Falar para um candeeiro...

sábado, 21 de dezembro de 2013

A sul do Natal

Sempre me lembro de ver postais de Natal com imagens que mostravam a lareira acesa numa sala toda decorada com motivos de Natal e onde pela janela se via a neve a cair lá fora, ou postais onde se viam os bonecos de neve, geralmente com um chapéu ou gorro na cabeça e cachecol enrolado ao pescoço, para além do inevitável nariz feito com uma cenoura, ou aqueles postais que simplesmente mostravam o Pai Natal bem agasalhado com o seu habitual fato vermelho e as suas botas pretas.

Os postais de Natal podiam ser diferentes, mas todos eles ilustravam a mesma ideia: no natal está frio.  E todo aquele cenário da  lareira numa sala quentinha  ou a neve lá fora a cair, compunham lindos postais e mostravam como o verdadeiro Natal deveria ser.

Mas no Bocoio, onde nasci, não havia nada daquilo! Quem é que podia levar a sério um natal cheio de calor? Mesmo os pedaços de algodão branco espalhados pela árvore de Natal a imitar os flocos de neve não podiam produzir aquele efeito. Um pinheiro com pedaços de algodão podia ter um valor simbólico mas não apagava o incontornável  facto do Natal em Angola ser mais propício a ser passado no calor da praia do que no calor da lareira.
Perante esta evidência, a minha dúvida de criança era saber se alguém simplesmente se lembrou de inventar aquele cenário de frio apenas para conceber uma estética natalícia que produzia lindos postais de Natal , ou se, afinal, o menino Jesus não tinha mesmo nascido em Angola.  Esta era a hipótese mais terrível, era como se o Natal fosse uma mentira.

Consoante o meu estado de espirito, acreditava numa ou noutra destas hipóteses, mas sempre soube que havia ali alguma coisa de “errado”. Se alguma vez cheguei  a perguntar, não ficou registado  na minha memória qualquer explicação para este facto. Suponho que, mesmo que tivesse existido alguma explicação, não seria muito esclarecedora, mas seria apenas mais uma teoria vinda do complicado mundo dos “adultos”.

Mas, depois lá vinha a noite da véspera de Natal e a minha atenção era inteiramente desviada para o mais importante: os presentes! Depois disso, o próprio Natal acabava sempre por terminar e eu só  voltaria a pensar nestas questões importantantes no ano seguinte, por  altura dos postais, que eram o primeiro sinal a anunciar a chegada do Natal.

Por fim, num certo Natal, todas as minhas  dúvidas se dissiparam. No primeiro inverno que passei em Portugal percebi logo que devia ser aqui que se faziam os postais de Natal. Eu própria, de gorro e cachecol, quase parecia um boneco de neve. Mais tarde percebi ainda que a verdadeira-verdadeira terra dos postais de Natal afinal ficava lá mais acima, nos países do Norte.

Talvez um dia ainda vá até à Lapónia e envie de lá um postal de Natal às crianças do Bocoio, garantindo-lhe que, apesar do ar nórdico dos postais, o Natal na sua terra  é tão certo como em qualquer outro sítio do mundo. E se não festejarem o Natal continuam a estar certos. 

Aos povos do Norte, um Natal quentinho e cheio de luz e aos povos do Sul um Natal fresquinho mas cheio de sol. Talvez  um pouco mais de Sul no Norte e um pouco mais de Norte no Sul. O mundo é GLOBAL e é só um.


terça-feira, 17 de dezembro de 2013

"Ajustamento ou penalização salarial"? Não. É mesmo roubo.

Walker Evans

(...)
Olhando para o índice dos custos salariais publicado pelo Instituto Nacional de Estatística, verifica-se um recuo entre o terceiro trimestre de 2008 e o mesmo período de 2013. Num estudo recente, o Banco de Portugal também dava conta de um ajustamento dos salários que foi feito, sobretudo à custa da "rotação de trabalhadores". As empresas em que houve entradas e saídas de trabalhadores ofereceram, em média, um salário 110 euros mais baixo (ou 11%) aos novos funcionários. O banco referia, na altura. que o aumento da duração do desemprego reflecte-se também numa "penalização salarial no retorno ao emprego".
(...) Jornal Público, Artigo completo aqui

A Troika serviu para baixar:
a) o défice
b)  a dívida
c) o desemprego
d) os salários.

Ainda alguma dúvida?
Mesmo os "mais honrados" que sempre acharam que tinham que pagar esta dívida impagável, afinal não a pagaram. A única coisa que lhes aconteceu foi o mesmo que a todos os outros que trabalham: roubaram-lhes parte do seu salário. "Roubo" é mesmo a designação técnica para "ajustamento dos salários" ou "penalização salarial".
 
 

domingo, 8 de dezembro de 2013

Pôr o chocolate no frigorífico... para derreter melhor

"... estava o peixinho, veio o gato e comeu-o…”
 
Derreteu-se o chocolate   LUÍS AGUIAR-CONRARIA
A ideia é esta: há uma fila infinita de crianças com um chocolate na mão. Cada criança dá um chocolate à que estiver à sua frente na fila. Exceto a primeira criança, que recebeu um chocolate mas não deu nenhum e a última que deu mas não recebeu.

