, 8 de dezembro de 2013

Pôr o chocolate no frigorífico... para derreter melhor

"... estava o peixinho, veio o gato e comeu-o…”
 
Derreteu-se o chocolate   LUÍS AGUIAR-CONRARIA
A ideia é esta: há uma fila infinita de crianças com um chocolate na mão. Cada criança dá um chocolate à que estiver à sua frente na fila. Exceto a primeira criança, que recebeu um chocolate mas não deu nenhum e a última que deu mas não recebeu.

As “crianças” são os contribuintes, o “chocolate” é a contribuição para a Segurança social, a “fila” são as várias gerações de contribuintes, a “primeira criança” são os trabalhadores que se reformaram antes do sistema ter sido criado (nunca descontaram, isto é, ainda não tinham o chocolate) e a “última criança” são as atuais gerações que não têm o chocolate.

O argumento é o seguinte: para a solvabilidade do sistema é necessário crescimento demográfico e económico e atualmente não temos nem uma coisa nem outra, logo as atuais gerações mais novas ficam fora do contrato social, ou melhor numa situação de “egoísmo” social (contribuem mas o chocolate já foi derretido).

Nesta história, o autor não explica aquilo que, como sociedade, deveríamos fazer com a primeira criança, mas palpita-me que ficava mesmo sem o chocolate (a ausência de solidariedade social até nos permitiria ser infinitamente bondosos e caritativos e vir à televisão falar sobre o banco alimentar e a inestimável colaboração do pingo doce). Quanto à última criança, diz o autor que faz um “péssimo negócio, mais valia guardar o chocolate no frigorífico. Essa alternativa corresponderia a um sistema de segurança social de capitalização, que não é o nosso”.

Capitalização, mais do género contas individuais, um frigorífico cheio de PPR, estilo fundos de pensões. Ou seja devemos todos contribuir para reforçar o grande capital financeiro, o mesmo que produz(iu) enormes crises com impacto negativo no tal crescimento económico e (que declinou, pois) e… nas tais contribuições para a Segurança Social (que derreteram, pois). E ficarmos cada vez mais nas mãos do sistema financeiro, de “investidores”, que "derretem" especulativamente as dívidas públicas, como a nossa.

Convém não esquecer que, contrariamente ao anunciado “regresso aos mercados”, o único sítio onde eternamente regressaremos é ao “clube da bancarrota” (“a probabilidade de incumprimento da dívida portuguesa subiu – desalojando a posição de El Salvador; o custo dos credit default swaps (derivados financeiros que funcionam como seguros contra o risco de default) a cinco anos subiu; a trajetória das yields da dívida portuguesa no mercado secundário foi de subida no caso das obrigações do Tesouro (OT) nos prazos a cinco e a dez anos”…. Ver aqui mais sobre o nosso brilhante regresso, depois de tantos cortes.

Lembrem-se disto quando, todas as noites tivermos que gramar com o rol de comentadores, sem contraditório, no “debate” político televisivo ou quando nos vêm dizer que o “chocolate derreteu”.

O chocolate não derreteu. Alguém se meteu na fila e comeu-o! Lembram-se daquela publicidade de natal dos chocolates Regina “… estava o peixinho, veio o gato e comeu-o…”, pois foi.

Agora, ainda nos dizem para guardarmos os poucos chocolates que restam no tal “frigorífico” de capitalização para "não derreterem".
Assim, nem o “coelhinho” consegue ir com “o Pai Natal e o(s) palhaço(s) no comboio ao circo.

sábado, 7 de dezembro de 2013

"A lei é igual para todos”, já fiquei mais descansada.


Desde quando o facto de alguém dizer algo, pelos vistos extraordinário, como “a lei é igual para todos” constitui uma notícia do jornal  “Público”, ou sequer uma notícia de jornal, ou sequer uma notícia?
Será que se eu disser “este teclado onde escrevo este post está sujeito à lei da gravidade”, algum jornal vai publicar? 

