William Hogarth
Por definição, a vida de todos os dias
acontece… todos os dias. Sem sobressalto e sem história, como se vida
quotidiana e história fossem irreconciliáveis.
De facto, não é fácil transformar a
quotidianeidade familiar em algo exterior,
não é fácil o “estranhamento” da realidade aparentemente tão familiar, tão
pouco “exótica”, não é fácil converter a lenta vida quotidiana em permanente
surpresa. No fundo, o quotidiano é “o que no dia-a-dia se passa quando nada se
parece passar”.
Um mestre zen pediu uma vez a um discípulo
que desenhasse à mão um círculo, o mais perfeito possível. O discípulo desenhou
então uma desajeitada figura que mais parecia um ovo, embora merecendo largos
elogios do mestre, que lhe disse: “Não será um círculo perfeito; contudo é uma outra
qualquer figura perfeita.” As criações do quotidiano são como aquele ovo, uma
forma rigorosa e perfeita mas de uma outra coisa qualquer, de algo a que
ninguém nunca deu um nome.
Apanhar a realidade fugaz do quotidiano, do que
não é grandioso ou essencial é rasar uma superfície num voo baixo e minucioso,
como William Hogarth no século
XVIII que pintava tabernas, cenas banais da vida quotidiana. Retratava temas de
“género inferior”, modelos humanos, plebeus a frequentarem tabernas, em vez das
belas figuras delicadas que representavam acontecimentos e personagens da Bíblia.
Ou como Caravaggio no século XVII que não recusava sequer a feiura ou a
deformidade dos modelos humanos.
Na verdade, o quotidiano está cheio de vida,
de histórias, de lugares, práticas, normas, regras, hábitos, encontros e
desencontros, pequenas fúrias e breves alegrias. Tudo faz parte do quotidiano,
como as conversas sobre o tempo ou a ida “ao pão” pela manhã cumprimentando o
vizinho com um bom dia sem saber por que razão lhe perguntar “como está?” se
responderá sempre “bem, obrigado”.
O dia de hoje, em que não está calor nem está
frio, em que não há precipitação ou vento forte, nem agitação marítima, nem
alertas “laranjas ou vermelhos” e em que nada de grandioso se prepara para
acontecer, é exatamente como quase todos os dias da nossa existência. Dias únicos
e irrepetíveis, por onde, lembrando John Lennon, decorre a vida, “aquilo que
acontece enquanto fazemos planos”.
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