Espinosa, um verdadeiro príncipe no
reino da filosofia, distinguiu no seu Tratado
Político entre "potentia" e "potestas", a potência, poder para, poder de e o poder sobre (o outro). Investir no segundo
despoja-nos do primeiro. Apesar das aparências nos dizerem o contrário, todos
os tiranos (nos quais se incluem os “mercados”) são impotentes e escravos que
perderão a sua vida para defender o poder que inevitavelmente lhe escapará.
Espinosa é o filósofo da liberdade, que nos alivia do peso
esmagador da tirania e da servidão do imaginário da transcendência, do
imaginário do medo e do terror (medo de Deus, medo dos homens, medo do desejo,
medo dos governantes, medo da mudança), que nos faz compreender os afetos em
vez de maldizê-los, que nos convida à alegria do pensamento e a descobrir que a
liberdade é a potência do corpo e da mente.
Na sua obra, Espinosa procurou descobrir a servidão humana, em
todas as suas formas, ilusoriamente imaginadas como liberdade. De tal maneira
que a pergunta que colocou resume todo o programa da filosofia política: “Por que razão os homens perseguem a servidão
como se procurassem a liberdade?” (Espinosa, via Deleuze e Guattari, em O Anti-Édipo, Capitalismo e esquizofrenia).
Na construção da sua resposta procurou caminhos pelos quais a verdadeira
liberdade pudesse tornar-se desejada e acessível a todos os seres humanos.
Localizou na sua época os lugares onde se alojavam as causas da servidão:
superstição religiosa, tirania teológica, despotismo político e ignorância. As
causas dessa servidão encontrou-as em nós mesmos enquanto seres passionais.
Indagou, então, o que poderia ser feito para governar as paixões de maneira a
desfazer a superstição religiosa, quebrar a tirania teológica, derrubar o
despotismo político e alcançar o saber verdadeiro, oferecendo a sua própria
filosofia como expressão desse caminho libertador.
A 30 de julho de 1881, um outro filósofo, Nietzsche, escreveu ao
seu amigo Franz Overbeck um bilhete-postal dando conta das suas leituras sobre
Espinosa e de quanto isso o inspirou.
Por essa altura, Aurora
acabara de sair e Nietzsche, instalado em Sils-Maria, está prestes a dar início
ao Zaratustra. Entre outras
solicitações, pede a Overbeck dois volumes da biblioteca de Basileia, um deles
é o volume sobre Espinosa de Kuno Fischer, um professor de filosofia de
Heidelberg que escreveu a História da
Filosofia Moderna. Overbeck atendeu ao pedido e Nietzsche lançou-se à
leitura.
No postal que dirigiu ao seu amigo, que lhe fizera a gentileza de
obter o livro, Nietzsche fará uma confissão comovida do efeito que aquele
encontro, para lá das “diferenças enormes”, lhe provocou. Deixa salientar a
alegria incontida do encontro, da passagem “da solidão para a dualidade”, como
a alegria de um soldado que, sozinho e entrincheirado, encontra um companheiro
de luta.
No postal que escreve em Sils-Maria ao seu amigo, diz-lhe
Nietzsche: “estou inteiramente espantado, inteiramente encantado! Tenho um
percursor e que percursor! Eu não conhecia quase nada de Espinosa (mas agora
vejo que) a sua tendência geral é idêntica à minha: “O conhecimento é o mais potente dos afetos”. (Friedrich
Nietzsche, A Franz Overbeck em Basileia
(cartão-postal), Sils-Maria, 30 de julho de 1881”)
Foi assim que o filósofo alemão resumiu o poder que o ato de
conhecer tem sobre a vida de um indivíduo. No século XVII, Espinosa tinha
enunciado uma afirmação semelhante.
Galileu, outro verdadeiro príncipe no
reino da ciência, resumiu, de certa forma, toda a força da "potentia"
criadora quando afirmou, em condições pessoais particularmente duras e
complicadas: “contudo, ela move-se”.
E o que a faz mover é
também o conhecimento, “o mais potente dos afetos” porque através dele o ser humano é capaz de descobrir forças e
poderes para além dos seus, acabar com formas de servidão e modificar a (sua)
realidade.
O poder também se diz de potentia e não somente de potestas.
Referência Bibliográfica
Nietzsche, Friedrich, “Friedrich Nietzsche, A Franz Overbeck em
Basileia (cartão-postal), Sils-Maria, 30 de julho de 1881”, p. 190, in
Santiago, Homero (2011). Entre Servidão e Liberdade. São Paulo: Universidade de
São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana
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