Ou será que afinal a frase “a lei é igual para todos” é, de facto, extraordinária porque alguém acha que o patriarca de Lisboa podia achar que a lei não é igual para todos? Assim, sim, já seria notícia. E todos ficaríamos rendidos ao enorme sentido jornalístico do Público e ao enorme sentido cívico do patriarca que, extraordinariamente, acha que “a lei é igual para todos”. 

E assim se distribui o espaço público do acesso à palavra.



domingo, 1 de dezembro de 2013

Defenestração: há por aí muita janela e muito candidato

Dia 1 de dezembro, quarenta conjurados e um povo inteiro, libertou-se do jugo (espanhol, na altura) e readquiriu a sua independência. Passaram 373 anos e hoje este dia já não é feriado.

Não estando bem certa de ainda podermos comemorar a “independência” de Portugal (e não necessariamente por não ser feriado), parece-me, em todo o caso, oportuno tecer umas loas à defenestração. Há por aí muita janela e muito candidato. A defenestração pode ser simbólica, vá.
 
As loas, no humor de Luís Fernando Veríssimo:

 
Mas, nenhuma palavra me fascinava tanto quanto "defenestração".
 
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar deveria ser um acto exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deveriam sussurrar ao ouvido de mulheres:
- Defenestras?
 A resposta seria uma bofetada na cara. Mas, algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insectos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerram os documentos formais? “Nesses termos, pede defenestração...” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
-Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exacta.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “Defenestration”. Substantivo feminino. Acto de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância, mas não minha fascinação. Um acto como esse só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o acto de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada a baixo. Por que então, defenestração?
(…)
-Com prédios de três, quatro andares, ainda era possível. Até divertido. Mas, daí para cima é crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdito defenestrar”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestradores. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
- É essa estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor…
- Humm, O Impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitectura moderna, com as suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reacção inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
- Fui defenestrado…
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda o atiraram pela janela.
Agora mesmo deu-me uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crónica. Se ela sair é porque resisti.
 
Luís Fernando Veríssimo



sexta-feira, 29 de novembro de 2013

10 perguntas e 10 respostas para compreender a dívida

"A dívida está a servir para destruir países. O nosso é um deles. Destruir emprego, destruir o direito universal à saúde, à educação, à cultura, a pensões dignas. Todos os compromissos estão a ser rasgados. Invioláveis só os direitos dos credores. Compreender a dívida, conhecê-la, é o primeiro passo para a vencer.
Sobre a dívida há muitas perguntas, algumas delas sem resposta. Aqui estão dez perguntas muitos frequentes e dez respostas para difundir e debater."

Ler documento em baixo ou aqui. 
 

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

No princípio era a dívida

David Graeber, Dívida: os primeiros 5000 anos


O livro Dívida: os primeirs 5000 anos de David Graeber é uma obra fundamental para compreender a dívida, uma longa história com milhares de anos.
Aqui fica a minha leitura-resumo deste livro imprescindível que nos apresenta uma "versão da história" muito diferente daquele que circula por ai todos os dias.
 
 
A dívida baseia-se no poder absoluto da riqueza: é a acumulação de excedentes, nascida da desigualdade e da propriedade, que permite que uns tenham o que falta aos outros. A dívida é por isso também um modo de submissão: gerava a escravidão dos devedores faltosos, que perdiam as suas terras e a li­berdade para o seu novo senhor.
 
O antropólogo David Graeber conta a história da dívida, que começou há 5000 anos. Este autor coloca a economia da dívida como fundamento para a compreensão da economia global, senão mesmo da história em geral, a partir da qual entendemos a vida moderna. Nessa economia da dívida, o seu registo permitiu a extensão dos mercados, muito tempo antes do início de circulação da moeda cunhada. A moeda corrente era a dívida.

Considera que existe algo na natureza quantitativa da dívida, isto é, no modo como conseguiu “despersonalizar” as relações sociais humanas, que a torna numa força absolutamente poderosa na civilização. A dívida, como a conhecemos, resultou da capacidade de transformar obrigações morais em números, e, seguidamente, do poder de usar esses números para justificar atos (violentos) que não poderiam ser justificados moralmente de outra maneira. E nada disto tem a ver com um comportamento natural de mercado.


