Este casal russo-ucraniano envia uma
mensagem aos nacionalistas extremistas dos dois lados.
Nesta imagem não vejo primeiramente o “peace
and love” ou a “força do amor”. Também não vejo um gesto supostamente obsceno. Vejo
um ato político, de alguém que rejeita a identidade que a ordem "policial" lhe
conferiu.
“A subjetivação política cria
transformando identidades definidas na ordem natural da repartição das funções
e dos lugares em instâncias de experiência de um litígio. "Russos" ou
"Ucranianos" são identidades aparentemente sem mistério. Toda a gente
vê de quem se trata. Ora, a subjetivação política arranca-os dessa evidência…
(Ranciére, adaptado, sublinhado meu)
Uma tão grande competência política, assim num casal
de namorados? Sim. A competência política não é conferida por meio de títulos,
cargos, mandatos ou outras distinções de estatuto. A política está sempre
aberta à enunciação pública de quem seja capaz de instaurar o dissenso, de
nomear, à sua forma, o dano.
Todo o indivíduo é potencialmente um
sujeito político. Quaisquer pessoas que transmitam em público – de formas muito
distintas e com graus de institucionalização muito variáveis – as suas reações
aos danos que sofrem diretamente ou que percebem haver no conjunto da sociedade
a que pertencem, são sujeitos políticos,
são sujeitos que procuram intervir na “partilha” (divisão) do mundo sensível em
que vivem as suas experiências quotidianas.
Compreendeu
que o dia 8 de março não é o Dia Internacional da Mulher, é o Dia Internacional
de Luta Pelos Direitos das Mulheres (pelo que não lhes deve oferecer flores, assim espero eu).
Poderemos ainda
encontrar um outro exemplo de ação política como exposição do dano nas micro-resistências
das Arpilleras da
Resistência Política Chilena, as mulheres que “bordavam telas com as
roupas dos seus parentes desaparecidos no regime ditatorial” (aqui). Com esse
ato “trangressor” de bordar, de uma certa forma, o invisível passa a ser visto e o ruído torna-se discurso convocatório, torna-se
um logos vivo da comunidade.
(Embora com tanta mediatização, as Arpilleras, ou
alguém por elas, também se aproximam perigosamente
do "desvio" debordiano).
Já no safári humano de uma “favela tour”, autenticamente debordiana, o espetáculo
encena a lógica
“policial” das funções e das parcelas que situa, e mantém, cada corpo no seu lugar e na sua
função. A ordem policial
não pode regular o dano porque os “pobres” são encarados como ”sujeitos, cuja própria
existência é o modo de manifestação
desse
dano”. (Rancière, 1996, p. 50) Não aparecem sequer debaixo do puro título vazio
da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa, mas aparecem
explicitamente como pobres, uma espécie exótica “para mais tarde recordar”.
“A polícia é assim, antes de mais nada, uma
ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de
ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome
para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com
que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja
entendida como discurso e outra como ruído. É, por exemplo, uma lei de polícia
que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido
pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é
estritamente definido pela remuneração de seu trabalho. A polícia não é tanto
uma "disciplinarização" dos corpos quanto uma regra do seu aparecer,
uma configuração das ocupações e
das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.” (Rancière,
1996, p. 42)
Mas, claro que a ordem policial também pode exercer uma atividade política e tentar “deslocar um corpo do lugar que lhe era designado”. Por exemplo, neste caso, a Disney fez um excelente trabalho a “deslocar” o Nietzsche (ao que parece, mais fácil de “domesticar” que a Miley Cyrus).
Caricatura
ou modo de funcionamento?
Rancière, Jacques (1996). O desentendimento, política e
filosofia. São Paulo: Editora 34
* Parcela
No original, part (o termo francês partie foi traduzido como parte). Designa a parte qüe cabe a alguém numa divisão ou distribuição, o quinhão que é dado a uma pessoa ou que legitimamente deveria ser seu. Jogam com esta palavra, igualmente, partido (francês partie), parceiro (francês partenaire), divisão (francês partage). (N. do revisor técnico, p. 11)
Agradeço ao Paul
Ming as imagens.
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