A metamorfose de Narciso, Salvador Dali
"A vontade das pessoas, quer como
governantes, quer como concidadãos de impor aos outros as suas próprias
opiniões, é tão ativamente apoiada por alguns dos melhores e dos piores
sentimentos inerentes à natureza humana, que muito raramente é mantida sob
controlo por outra coisa que não a falta de poder."
Stuart Mill, Sobre a liberdade, Edições 70, Lisboa, 2006, p. 46
Diz
Gonçalves Ribeiro no seu livro “A vertigem da descolonização: da agonia do êxodo à cidadania plena” que “Portugal, ao fim de séculos de
permanência em Angola, não podia sair dali com as calças descidas até aos
calcanhares. No mínimo, havia que agarrá-las pelos joelhos.” Penso que será
fácil, concordar que saímos de Angola com as “calças descidas pelos joelhos”
senão mesmo “até aos calcanhares”. Por que razão isso aconteceu, já será mais
discutível.
Os
ditadores, na sua enorme vontade de “impor aos outros as suas próprias opiniões”,
considerarem-se iluminados,
como a imagem de Narciso ao espelho, não
precisam de ver nem ouvir o que se passa à sua volta.
Salazar,
que lançou o “Ato colonial” (1930) e para quem “a pátria não se discutia” foi
incapaz de compreender a crise do sistema colonial europeu e a nova ordem mundial
saída do pós-guerra que condenava a ocupação dos países (a começar pelas
ocupações da Alemanha nazi, a grande derrotada da II Guerra).
Foi
incapaz de entender as sucessivas condenações na ONU e o isolamento da
comunidade internacional. A conversão, meramente semântica, das colónias em “províncias ultramarinas” na revisão
constitucional de 1951 (que revoga o “Ato Colonial”), foi apoiar-se numa
terminologia da Primeira República, que não convenceu ninguém, uma vez que a nova
designação subentendia serem as colónias um prolongamento natural do território português, como qualquer outra província de
Portugal continental; e a adoção do luso-tropicalismo
foi também uma manobra retórica que não convenceu. Esta ideologia humanista exaltava a capacidade dos
portugueses para se relacionarem com os outros povos, numa assimilação que, de
facto, não existia, pois mantinha-se em vigor o “Estatuto do Indígena”, só
revogado em 1961.
Foi
incapaz de tirar conclusões da primeira operação de repatriamento na sequência
de processos de descolonização, que começou logo em 1945, com o regresso dos
holandeses que se retiravam da Indonésia (a segunda operação em larga escala
foi em 1962 com o repatriamento de cerca de 1 milhão de franceses que
abandonavam a Argélia). Aliás, a plena, e tardia, ocupação de Angola termina na
altura em que os outros países começavam a retirar-se: a última campanha
militar tem lugar em 1940-41 (contra os Herero, no sul de Angola) (Pélissier, 1986,
p. 272), enquanto em 1945, a Holanda começa a descolonizar. Talvez não seja
incapacidade de compreender, mas puro e simples atraso que a ditadura, avessa à
mudança, terá ampliado.
Em
1970, Marcelo Caetano, em estado de choque, ficava a saber que o Papa Paulo VI
recebia em audiência privada, três “terroristas” (Amílcar Cabral, Agostinho
Neto e Marcelino dos Santos), que não eram apenas inimigos declarados do
colonialismo português, eram homens que chefiavam movimentos de luta armada; Em
1972, o Conselho de Segurança da ONU, na sua primeira reunião em África (Adis
Abeba), também recebeu representantes do MPLA, PAIGC e Frelimo.
Enfim,
o isolamento diplomático português só era ultrapassado pelos “Estados párias”,
como a Rodésia de Ian Smith e a África do Sul do apartheid (qualquer coisa como é hoje a Coreia do Norte). Salazar
“orgulhosamente só”, demorou, adiou, tapou, contornou. Marcelo Caetano,
prolongou a agonia, meramente acenando com a mera possibilidade de um mero
federalismo (já depois da Revolução, Spínola voltaria a acenar com a mesma
solução federalista).