Hoje aquilo que o FMI faz com os países do Sul Global é apenas uma versão moderna de uma história bem antiga: credores e governos afirmam que existe uma crise e que os devedores, obviamente, têm que pagar suas dívidas.

A “tábua rasa” mesopotâmica, os jubileus bíblicos e as leis medievais contra a usura no Islão e no Cristianismo evitavam que os mais pobres caissem na servidão e se tornem escravos dos ricos.

Mas, o que sucede hoje? Em vez de se criarem instituições para proteger os endividados, criaram-se enormes instituições, à escala mundial, como o FMI, o Banco Mundial ou as agências de rating, destinadas a proteger os credores. Estas instituições decretam - contra toda a lógica económica - que nenhum país endividado pode declarar a suspensão do pagamento. Não se discute qualquer “perdão” da dívida, o dinheiro deve ser retirado, especialmente aos membros mais vulneráveis da sociedade, onde é mais fácil retirá-lo, vidas inteiras acabam por ser destruídas e milhões de pessoas morrem, simplesmente porque “bem, eles têm que pagar as dívidas”.

Segundo Graeber, a dívida é a arma mais potente já usada pelos poderosos para convencer as pessoas de que elas têm que obedecer ao seu poder e, ainda por cima, tudo por culpa delas mesmas que se endividaram.


No seu livro, Graeber desmonta as ideias do senso comum sobre a dívida e mostra de que forma as sociedades humanas, desde a antiga Suméria até aos dias de hoje, lidaram com a responsabilidade dos credores nos planos económico, legal e moral. Segundo ele, ao contrário do que se pensa habitualmente, a dívida surgiu antes do dinheiro, os sistemas de crédito vieram primeiro, e as moedas foram criadas muito tempo depois. Os primeiros registros que existem do sistema de dívida e crédito datam de 3000 anos antes de Cristo, embora seja impossível ter certeza de quando surgiram.

Para este autor, é fundamental compreender que o dinheiro não surgiu na forma impessoal, como metal com valor intrínseco, mas originalmente aparece como uma relação de dívida e obrigação entre seres humanos, que se foi transformando numa forma de medida, numa abstração.
(continua)

 
Ver texto completo da leitura-resumo.
(Para aumentar (A4), clicar no ícone (retângulo) no canto inferior direito)

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

"Bora lá" agora ser honestos


 
 
Eu gosto é destas notícias que nos poupam o trabalho de ter que escrever um post.

Já fomos “porreiros, pá”, “bora lá agora ser honestos”, já agora também sobre a dívida, o défice, o desemprego, o desespero, o medo. Vocês sabem, quando querem...
 
 

sábado, 23 de novembro de 2013

Acerca de "algemas invisíveis", muito haveria a dizer

Walker Evans 

 
Com todo o respeito, e solidariedade, que o sofrimento inerente à condição de vítima deve suscitar em cada um de nós, pode fazer-se uma leitura muito simbólica deste caso.
 
Num certo sentido, este caso é uma alegoria da condição em que grande parte da humanidade vive dominada pela dívida. Que “algemas invisíveis” mantêm a humanidade presa? Que mecanismos explicam a apropriação da riqueza e a dominação parasitária de uma minoria que, no estado mais abstrato de propriedade (financeira), submete, em nome da dívida, milhões de pessoas em todo o mundo?
 
O papel de cada um de nós deve ser um pouco como o da Scotland Yard: “tentar compreender quais terão sido “as algemas invisíveis””, as mais atuantes, mas as mais escondidas e difíceis de entender.
 
A notícia conclui dizendo: “É preciso compreender que estes casos não são raros. A escravatura moderna é uma realidade e existe no Reino Unido”.
 
 
Não são casos raros, existem em todo o mundo, diariamente.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O quase-mercado da quase educação

Robert Doisneau
 
Para a teoria neoliberal, não é o capitalismo que está em crise, é o Estado. Por essa razão a lógica de mercado deve prevalecer, inclusive no Estado, tornando-o mais eficiente e produtivo. O Mercado apresenta-se como o modelo de funcionamento para as outras instituições sociais, numa nova teoria do contrato social, que vem propor uma reconstrução da ordem social e política.

