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domingo, 13 de abril de 2014

A política e a "exposição do dano" (Rancière)

Este casal russo-ucraniano envia uma mensagem aos nacionalistas extremistas dos dois lados.

 

Nesta imagem não vejo primeiramente o “peace and love” ou a “força do amor”. Também não vejo um gesto supostamente obsceno. Vejo um ato político, de alguém que rejeita a identidade que a ordem "policial" lhe conferiu.

“A subjetivação política cria transformando identidades definidas na ordem natural da repartição das funções e dos lugares em instâncias de experiência de um litígio. "Russos" ou "Ucranianos" são identidades aparentemente sem mistério. Toda a gente vê de quem se trata. Ora, a subjetivação política arranca-os dessa evidência… (Ranciére, adaptado, sublinhado meu)
 
Uma tão grande competência política, assim num casal de namorados? Sim. A competência política não é conferida por meio de títulos, cargos, mandatos ou outras distinções de estatuto. A política está sempre aberta à enunciação pública de quem seja capaz de instaurar o dissenso, de nomear, à sua forma, o dano.

Todo o indivíduo é potencialmente um sujeito político. Quaisquer pessoas que transmitam em público – de formas muito distintas e com graus de institucionalização muito variáveis – as suas reações aos danos que sofrem diretamente ou que percebem haver no conjunto da sociedade a que pertencem, são sujeitos políticos, são sujeitos que procuram intervir na “partilha” (divisão) do mundo sensível em que vivem as suas experiências quotidianas.

 A atividade política é a que desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto, faz ouvir um discurso ali onde só tinha lugar o barulho, faz ouvir como discurso o que só era ouvido como barulho. (…) Pode ser a desses operários do século XIX que colocam em razões coletivas relações de trabalho que só dependem de uma infinidade de relações individuais privadas. Ou ainda a desses manifestantes de ruas ou barricadas que literalizam como "espaço público" as vias de comunicação urbanas. Espetacular ou não, a atividade política é sempre um modo de manifestação que desfaz as divisões sensíveis da ordem policial ao atualizar uma pressuposição que lhe é heterogénea por princípio, a de uma parcela* dos sem-parcela que manifesta ela mesma, em última instância, a pura contingência da ordem, a igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante. Existe política quando existe um lugar e formas para o encontro entre dois processos heterogéneos.” (Rancière, 1996, p. 42-43)

  


Outro exemplo é o deste homem que compreende que os direitos das mulheres também o libertam a ele na medida em que recolocam para a sociedade a dimensão de um dano, que a ordem policial não pode regular porque nessa ordem as “mulheres” são encarados como ”sujeitos, cuja própria existência é o modo de manifestação desse dano”. (Rancière, 1996, p. 50, adaptado).
Compreendeu que o dia 8 de março não é o Dia Internacional da Mulher, é o Dia Internacional de Luta Pelos Direitos das Mulheres (pelo que não lhes deve oferecer flores, assim espero eu).

 




Poderemos ainda encontrar um outro exemplo de ação política como exposição do dano nas micro-resistências das Arpilleras da Resistência Política Chilena, as mulheres que “bordavam telas com as roupas dos seus parentes desaparecidos no regime ditatorial” (aqui). Com esse ato “trangressor” de bordar, de uma certa forma, o invisível passa a ser visto e o ruído torna-se discurso convocatório, torna-se um logos vivo da comunidade.

(Embora com tanta mediatização, as Arpilleras, ou alguém por elas,  também se aproximam perigosamente do "desvio" debordiano).


Já no safári humano de uma “favela tour”, autenticamente debordiana, o espetáculo encena a lógica “policial” das funções e das parcelas que situa, e mantém, cada corpo no seu lugar e na sua função. A ordem policial não pode regular o dano porque os “pobres” são encarados como ”sujeitos, cuja própria existência é o modo de manifestação desse dano”. (Rancière, 1996, p. 50) Não aparecem sequer debaixo do puro título vazio da igualdade de qualquer pessoa com qualquer pessoa, mas aparecem explicitamente como pobres, uma espécie exótica “para mais tarde recordar”.

 
A polícia é assim, antes de mais nada, uma ordem dos corpos que define as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa; é uma ordem do visível e do dizível que faz com que essa atividade seja visível e outra não o seja, que essa palavra seja entendida como discurso e outra como ruído. É, por exemplo, uma lei de polícia que faz tradicionalmente do lugar de trabalho um espaço privado não regido pelos modos do ver e dizer próprios do que se chama o espaço público, onde o ter parcela do trabalhador é estritamente definido pela remuneração de seu trabalho. A polícia não é tanto uma "disciplinarização" dos corpos quanto uma regra do seu aparecer, uma configuração das ocupações e das propriedades dos espaços em que essas ocupações são distribuídas.” (Rancière, 1996, p. 42)

 

Mas, claro que a ordem policial também pode exercer uma atividade política e tentar  “deslocar um corpo do lugar que lhe era designado”. Por exemplo, neste caso, a Disney fez um excelente trabalho a “deslocar” o Nietzsche (ao que parece, mais fácil de  “domesticar” que a Miley Cyrus).
 
 
Caricatura ou modo de funcionamento?

 







Rancière, Jacques (1996). O desentendimento, política e filosofia. São Paulo: Editora 34

 

* Parcela
No original, part (o termo francês partie foi traduzido como parte). Designa a parte qüe cabe a alguém numa divisão ou distribuição, o quinhão que é dado a uma pessoa ou que legitimamente deveria ser seu. Jogam com esta palavra, igualmente, partido (francês partie), parceiro (francês partenaire), divisão (francês partage). (N. do revisor técnico, p. 11)


Agradeço ao Paul Ming as imagens.

 

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