A administração de Marcelo Caetano,
talvez motivada pelas dificuldades já visíveis, ainda apresentou alguns sinais,
designadamente ao nível de contactos diplomáticos, que deixaram antever alguma
folga diante dos adversários. Mas a publicação em Fevereiro de 1974 do livro de
Spínola Portugal e o Futuro (que vendeu
mais do que 100 mil exemplares e que basicamente afirmava que as guerras
coloniais, que duravam desde 1961, não tinham solução militar, mas apenas
política e que o problema ultramarino estava numa encruzilhada e era necessário
que a Nação debatesse o problema) e a recusa dos generais Costa Gomes e Spínola
- os dois principais chefes militares do país - em prestar vassalagem a
Caetano, detonaram o seu colapso (embora, curiosamente, Marcelo Caetano tenha
sido ovacionado por milhares de pessoas em Março de 1974, num apinhado estádio
José de Alvalade quando assistia ao derby
Sporting-Benfica. Estava a escassas três semanas de ser transportado num chaimite do Quartel do Carmo para o avião
que o levaria para sempre para o exílio no Brasil, sem nunca mais ter
manifestado vontade de regressar a Portugal).
No
ultramar, a solução militar estava esgotada porque a guerra estava perdida. Na
metrópole, a contestação à guerra em África, considerada injusta e sem saída,
alastrava pela sociedade portuguesa que, em amplo consenso, reclamavam o seu
fim. Episódios como os da vigília na capela do Rato (Dezembro de 1972) dão
visibilidade ao protesto diário, que neste caso assume apenas um carater
simbólico por envolver a igreja nesse protesto. Por uma trágica coincidência,
durante os dias da ocupação da capela do Rato, o Exército português em
Moçambique massacrava a população da aldeia de Wiriyamu, entre outras, numa
operação militar que comprometeu irremediavelmente a já débil credibilidade
internacional do regime (em 1973, o massacre, denunciado pelo jornal «Times»,
na véspera da visita de Caetano a Londres, provocou manifestações constantes de
condenação e o enxovalho a Marcelo Caetano).
O
esforço de guerra produzia o inevitável cansaço psicológico, além do peso das despesas e da dívida dele
resultante, que impedia a melhoria das condições de vida da população em
Portugal. Esvaziada a resolução
militar, só existia uma solução política e nesta restava apenas a conceder a
independência aos países africanos.
Os “Rosas Coutinhos” só apareceram depois.
Quando já pouco ou nada havia a fazer, senão apenas entregar Angola ao amigo
soviético. Com isso “desceu demasiado as calças”, os outros Movimentos não
gostaram da ideia e Rosa Coutinho, presidente
da Junta Governativa de Angola,
teve que retornar à (ainda) metrópole. Foi, afinal, o primeiro retornado.
Seguiu-se mais meio milhão, porque se o Estado Novo nunca resolveu o conflito
colonial, o novo regime fê-lo, “exemplarmente” em menos de um ano (o
repatriamento dos holandeses da Indonésia estendeu-se de 1945 a 1957,
desdobrando-se por 4 vagas migratórias).
No
meio disto tudo, não é claro por que razão, no período pré-independência, estando
o governo português, naturalmente desprovido de meios humanos e logísticos para
suster a violência, os atentados, as pilhagens, os raptos e os assassinatos que
alastravam rapidamente pelo território angolano e que descambaram numa guerra
civil sangrenta, por que razão, dizia, a ONU nunca interveio, num conflito que
diária e visivelmente atingia proporções cada vez mais assustadoras (esta
situação seria certamente do conhecimento da ONU, cujo secretário-geral, Kurt
Waldheim, esteve em visita oficial a Portugal em Agosto de 1974 para debater
com Mário Soares a situação dos territórios africanos sob administração
portuguesa tendo em vista os respetivos processos de descolonização).
Como
é sabido, esta situação de conflito em Angola evoluiu mesmo para uma guerra
civil, onde durante quase trinta anos, morreram mais angolanos às mãos uns dos
outros do que em catorze anos de luta pela independência, sem falar na
quantidade absurda de deslocados.