As “crianças” são os contribuintes, o “chocolate” é a contribuição para a Segurança social, a “fila” são as várias gerações de contribuintes, a “primeira criança” são os trabalhadores que se reformaram antes do sistema ter sido criado (nunca descontaram, isto é, ainda não tinham o chocolate) e a “última criança” são as atuais gerações que não têm o chocolate.

O argumento é o seguinte: para a solvabilidade do sistema é necessário crescimento demográfico e económico e atualmente não temos nem uma coisa nem outra, logo as atuais gerações mais novas ficam fora do contrato social, ou melhor numa situação de “egoísmo” social (contribuem mas o chocolate já foi derretido).

Nesta história, o autor não explica aquilo que, como sociedade, deveríamos fazer com a primeira criança, mas palpita-me que ficava mesmo sem o chocolate (a ausência de solidariedade social até nos permitiria ser infinitamente bondosos e caritativos e vir à televisão falar sobre o banco alimentar e a inestimável colaboração do pingo doce). Quanto à última criança, diz o autor que faz um “péssimo negócio, mais valia guardar o chocolate no frigorífico. Essa alternativa corresponderia a um sistema de segurança social de capitalização, que não é o nosso”.

Capitalização, mais do género contas individuais, um frigorífico cheio de PPR, estilo fundos de pensões. Ou seja devemos todos contribuir para reforçar o grande capital financeiro, o mesmo que produz(iu) enormes crises com impacto negativo no tal crescimento económico e (que declinou, pois) e… nas tais contribuições para a Segurança Social (que derreteram, pois). E ficarmos cada vez mais nas mãos do sistema financeiro, de “investidores”, que "derretem" especulativamente as dívidas públicas, como a nossa.

Convém não esquecer que, contrariamente ao anunciado “regresso aos mercados”, o único sítio onde eternamente regressaremos é ao “clube da bancarrota” (“a probabilidade de incumprimento da dívida portuguesa subiu – desalojando a posição de El Salvador; o custo dos credit default swaps (derivados financeiros que funcionam como seguros contra o risco de default) a cinco anos subiu; a trajetória das yields da dívida portuguesa no mercado secundário foi de subida no caso das obrigações do Tesouro (OT) nos prazos a cinco e a dez anos”…. Ver aqui mais sobre o nosso brilhante regresso, depois de tantos cortes.

Lembrem-se disto quando, todas as noites tivermos que gramar com o rol de comentadores, sem contraditório, no “debate” político televisivo ou quando nos vêm dizer que o “chocolate derreteu”.

O chocolate não derreteu. Alguém se meteu na fila e comeu-o! Lembram-se daquela publicidade de natal dos chocolates Regina “… estava o peixinho, veio o gato e comeu-o…”, pois foi.

Agora, ainda nos dizem para guardarmos os poucos chocolates que restam no tal “frigorífico” de capitalização para "não derreterem".
Assim, nem o “coelhinho” consegue ir com “o Pai Natal e o(s) palhaço(s) no comboio ao circo.

sábado, 7 de dezembro de 2013

"A lei é igual para todos”, já fiquei mais descansada.


Desde quando o facto de alguém dizer algo, pelos vistos extraordinário, como “a lei é igual para todos” constitui uma notícia do jornal  “Público”, ou sequer uma notícia de jornal, ou sequer uma notícia?
Será que se eu disser “este teclado onde escrevo este post está sujeito à lei da gravidade”, algum jornal vai publicar? 

Ou será que afinal a frase “a lei é igual para todos” é, de facto, extraordinária porque alguém acha que o patriarca de Lisboa podia achar que a lei não é igual para todos? Assim, sim, já seria notícia. E todos ficaríamos rendidos ao enorme sentido jornalístico do Público e ao enorme sentido cívico do patriarca que, extraordinariamente, acha que “a lei é igual para todos”. 

E assim se distribui o espaço público do acesso à palavra.



domingo, 1 de dezembro de 2013

Defenestração: há por aí muita janela e muito candidato

Dia 1 de dezembro, quarenta conjurados e um povo inteiro, libertou-se do jugo (espanhol, na altura) e readquiriu a sua independência. Passaram 373 anos e hoje este dia já não é feriado.

Não estando bem certa de ainda podermos comemorar a “independência” de Portugal (e não necessariamente por não ser feriado), parece-me, em todo o caso, oportuno tecer umas loas à defenestração. Há por aí muita janela e muito candidato. A defenestração pode ser simbólica, vá.
 
As loas, no humor de Luís Fernando Veríssimo:

 
Mas, nenhuma palavra me fascinava tanto quanto "defenestração".
 
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar deveria ser um acto exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deveriam sussurrar ao ouvido de mulheres:
- Defenestras?
 A resposta seria uma bofetada na cara. Mas, algumas… Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insectos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerram os documentos formais? “Nesses termos, pede defenestração...” Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
-Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada era a palavra exacta.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. “Defenestração” vem do francês “Defenestration”. Substantivo feminino. Acto de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância, mas não minha fascinação. Um acto como esse só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o acto de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada a baixo. Por que então, defenestração?
(…)
-Com prédios de três, quatro andares, ainda era possível. Até divertido. Mas, daí para cima é crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: “Interdito defenestrar”. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestradores. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
- É essa estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor…
- Humm, O Impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar – diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitectura moderna, com as suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reacção inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
- Fui defenestrado…
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda o atiraram pela janela.
Agora mesmo deu-me uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crónica. Se ela sair é porque resisti.
 
Luís Fernando Veríssimo