Alfredo
Cunha
“Então a metrópole afinal é
isto.”
O Retorno, Dulce Maria
Cardoso
A força simbólica desta fotografia, acerca da qual já muito se disse, é, de facto, notável. O lado
direito da imagem aponta-nos para o mar e para o império, o lado esquerdo
mostra-nos os objetos devolvidos pela história, como os destroços na praia
quando o mar se retira com a sua força viva. O Padrão dos Descobrimentos e os
caixotes dos “retornados”, fisicamente lado a lado e simbolicamente anunciando a
celebração e o fim do império.
Em 1975, apareceu uma
nova categoria social no Estado e na sociedade portuguesa para quem encaixotou
estas enormes malas de madeira: os “retornados”. No entanto, por se ter tratado
de um processo migratório involuntário, grande parte dos visados não se reconheceu
na categoria de retornado (repatriado),
mas de expatriado ou refugiado. Na realidade, se muitos regressavam ao país de
origem ou de nacionalidade, outros nunca tinham estado na metrópole do império.
Porquê esta
designação? A categoria de “retornado” tinha a vantagem de ter um significado mais
neutro e menos politizado do que o de “refugiado”, logo bem menos desconfortável.
Longe do estatuto político, a definição legal de “retornado” recobria até uma
dimensão económica (“carecidos de apoio”), de forma a serem abrangidos nos programas
de assistência do IARN (a Resolução de Conselho de Ministros que “define a
qualidade de retornado” - Resolução nº 105 de 5 de maio de 1976 -, determina
também uma “sindicância a eventuais irregularidades do IARN” - pelos vistos, na
altura existiam também falsos retornados).
Ser “retornado” era,
cumulativamente, ser cidadão português, ter residido e regressado das
ex-colónias e carecer de apoio; ser “refugiado” era integrar as razões por que
isso aconteceu, o que seria sempre mais complicado.
Mas, independentemente
da designação ou das suas razões, uma coisa é certa: ser “retornado” era
sinónimo de “colonialista” e “explorador dos africanos” (dos “pretos”, como se
dizia). Como se o colonialismo, uma enorme e complexa estrutura política, económica,
social e cultural que emanava de Lisboa, pudesse ser sumariamente depositado naquelas
pessoas que viveram nas colónias, como se o longo sistema colonial pudesse ser transformado agora numa mera ação individual
dos “retornados”, nos ombros dos quais esse peso era colocado, como se naqueles
caixotes, junto ao Padrão dos Descobrimentos pudesse caber todo o império.
Ovalle-Bahamón em
“The Wrinkles of Decolonization and Nationness: White Angolans as Retornados in
Portugal” refere o papel que os “retornados” desempenharam no processo de
purificação, de catarse moral da sociedade portuguesa que assim se procurava libertar
do seu passado colonial, depondo-o sobre os “retornados”.
“Com efeito, os retornados tornaram-se o
referencial do colonialismo em Portugal e a sua presença em Portugal inspirou a
transformação da nação portuguesa imaginada. A presença dos retornados permitiu
a reinvenção de Portugal e dos portugueses como parte do sistema dos
estados-nações europeus, distanciando a nação do colonialismo e localizando os
retornados nas margens da portugalidade.
(…)
Em primeiro lugar, o colonialismo ele próprio precisava de ser
reconceptualizado, ou melhor dizendo, renomeado e depois descartado como parte
de um passado injusto. Em segundo lugar, os portugueses e o seu espaço nas
relações coloniais de poder tinha que ser definido e denunciado em nome de uma
“purificação” histórico-moral de Portugal como um estado-nação moderno. (…) a
presença em Portugal dos retornados facilitou a reconstrução de Portugal, servindo
de “depositários das estruturas coloniais”, os responsáveis pelo colonialismo,
enquanto simultaneamente afastavam os retornados da nação portuguesa.
A
descolonização para Portugal produziu um “momento presente “ uma conjuntura que
reformulou o colonialismo, não como um sistema de estruturas políticas e
económicas, mas como o somatório das ações individuais daquelas pessoas em
terras distantes.” (Ovalle-Bahamón, 2003, p. 159-160)
(tradução minha)
Ao fim dos “quinhentos anos” de
Portugal como grande nação imperial, o “regresso” dos “retornados”, como a
última presença colonial, promoveu a possibilidade da sociedade portuguesa re-conceptualizar
e transformar a anterior imagem de Portugal. Portugal era agora um país desembaraçado
do império, do qual nada mais restava do que apenas alguns caixotes, que podia
livremente caminhar em direção à Europa comunitária.
Um projeto europeu que hoje afinal sabemos
que produzirá também os seus destroços. Quem ficará com os “caixotes” da
Europa?
Bibliografia
Ovalle-Bahamón,
Ricardo E. (2003). “The Wrinkles of Decolonization and Nationness: White
Angolans as Retornados in Portugal” in Europe’s
Invisible Migrants (Andrea L. Smith (ed.), Amsterdam University Press,
Amsterdam, pp. 159-160) (Tradução minha)
Resolução de Conselho
de Ministros nº 105 de 5 de maio de 1976
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