Falar para um candeeiro...

terça-feira, 8 de abril de 2014

Uma memória de infância acerca do meu pai…

O meu pai, a minha irmã e a minha filha, há uns anos nos Açores

Hoje é dia de aniversário, meu e da minha irmã, mas também faz exatamente hoje um ano que o meu pai faleceu. Associar acontecimentos tão diferentes a uma mesma data provoca uma certa estranheza.
 
Talvez por isso especialmente hoje recordo o meu pai, recorrendo ao lugar de todas as lembranças que são as memórias de infância.
De entre as muitas, há uma que registo.

 
Desde sempre me lembro de um pequeno hábito que o meu pai tinha, que de resto penso tratar-se de um comportamento relativamente comum e frequente: o de falar sozinho. Naqueles momentos em que, provavelmente, estaria entregue aos seus pensamentos, o meu pai tinha o costume de os ir manifestando através daquelas pequenas conversas que tinha consigo mesmo, numa oralidade audível a quem estivesse ali pelas redondezas.
Como era, e continua a ser, prática comum à generalidade dos homens, o meu pai, todas as manhãs, cumpria a preceito um mesmo ritual, o de “fazer a barba”. Tratando-se de uma tarefa individual, esta operação, em contexto doméstico, é, em regra, realizada isoladamente. Ora estando alguém sozinho, entregue a uma operação rotineira, e calculo que aborrecida, que ainda demora largos minutos, e que coloca o indivíduo num confronto direto consigo mesmo frente a um espelho, é natural que a sua mente vá divagando para fora, senão mesmo para longe, daquelas “quatro paredes”.
 
Devia ser o que acontecia com o meu pai, pois enquanto cumpria este ritual estava quase sempre a falar sozinho. Acontecia, por vezes, pôr-me a ouvir aquela algaravia, meia conversa, meio pensamento. Mas, claro, aquela conversa não fazia sentido nenhum para mim, porque, muito provavelmente, as coisas de que o meu pai falava eram “lá coisas dos adultos” às quais eu não atribuía grande significado, mas principalmente porque quando se fala sozinho omitem-se frases e ideias, isto é, algumas frases são ditas mas outras ficam por dizer, detêm-se apenas dentro do pensamento. Para quem ouve, e não tem acesso aos tais pensamentos por dizer, ficam sempre elementos de fora e o discurso, incompleto, surge confuso.
E assim acabava sempre por desistir de ouvir aquela estranha conversa que não adiantava nada, pois nunca consegui descobrir nenhum segredo importante (nem sem ser importante) por essa via. Mas antes de me ir embora, fazia questão de passar pelo meu pai para o “surpreender”. Dizia-lhe, então, com alguma satisfação pelo facto de eu o ter “apanhado” a falar sozinho:
- O pai está a falar sozinho…!
E o meu pai respondia-me sempre, sempre, o mesmo:
- Não. Está a falar com a Sarita.
 
Era exatamente com estas palavras, referindo-se a si próprio na terceira pessoa e tratando-me, como sempre me tratava, por “Sarita”, que ele se “desculpava” sempre.
Portanto, o meu pai nunca falava sozinho, pois quando confrontado com esse facto respondia-me sempre que falava comigo. Claro que usava a mesma desculpa com os meus irmãos.
 
A verdade é que esta resposta, que ora me irritava, ora me divertia, fazia parte da natureza do meu pai. Ele tinha um sentido de humor entre o brincalhão e o trocista, às vezes até uma ironia cortante, de “homem beirão”, como vim a perceber mais tarde, no contacto que fui tendo com as pessoas da sua terra natal, Vila Meã.
Com todas as suas virtudes, e com todos os seus defeitos, sempre apreciei nele aquela combinação de humor e de ironia, algo parecido com aquilo que só a genialidade de um Eça de Queirós é alguma vez capaz de pôr em palavras e em histórias que permanecem intemporais para todos nós.
 
Não herdei esta sua caraterística. No entanto, recebi outras que sempre orientarão a minha vida, como também orientaram a dele, e as quais sempre lhe agradecerei como uma herança de muito valor: o sentido ético da responsabilidade e do compromisso, assim como o valor do trabalho, de onde retiramos, mais do que aquilo que nos sustenta, uma forma de ser.
Saudades. Tanto a dizer…
“Sarita”


Excertos de um postal de Natal do “pai amigo, António”, enviado de Luanda em dezembro de 1976, danificado pelas andanças do tempo. O tempo gosta de danificar postais para que eles possam ficar sempre novinhos na nossa memória.
 
 
 

 

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