Falar para um candeeiro...

domingo, 12 de maio de 2013

"Retornados"

Alfredo Cunha
“Então a metrópole afinal é isto.”
O Retorno, Dulce Maria Cardoso
 
A força simbólica desta fotografia, acerca da qual já muito se disse, é, de facto, notável. O lado direito da imagem aponta-nos para o mar e para o império, o lado esquerdo mostra-nos os objetos devolvidos pela história, como os destroços na praia quando o mar se retira com a sua força viva. O Padrão dos Descobrimentos e os caixotes dos “retornados”, fisicamente lado a lado e simbolicamente anunciando a celebração e o fim do império.

Em 1975, apareceu uma nova categoria social no Estado e na sociedade portuguesa para quem encaixotou estas enormes malas de madeira: os “retornados”. No entanto, por se ter tratado de um processo migratório involuntário, grande parte dos visados não se reconheceu na categoria de retornado (repatriado), mas de expatriado ou refugiado. Na realidade, se muitos regressavam ao país de origem ou de nacionalidade, outros nunca tinham estado na metrópole do império.

Porquê esta designação? A categoria de “retornado” tinha a vantagem de ter um significado mais neutro e menos politizado do que o de “refugiado”, logo bem menos desconfortável. Longe do estatuto político, a definição legal de “retornado” recobria até uma dimensão económica (“carecidos de apoio”), de forma a serem abrangidos nos programas de assistência do IARN (a Resolução de Conselho de Ministros que “define a qualidade de retornado” - Resolução nº 105 de 5 de maio de 1976 -, determina também uma “sindicância a eventuais irregularidades do IARN” - pelos vistos, na altura existiam também falsos retornados).

Ser “retornado” era, cumulativamente, ser cidadão português, ter residido e regressado das ex-colónias e carecer de apoio; ser “refugiado” era integrar as razões por que isso aconteceu, o que seria sempre mais complicado.

Mas, independentemente da designação ou das suas razões, uma coisa é certa: ser “retornado” era sinónimo de “colonialista” e “explorador dos africanos” (dos “pretos”, como se dizia). Como se o colonialismo, uma enorme e complexa estrutura política, económica, social e cultural que emanava de Lisboa, pudesse ser sumariamente depositado naquelas pessoas que viveram nas colónias, como se o longo sistema colonial pudesse ser  transformado agora numa mera ação individual dos “retornados”, nos ombros dos quais esse peso era colocado, como se naqueles caixotes, junto ao Padrão dos Descobrimentos pudesse caber  todo o império.

Ovalle-Bahamón em “The Wrinkles of Decolonization and Nationness: White Angolans as Retornados in Portugal” refere o papel que os “retornados” desempenharam no processo de purificação, de catarse moral da sociedade portuguesa que assim se procurava libertar do seu passado colonial, depondo-o sobre os “retornados”. “Com efeito, os retornados tornaram-se o referencial do colonialismo em Portugal e a sua presença em Portugal inspirou a transformação da nação portuguesa imaginada. A presença dos retornados permitiu a reinvenção de Portugal e dos portugueses como parte do sistema dos estados-nações europeus, distanciando a nação do colonialismo e localizando os retornados nas margens da portugalidade.

(…) Em primeiro lugar, o colonialismo ele próprio precisava de ser reconceptualizado, ou melhor dizendo, renomeado e depois descartado como parte de um passado injusto. Em segundo lugar, os portugueses e o seu espaço nas relações coloniais de poder tinha que ser definido e denunciado em nome de uma “purificação” histórico-moral de Portugal como um estado-nação moderno. (…) a presença em Portugal dos retornados facilitou a reconstrução de Portugal, servindo de “depositários das estruturas coloniais”, os responsáveis pelo colonialismo, enquanto simultaneamente afastavam os retornados da nação portuguesa.

A descolonização para Portugal produziu um “momento presente “ uma conjuntura que reformulou o colonialismo, não como um sistema de estruturas políticas e económicas, mas como o somatório das ações individuais daquelas pessoas em terras distantes.” (Ovalle-Bahamón, 2003, p. 159-160) (tradução minha)

Ao fim dos “quinhentos anos” de Portugal como grande nação imperial, o “regresso” dos “retornados”, como a última presença colonial, promoveu a possibilidade da sociedade portuguesa re-conceptualizar e transformar a anterior imagem de Portugal. Portugal era agora um país desembaraçado do império, do qual nada mais restava do que apenas alguns caixotes, que podia livremente caminhar em direção à Europa comunitária.

Um projeto europeu que hoje afinal sabemos que produzirá também os seus destroços. Quem ficará com os “caixotes” da Europa?

  

Bibliografia
Ovalle-Bahamón, Ricardo E. (2003). “The Wrinkles of Decolonization and Nationness: White Angolans as Retornados in Portugal” in Europe’s Invisible Migrants (Andrea L. Smith (ed.), Amsterdam University Press, Amsterdam, pp. 159-160) (Tradução minha)
Resolução de Conselho de Ministros nº 105 de 5 de maio de 1976

 

Sem comentários:

Enviar um comentário