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sexta-feira, 24 de abril de 2015

Orelhas de elefante e brincos de princesa

A minhã irmã e as flores da tia Isaulina (Fotografia de Aurélio Bravo)



Vi recentemente esta fotografia pela primeira vez e, de imediato, a situei no centro da minha infância, nas minhas brincadeiras com a minha irmã na casa dos meus tios em Nova Lisboa / Huambo, na Calumanda. Lembro-me perfeitamente que aquelas plantas e flores eram matéria-prima para as nossas brincadeiras.

Podemos achar estranho que crianças brinquem com flores, mas não é. Nas brincadeiras de crianças as coisas saem dos seus lugares funcionais, como numa espécie de “delírio”. Objetos, palavras, sons, lugares, ou mesmo as flores, são desmanchados, desfeitos e recompostos de outra forma, num jogo de (múltiplas) possibilidades.

Aquelas pobres plantas e flores, sobretudo as “orelhas de elefante” (umas folhas verdes grandes cujo formato fazia lembrar a orelha de um elefante) e os brincos de princesa ganhavam para nós uma vida especial. Num movimento de apropriação (no verdadeiro sentido da palavra já que as arrancávamos do seu lugar natural), eram “re-significadas” por nós, num processo que lhes atribuía novos papéis e novos sentidos para as nossas brincadeiras. Por uma especial consideração, apenas as dálias, flores de estimação da minha tia Isaulina, eram, regra geral, poupadas à nossa "transformação" dos objetos.

Walter Benjamim, que tinha paixão por brinquedos, frequentemente revisita a sua própria infância em notas, ensaios ou reflexões teóricas, sobretudo em “Infância em Berlim por volta de 1900”, na genialidade especulativa e poética que lhe conhecemos.

Em “Canteiro de Obras‟, diz ele que “as crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo o local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se dê de maneira visível. Elas sentem-se irresistivelmente atraídas pelos destroços que surgem da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do alfaiate ou do marceneiro. Nestes restos que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para elas. Nesses restos elas estão menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais, através daquilo que criam nas suas brincadeiras, uma nova e incoerente relação" (p. 77-8).

Ao apropriarem-se de certas espécies de materiais, como eu e a minha irmã daquelas flores, e a conferirem-lhes outros sentidos, as crianças, como nós naquela altura, colocam outras significações no seu lugar. Cada aproximação às coisas, nas suas brincadeiras, institui um mundo próprio.

Há tempos, já não me recordo onde, vi uma criança que brincava correndo em cima de uma vassoura como se estivesse montada num cavalinho de pau, senão mesmo num cavalo “a sério”. Um adulto, vendo a criança tão entretida a brincar, pergunta-lhe “é um cavalo?” e a criança responde imediatamente “não, é uma vassoura”.

Depois de me recompor da enorme gargalhada que a resposta da criança me suscitou, fiquei a pensar o que teria acontecido àquele “delírio” infantil que reconstrói o mundo.








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