Dia 1 de dezembro, quarenta conjurados e
um povo inteiro, libertou-se do jugo (espanhol, na altura) e readquiriu a sua
independência. Passaram 373 anos e hoje este dia já não é feriado.
Não estando bem certa de ainda podermos
comemorar a “independência” de Portugal (e não necessariamente por não ser feriado), parece-me, em todo o caso, oportuno tecer umas loas à
defenestração. Há por aí muita janela e muito candidato. A defenestração pode ser simbólica, vá.
As loas, no humor de Luís Fernando Veríssimo:
A princípio foi o
fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de
procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar deveria ser um acto
exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico.
Galanteadores de calçada deveriam sussurrar ao ouvido de mulheres:
- Defenestras?
A resposta seria uma bofetada na cara. Mas,
algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo
contra pragas e insectos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa.
Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria
uma daquelas misteriosas palavras que encerram os documentos formais? “Nesses termos,
pede defenestração...” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado
uma ou outra vez, como em:
-Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que
era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exacta.
Um dia, finalmente,
procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa
mentir. “Defenestração” vem do francês “Defenestration”. Substantivo feminino. Acto
de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém
ou algo pela janela!
Acabou a minha
ignorância, mas não minha fascinação. Um acto como esse só tem nome próprio e
lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu
saiba, nenhuma palavra para o acto de atirar alguém ou algo pela porta, ou
escada a baixo. Por que então, defenestração?
(…)
(…)
-Com prédios de três,
quatro andares, ainda era possível. Até divertido. Mas, daí para cima é crime.
Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdito
defenestrar”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o
Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestradores. E a compulsão,
mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua
linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
- É essa estranha
vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor…
- Humm, O Impulsus
defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se
preocupar – diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca
sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi
inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitectura moderna, com as
suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reacção
inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Uma multidão cerca o
homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e
balbucia:
- Fui defenestrado…
- Fui defenestrado…
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda
o atiraram pela janela.
Agora mesmo deu-me
uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar
esta crónica. Se ela sair é porque resisti.
Luís Fernando Veríssimo
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