Depois
de apresentada esta dúvida, é forçoso reconhecer que, se internamente a
obstinação/indecisão interna de Salazar/Caetano contribuíram para o isolamento
e impasse, externamente, os restos do Império Português desapareceram devido a
fortíssimas condições internacionais que atuaram nesse sentido.
As
colónias portuguesas em África ficaram integradas na zona de confluência dos
poderes das superpotências em competição e não resistiram à luta que travaram
para o seu domínio. Na verdade, as “calças desceram até aos calcanhares” porque
em Portugal, a comissão liquidatária[1] não tinha qualquer capacidade de conduzir a situação. Numa
bipolarização Este/Oeste, as superpotências (União Soviética e EUA), empenharam-se
no despique “anti”-colonialista que lhes aumentou as respetivas áreas de
influência e precipitaram a derrocada da supremacia política de Portugal e o
desmantelamento dos impérios europeus.
Os
restos do Império português foram vítimas das transformações do mundo em zonas
de confluência dos poderes políticos das superpotências e, em particular, da
competição e da luta que, entre si travaram para o seu domínio. A rebelião no
Ultramar português, o golpe de Estado em Portugal e a descolonização final,
enquadram-se na rivalidade e na luta que desde 1945 se desenvolveram entre
americanos e russos e foram uma das concretizações da sua luta para a posse
completa do globo e, em particular, dos territórios de África (Gonçalves
Martins, 1986, Capítulo IV).
Depois
da conferência de Ialta, que dividiu a Europa, um novo “Tratado de Tordesilhas”, dividiria também o continente africano em
zonas de influências das superpotências. A Angola calhou-lhe em sorte a União
Soviética, que afinal só durou (mais) 14 anos…Caiu de podre em 1989, em Berlim,
nos escombros de um muro. Na disputa pelo mundo, ganhou o capitalismo. Aí o
temos, selvagem e predador.
Agora, na nova ordem mundial ex-neo-pós-colonialista,
o “socialismo democrático” é o novo credo ideológico
em Angola, onde a delapidação capitalista
continua, e a fome e a pobreza também. Quase 40 anos depois da Independência, a
que os angolanos justamente aspiravam e à qual tinham pleno direito, a
democracia e a cidadania plena em Angola continuam por cumprir. Mudaram-se os
tempos mas as vontades nem por isso.
Bibliografia
Oliveira, César, Portugal, dos quatro cantos do mundo à Europa, A descolonização (1974-76): ensaio e documentos,
Lisboa, Cosmos, 1996.
Pelissier,
René, História das campanhas de Angola,
resistências e revoltas, 1845-1941, vol. II, Estampa, Lisboa, 1986
Pezarat
Correia, Pedro, Descolonização de Angola
- A joia da coroa do império português, Editorial Inquérito, Lisboa, 1991
Reis
Ventura, Os Dias da Vergonha, Reis
Ventura. "De 25 de Abril de 1974 a 11 de Novembro de 1975", Os nomes
e os acontecimentos da "Libertação de Angola"
Fernando Pereira Editor, Lisboa 1977
Fernando Pereira Editor, Lisboa 1977
Ribeiro, Gonçalves, A vertigem da
descolonização: da agonia do êxodo à cidadania plena, Editorial Inquérito, Mem Martins, 2002
[1] Rosa Coutinho, Mário Soares, Almeida Santos, Melo
Antunes e outros que tais, vá lá que, compreensivelmente, façam parte dos “tesourinhos
deprimentes” no baú das recordações de Angola para milhares de pessoas, mas não
fizeram a descolonização. O próprio
Almeida Santos reconheceu que os acordos de Alvor foram "um pedaço de
papel" que "não valeu nada". Segundo diz, ele e Mário Soares
(então ministro dos Negócios Estrangeiros) limitaram-se a escrever “o acordo em
bom português" (http://www.angonoticias.com/Artigos/item/3516). Plenamente
de acordo: um texto sem erros é mais bonito.
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