(Le Monde Diplomatique, Edição Portuguesa, Novembro de 2014)
RESUMO DO ARTIGO
Só o homem,
de entre todos os seres vivos, possui a palavra.
Aristóteles, Política
Se procurarmos no
dicionário um primeiro esclarecimento sobre o significado da palavra dívida, podemos encontrar a seguinte definição:
3. [Figurado] Dever (que se cumpre ou por cumprir).
4. Ofensa (de que se espera tirar desforra).
5 Pecado.1
De facto, normalmente
definimos dívida como “coisa que se
deve” ou “dinheiro devido”. Mas
a definição apresentada recobre ainda um sentido moral (“dever” e “ofensa”) e
um sentido
religioso (“pecado”!). Esta ideia é
tão penetrante que uma parte considerável do nosso discurso habitual sobre a
dívida ainda hoje permanece nesse ambiente onde a moral e a religião se
confundem2.
A
progressiva passagem histórica da dívida moral para a dívida paga em dinheiro, foi
responsável por uma transformação de fundo na estrutura da dívida, que passou a
ser quantificada, impessoal e transferível. No entanto, essa passagem não lhe retirou
o peso moral, como vimos. Pelo contrário, por meio da prática discursiva, a
dívida continua inserida num sistema de
obrigações morais, como se as relações fossem entre sujeitos morais e não entre
indivíduos que se relacionam no mercado por meio
de coisas.
Mas,
como entender que na
atual sociedade capitalista, que dissolveu os vínculos sociais históricos nas
suas instituições e que deixou para trás o princípio da “reciprocidade” de
formações pré-capitalistas, o discurso acerca de um dos
seus temas centrais – a dívida – remeta para uma prática discursiva envolvida
em conceitos anteriores ao “desencantamento do mundo”?
Por
várias razões. Por um lado, a moral transporta consigo a ideia de sociabilidade humana, inclui a ideia de vínculo, sobre a qual se fundam a integração
social e as obrigações mútuas. Ligado à moral, o mercado pode restabelecer a aparência
dos vínculos sociais, que visam preservar a sociedade no seu conjunto e que
inclusivamente autorizam o credor a reclamar para si o dever moral de ser
reparado.
Por outro lado, com essa mesma ligação à moral, o mercado pode afirmar-se pela negação do lucro, aparecendo como uma instituição em que são realizadas trocas justas, como se se regesse pelo princípio da reciprocidade entre sujeitos.
Finalmente, separar e autonomizar a economia e as finanças em relação à moral, resultaria no prejuízo de um dos pilares do funcionamento da própria esfera financeira: a confiança. A confiança é um elemento fundamental dos mercados, tanto mais necessária quanto mais fictício for o capital financeiro, porque mais dependente de uma relação (de confiança) capaz de gerar um compromisso socialmente vazio entre estranhos. Num processo em que os indivíduos agem motivados pela satisfação do interesse próprio, a confiança nos outros parece ser um elemento fundamental do sistema.
Por outro lado, com essa mesma ligação à moral, o mercado pode afirmar-se pela negação do lucro, aparecendo como uma instituição em que são realizadas trocas justas, como se se regesse pelo princípio da reciprocidade entre sujeitos.
Finalmente, separar e autonomizar a economia e as finanças em relação à moral, resultaria no prejuízo de um dos pilares do funcionamento da própria esfera financeira: a confiança. A confiança é um elemento fundamental dos mercados, tanto mais necessária quanto mais fictício for o capital financeiro, porque mais dependente de uma relação (de confiança) capaz de gerar um compromisso socialmente vazio entre estranhos. Num processo em que os indivíduos agem motivados pela satisfação do interesse próprio, a confiança nos outros parece ser um elemento fundamental do sistema.
Com
a ligação das finanças à esfera moral, o poder
credor, que já dispõe de mecanismos legais e policiais, bem como políticos no
caso da dívida pública, passa ainda a beneficiar de “ajustes” morais,
repetidamente “validados” no dia-a-dia do discurso. E assim, o senso comum da
moral financeira mantém o discurso de que “obviamente todos têm que pagar as
suas dívidas!”, mesmo nos casos em que essa cobertura moral conflitua com
outros princípios igualmente respeitáveis.
Os grandes anfiteatros da comunicação social, onde ouvimos as mesmas falas sobre a dívida, são lugares sem dissenso, com poucas possibilidades para um discurso que em vez do “dever de honra” enuncie o pagamento da dívida como “escolha de uma prioridade”, da prioridade pela remuneração de investimentos financeiros em dívida pública acima de qualquer outra prioridade, isto é, que a enuncie como a simples preferência pelo pagamento a credores financeiros.
Dizer e ouvir outras falas, supõe a política, que
tem por racionalidade própria o “desentendimento” (Rancière, 1996). Só o homem possui
a palavra e o seu “discurso serve para tornar claro o útil e o prejudicial e,
por conseguinte, o justo e o injusto” (Aristóteles, 1998, 1253a). Aqueles que habitualmente
não têm o direito à palavra, como o devedor, podem reclamar o direito de dizer
o “injusto” e de se apropriam da palavra. Esses são os momentos em que sobrevém
a "política" na sua
expressão mais radical de perturbação do consenso e de reconfiguração do “sensível”. São momentos invulgares, da
ordem da raridade. Mas acontecem e urgem.
Notas
1 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
URL: http://www.priberam.pt/DLPO/d%C3%ADvida
3 O “vírus” da honra contagiou as próprias agências de rating cuja
notação para crédito de emissão de longo prazo, expressa opiniões relativas à
qualidade de crédito em termos claramente morais. Em toda a escala de
risco (de AAA a D) é mencionado o conceito de “honrar obrigações” (“honour
obligations”). A título de exemplo, veja-se a
notação de “AAA”: Capacity and commitment to honour
obligations not in question under any foreseeable circumstances”. (Itálico nosso) E
sucessivamente até “D”.
Referências bibliográficas
Rancière, Jacques (1996). O desentendimento. São Paulo: Editora 34
Sem comentários:
Enviar um comentário