Florian von Donnersmarck, A vida dos outros
“A polícia da
cidade russa de Volgogrado está a interrogar três homens suspeitos do homicídio
de um homossexual. O corpo da vítima, nu, foi deixado num descampado da cidade.
O crânio fora esmagado e o homem violado com garrafas de cerveja.” (Ler mais)
A vida dos outros, de Florian Henckel von Donnersmarck, é um filme sobre os fantasmas dos regimes totalitários. A história, que começa em 1984 num país cortado pelo muro e vai até 1991, à atual reunificação, revela-nos a ação da Stasi, a polícia política do regime da antiga República Democrática Alemã.
Há uma cena extraordinária neste filme. Aquela em que agente da Stasi
Gerd Wiesler está no sótão do prédio onde vive o dramaturgo George Dreyman,
cuja vida tem por missão espiar. Sozinho, está sentado com os auscultadores nos
ouvidos. Na sua eficiência calma e implacável, o funcionário HGW XX/7 tudo ouve
e regista.
Será nesse ato de vigiar a vida dos outros que surge a possibilidade de
escutar uma outra palavra e de ser
tocado por ela. Está a ouvir uma sonata e aquela música tocada ao piano pelo
escritor que vigia, comove-o profundamente. Naquele momento, Wiesler não está a
espiar Dreyman, está a ouvir a Appassionata
de Beethoven.
A sua escuta é agora duplamente clandestina: trai o escritor porque o espia
e trai o regime porque, ao ouvir a música, deixa de o espiar. É dali, do
interior da sua miséria moral que o funcionário HGW, com os auscultadores da
Stasi, extrai a sua humanidade, não numa insurgência política ativa contra o
regime, a cuja lógica impiedosa ele terá que pagar o seu preço, mas na capacidade
subjetiva, e redentora, de sentir o assombro por uma sonata para piano.
De onde vem este assombro?
Não sabemos. Não sabemos como desenvolver o que há de melhor em cada um de
nós. Mas sabemos que só a educação pode contribuir para essa possibilidade. Não
quer isto dizer que a educação consegue fazê-lo, quer apenas dizer que se
alguma coisa consegue fazê-lo será a educação. Não estou, obviamente, a referir-me aos projetos utópicos de educação totalitária, mas apenas à possibilidade de arrancar da alma o assombro pela arte, por exemplo. Sem esse esforço intencional e deliberado
da educação dificilmente conseguiremos um melhor desenvolvimento das
capacidades do ser humano, ou se conseguirmos, terá sido o arbítrio de forças que
não dominamos, uma espécie de deusa da fortuna, que, miraculosamente, modificaram
a bestialidade, como a da daqueles três suspeitos de um brutal homicídio, num “homem bom”.
A lenta agonia da educação vai gerando manchetes de crise (como esta), mas até ao momento não se questionou verdadeiramente qual será o custo de não se gastar esse dinheiro.
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