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segunda-feira, 27 de abril de 2015

De que falamos quando falamos de dívida?


(Le Monde Diplomatique, Edição Portuguesa, Novembro de 2014)
 
RESUMO DO ARTIGO

 
Só o homem, de entre todos os seres vivos, possui a palavra.
Aristóteles, Política

 
Se procurarmos no dicionário um primeiro esclarecimento sobre o significado da palavra dívida, podemos encontrar a seguinte definição:

 Dívida | substantivo feminino
(latim debita, neutro plural de debitum, -i, dívida)

 1. Coisa que se deve.
2. Dinheiro devido.
3. [Figurado] Dever (que se cumpre ou por cumprir).
4. Ofensa (de que se espera tirar desforra).
5 Pecado.1

 
De facto, normalmente definimos dívida como “coisa que se deve” ou “dinheiro devido”. Mas a definição apresentada recobre ainda um sentido moral (“dever” e “ofensa”) e um sentido religioso (“pecado”!). Esta ideia é tão penetrante que uma parte considerável do nosso discurso habitual sobre a dívida ainda hoje permanece nesse ambiente onde a moral e a religião se confundem2.
A progressiva passagem histórica da dívida moral para a dívida paga em dinheiro, foi responsável por uma transformação de fundo na estrutura da dívida, que passou a ser quantificada, impessoal e transferível. No entanto, essa passagem não lhe retirou o peso moral, como vimos. Pelo contrário, por meio da prática discursiva, a dívida continua inserida num sistema de obrigações morais, como se as relações fossem entre sujeitos morais e não entre indivíduos que se relacionam no mercado por meio de coisas.

Mas, como entender que na atual sociedade capitalista, que dissolveu os vínculos sociais históricos nas suas instituições e que deixou para trás o princípio da “reciprocidade” de formações pré-capitalistas, o discurso acerca de um dos seus temas centrais – a dívida – remeta para uma prática discursiva envolvida em conceitos anteriores ao “desencantamento do mundo”?

Por várias razões. Por um lado, a moral transporta consigo a ideia de sociabilidade humana, inclui a ideia de vínculo, sobre a qual se fundam a integração social e as obrigações mútuas. Ligado à moral, o mercado pode restabelecer a aparência dos vínculos sociais, que visam preservar a sociedade no seu conjunto e que inclusivamente autorizam o credor a reclamar para si o dever moral de ser reparado.
Por outro lado, com essa mesma ligação à moral, o mercado pode afirmar-se pela negação do lucro, aparecendo como uma instituição em que são realizadas trocas justas, como se se regesse pelo princípio da reciprocidade entre sujeitos.
Finalmente, separar e autonomizar a economia e as finanças em relação à moral, resultaria no prejuízo de um dos pilares do funcionamento da própria esfera financeira: a confiança. A confiança é um elemento fundamental dos mercados, tanto mais necessária quanto mais fictício for o capital financeiro, porque mais dependente de uma relação (de confiança) capaz de gerar um compromisso socialmente vazio entre estranhos. Num processo em que os indivíduos agem motivados pela satisfação do interesse próprio, a confiança nos outros parece ser um elemento fundamental do sistema.

Com a ligação das finanças à esfera moral, o poder credor, que já dispõe de mecanismos legais e policiais, bem como políticos no caso da dívida pública, passa ainda a beneficiar de “ajustes” morais, repetidamente “validados” no dia-a-dia do discurso. E assim, o senso comum da moral financeira mantém o discurso de que “obviamente todos têm que pagar as suas dívidas!”, mesmo nos casos em que essa cobertura moral conflitua com outros princípios igualmente respeitáveis.

Os grandes anfiteatros da comunicação social, onde ouvimos as mesmas falas sobre a dívida, são lugares sem dissenso, com poucas possibilidades para um discurso que em vez do “dever de honra”  enuncie o pagamento da dívida como “escolha de uma prioridade”, da prioridade pela remuneração de investimentos financeiros em dívida pública acima de qualquer outra prioridade, isto é, que a enuncie como a simples preferência pelo pagamento a credores financeiros.
 
Dizer e ouvir outras falas, supõe a política, que tem por racionalidade própria o “desentendimento” (Rancière, 1996).  Só o homem possui a palavra e o seu “discurso serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto” (Aristóteles, 1998, 1253a). Aqueles que habitualmente não têm o direito à palavra, como o devedor, podem reclamar o direito de dizer o “injusto” e de se apropriam da palavra. Esses são os momentos em que sobrevém a "política" na sua expressão mais radical de perturbação do consenso e de reconfiguração do “sensível”. São momentos invulgares, da ordem da raridade. Mas acontecem e urgem.

 

Notas

1 Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
URL: http://www.priberam.pt/DLPO/d%C3%ADvida

 2 A ligação histórica entre dívida e moral não é nova. Desde há muitos séculos que a “tábua rasa” mesopotâmica, os jubileus bíblicos e as leis medievais contra a usura no Islão e no Cristianismo evitavam que os devedores caissem na servidão da dívida. O que é novidade é o ambiente de mercado que criou poderosas instituições (como o FMI) destinadas a proteger não os devedores mas os credores, que decretam - contra toda a lógica económica de mercado em que se inserem – que não discute qualquer “perdão” da dívida, porque “bem, eles têm que pagar”. (Graeber, 2011)
 
O “vírus” da honra contagiou as próprias agências de rating cuja notação para crédito de emissão de longo prazo, expressa opiniões relativas à qualidade de crédito  em termos claramente morais. Em toda a escala de risco (de AAA a D) é mencionado o conceito de “honrar obrigações” (“honour obligations”). A título de exemplo, veja-se a notação de “AAA”: Capacity and commitment to honour obligations not in question under any foreseeable circumstances”. (Itálico nosso) E sucessivamente até “D”.

 


Referências bibliográficas


 Aristóteles (1998). Política. Lisboa: Veja
Graeber, David (2011). Debt: The First 5,000 Years, Brooklyn, New York: Melvillehouse
Rancière, Jacques (1996). O desentendimento. São Paulo: Editora 34






 







 

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