O debate contemporâneo sobre o papel do Estado tem sido profundamente marcado por uma posição analítica que instaura a discussão em torno da oposição Estado/privado e não da oposição Mercado/público. Esta tem sido uma operação teórica e política bem-sucedida do neoliberalismo, uma vez que promover a discussão com base na oposição Estado/privado é duplamente favorável ao discurso neoliberal: por um lado, permite uma mais fácil desqualificação do estatal (como burocrático, ineficiente, vulnerável ao desperdício e à corrupção, responsável pelo défice público e cobrando elevados impostos) enquanto valoriza o privado (como eficiente, dinâmico, com qualidade e defendendo a liberdade individual) e, por outro lado, “apaga” um dos termos mais importantes do debate - o público.

Os elementos desta produção discursiva que desqualifica os serviços do Estado e oferece como exemplo de sucesso e eficiência o setor privado, estão cada vez mais incorporados no discurso quotidiano. No entanto, o debate sobre o papel do Estado, que, como dizíamos, tem sido largamente baseado na oposição Estado/privado, deve ser reenquadrado e organizado em torno da oposição Mercado/público.

Na verdade, estatal e privado são dois termos que não são necessariamente contraditórios: verifica-se que hoje o estatal está dominado por interesses privados e que os processos de privatização não têm favorecido os indivíduos mas os interesses de grandes grupos que dominam o mercado e que representam a sua verdadeira face. A polaridade que interessa discutir é entre o público e o mercado, uma oposição que representa, de facto, duas lógicas de atuação totalmente distintas (e não apenas dois regimes de propriedade).

A esfera pública identifica-se com o exercício da democracia no duplo sentido do compromisso com a universalização dos direitos e da possibilidade de controlo pela cidadania, enquanto a lógica de mercado reduz a capacidade de acesso e retira à esfera da cidadania a capacidade de controlo: o público vê cidadãos onde o mercado vê consumidores. O primeiro tem na universalização de direitos (destina-se a todos) a sua essência, o segundo atua numa base de mercantilização (destina-se àqueles que podem comprar). “O mercado é um tipo de sociedade que interpela os seus membros (ou seja, dirige-se a eles, saúda-os, questiona-os, mas também “irrompe” sobre eles) basicamente na condição de consumidores. “ (Bauman, 2008: 70)

Como resposta à desqualificação do estatal, quase todos os Estados têm vindo a empreender um esforço para modernizar a sua burocracia. Um dos importantes elementos desse processo consistiu na introdução de medidas de descentralização e “flexibilidade”, inextricavelmente ligadas a uma lógica de mercado. Por extensão, esse processo atingiu também a Educação.

De facto, a evolução na regulação da Educação tem promovido a disseminação de formas de gestão orientadas pela lógica do mercado, providenciando reformas que fazem funcionar os agentes públicos como se estivessem no mercado, modelando o espaço público pelos padrões do privado, mesmo quando a propriedade permanece estatal, isto é, não implicando necessariamente a privatização dos seus agentes.

Estas reformas, que estão ancoradas numa conceção de deslegitimação da ação estatal, também se inserem no questionamento da limitação da articulação de interesses privados.

Na provisão do serviço público de educação, segundo Afonso (2003) têm sido identificados pontos críticos, nos quais poderemos acrescentar que se verifica a presença de elementos que reforçam a regulação mercantil.

Os pontos críticos identificados são os seguintes:
    Currículo (com o reforço de reformas curriculares que integram matérias mais conotadas com o contexto empresarial, de que o novo vocacionalismo será o exemplo mais expressivo);
    Fluxo dos alunos (onde se discute a possibilidade da escolha da escola pelos encarregados de educação, um dos vetores estruturante do quase-mercado na educação);
    Gestão do pessoal docente (onde se constata a erosão da profissionalidade docente (uma profissão muito associada ao estatal) e a possibilidade de recrutamento e seleção do pessoal docente (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto que regula os contratos de autonomia entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)
    Controlo da oferta es­colar (introdução sistemática de exames nacionais, outro dos vetores estruturante do quase-mercado educativo);
    Gestão de recursos financeiros (flexibiliza­ção da provisão de recursos financeiros, “possibilidade de autofinanciamento e gestão de receitas que lhe estão consignadas” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto) e subsidiação de escolas privadas com desinvestimento nas escolas públicas);
    Relação entre a escola e o contexto lo­cal (maior participação na vida das escolas de atores do meio envolvente ligados às atividades socioeconómicas: “Ligação ao mundo do trabalho por via da cooperação entre escolas, instituições e serviços de apoio e encaminhamento vocacional e profissional, e organizações de trabalho, de forma a orientar o ensino para o empreendedorismo nas diferentes áreas de exercício profissional.” (Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto)).

 
A nova conceção de Estado e de provisão dos serviços públicos estatais tem subjacente o ethos do mercado: estratégias políticas, económicas e organizacionais que visam a revalorização e o reforço da regulação mercantil, a reformulação das relações do Estado com o setor privado e a adoção de novos modelos de gestão pública preocupados com a eficiência e modernização de métodos de gestão nas organizações educativas e com a diversificação de dispositivos e de níveis de controlo, social sobre a escola.

Esta recomposição na provisão dos serviços públicos estatais fez surgir aquilo que habitualmente se designa por quase-mercado. Ou seja, uma forma específica de combinar a regulação do Estado e o ambiente de mercado na oferta e gestão de serviços públicos, não havendo contraste entre as duas lógicas, anteriormente distintas.

O quase-mercado caracteriza-se por uma separação entre aqueles que produzem o serviço (antes, direito), aqueles que o escolhem e aqueles que o financiam e controlam. Esta separação permite que mais facilmente possam competir para oferecer determinado serviço tanto setores privados como públicos. E sabemos que as escolas representam um espaço de disputa pela educação, um bem (e um negócio) altamente valorizado pela maior parte da sociedade.

Toda esta reforma, anunciada para combater a burocracia e a ineficiência do Estado, propõe a eficiência e a qualidade. Mas, também seria interessante analisar a dicotomia entre a teoria da política de Mercado (o que deveria ser) e a sua prática (a realidade observada). Atrelada à “qualidade total”, surgem práticas de maximização dos rendimentos a qualquer custo e da cultura dos resultados, da competitividade e do individualismo. Pela sua própria natureza, falta ao mercado (entre outras coisas) a sensibilidade social que permita atender aos que, pelas mais diversas razões, exigem mais tempo e mais e melhores recursos para obterem sucesso educativo.

Condições de acesso definidas em termos de rentabilidade e eficácia, produzem dificuldades de entrada, que conduzirão inevitavelmente, à exclusão. O papel reservado ao Estado não pode ser o de cumprir as funções de "carro-vassoura" daqueles cujas condições de acesso produziram a sua eliminação no mercado.
 
Se tivermos presente que o "carro-vassoura" é aquele que vai atrás do último corredor em prova para recolher os ciclistas que são obrigados a desistir por não conseguirem acompanhar o andamento dos outros corredores, verificamos a pertinência do recurso a esta feliz metáfora de João Barroso (s/d) (lamentavelmente, só a metáfora é feliz).
 

Referências bibliográficas
  • Afonso, Natércio (2003). A regulação da educação na Europa: do Estado Educador ao controlo social da Escola Pública. In João Barroso (Org.), A Escola Pública: Regulação, Desregulação, Privatização. Porto: ASA, pp. 49-78.
  • Barroso, João, O Estado, a educação e a regulação das políticas públicas
  • Bauman, Zygmunt (2008). Vida para consumo: a transformação de pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores
  • Sader, Emir (2003). Público versus mercantil. Folha de S. Paulo, 19 de junho de 2003 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1906200310.htm
  • Portaria n.º 265/2012 de 30 de agosto (Celebração do contratos de autonomia entre as escolas e o Ministério da Educação e Ciência)

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

A crise como instrumento de poder

























Quando vamos deixar de usar a palavra "crise"?
Tal como já foi dito (aqui), não existe qualquer crise. Não estamos em crise, esta é apenas a natureza de um modelo. É mesmo assim.


(...)
Isso significa que a crise da dívida, a crise das finanças estatais, a moeda, a União Europeia, são infinitas?
Atualmente, a crise transformou-se num instrumento de dominação. Serve para legitimar decisões políticas e económicas que privam os cidadãos de toda possibilidade de decisão. Na Itália, é muito claro. Aqui, um governo foi formado em nome da crise e Berlusconi está de volta ao poder apesar de que ser radicalmente contra a vontade do eleitorado. Este governo é tão ilegítimo quanto a chamada Constituição europeia. Os cidadãos europeus devem deixar claro seus próprios olhos que esta crise sem fim – tanto como o estado de emergência – é incompatível com a democracia.
(...)

Entrevista de Dirk Schümer Dirk a Giorgio Agamben. (Ver texto integral)

"E eu disse, Maria..."

Gosto muito deste fado do Camané. Funciona como uma espécie de alegoria: nós somos o tal namorado da amiga da Maria, que também atravessou a longa fase do “ai aguenta, aguenta”, com a diferença de que no nosso caso não se tratam dos caprichos da amiga da Maria, mas das nossas vidas.
 
Como aquele namorado, pergunto quando estaremos finalmente capazes de dizer “E eu disse, Maria….”? (não vou aqui revelar o fim da história da amiga da Maria).
 
Mas, enquanto a maior parte de nós vai percorrendo a longa travessia, há sempre quem já diga o tal "E eu disse, Maria….”.
 
Vale a pena ouvir. O fado é que educa, o fado é que “instrói” J


Camané, "Ela tinha uma amiga"
 
 

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Tinta vermelha

Slavoj Žižek dirigiu-se aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street, acampados na Liberty Plaza em Nova Iorque. Entre muitas outras coisas, contou a seguinte piada:

Na antiga RDA, um trabalhador alemão consegue emprego na Sibéria. Sabendo que a sua correspondência será lida pelos censores, combina com os amigos:“Se receberem uma carta escrita a azul, o  conteúdo é verdadeiro; com tinta vermelha, é falso”.
Os amigos receberam a primeira carta escrita a azul: “Por aqui tudo é maravilhoso: a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais…, a única coisa que não temos é tinta vermelha.

Não é essa a situação que vivemos até hoje? perguntava Žižek.
A única coisa que falta é a “tinta vermelha”, isto é, faltam-nos novos conceitos.  Os termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos”, “dívida”, etc.  – são termos que mistificam a nossa perceção da situação.

O atual sistema financeiro alterou toda a estrutura de poder e nós continuamos a usar os velhos conceitos para (tentar) compreender uma nova realidade.
Gilles Deleuze dizia que a tarefa da filosofia é criar conceitos. Pois bem, estamos mesmo a precisar deles.
 

Lançar a bola cada vez mais longe...



O CapitalCosta-Gavras, 2012

Normalmente os filmes que abordam o tema do capitalismo (como, por exemplo, Wall Street de Oliver Stone) colocam a questão em termos de um encruzilhada moral: ou os princípios éticos ou a riqueza. E no final (feliz) a ganância dos “maus da fita” é punida e o filme ensina a grande lição: mais moralização! Como se a culpa fosse da cobiça humana  e não da própria natureza do capitalismo.

Pelo contrário, no filme O Capital  (Costa-Gavras, 2012), Marc Tourneuil, o banqueiro, não é um herói nem sequer um anti-herói. É apenas alguém determinado a identificar-se inteiramente com o Grande Jogo. Não se ilude e não se culpa.  Não há espaço para reflexões políticas ou existenciais e julgamentos de caráter: existem apenas fortes e fracos, os que ganham  e os que perdem. E é preciso vencer. ”Continuaremos a tirar aos pobres para dar aos ricos neste jogo, meus senhores. Até que tudo isto um dia venha a explodir!”, diz ele numa reunião com os acionistas.

O problema não é de ordem ético-moral, não há qualquer possibilidade de humanizar o capital. Não existe qualquer crise de valores, o capitalismo é a própria crise. O colapso apenas expõe a essência da contradição.

O diálogo entre Marc Tourneuil e Maud (Le capital, 01h:44m) é absolutamente esclarecedor.