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domingo, 12 de maio de 2013

Descolonizar de “calças descidas”

A metamorfose de Narciso, Salvador Dali

"A vontade das pessoas, quer como governantes, quer como concidadãos de impor aos outros as suas próprias opiniões, é tão ativamente apoiada por alguns dos melhores e dos piores sentimentos inerentes à natureza humana, que muito raramente é mantida sob controlo por outra coisa que não a falta de poder."

Stuart Mill, Sobre a liberdade, Edições 70, Lisboa, 2006, p. 46

Diz Gonçalves Ribeiro no seu livro “A vertigem da descolonização: da agonia do êxodo à cidadania plena” que “Portugal, ao fim de séculos de permanência em Angola, não podia sair dali com as calças descidas até aos calcanhares. No mínimo, havia que agarrá-las pelos joelhos.” Penso que será fácil, concordar que saímos de Angola com as “calças descidas pelos joelhos” senão mesmo “até aos calcanhares”. Por que razão isso aconteceu, já será mais discutível.

 
Os ditadores, na sua enorme vontade de “impor aos outros as suas próprias opiniões”, considerarem-se iluminados, como a imagem de Narciso ao espelho, não precisam de ver nem ouvir o que se passa à sua volta.
Salazar, que lançou o “Ato colonial” (1930) e para quem “a pátria não se discutia” foi incapaz de compreender a crise do sistema colonial europeu e a nova ordem mundial saída do pós-guerra que condenava a ocupação dos países (a começar pelas ocupações da Alemanha nazi, a grande derrotada da II Guerra).

Foi incapaz de entender as sucessivas condenações na ONU e o isolamento da comunidade internacional. A conversão, meramente semântica, das colónias em “províncias ultramarinas” na revisão constitucional de 1951 (que revoga o “Ato Colonial”), foi apoiar-se numa terminologia da Primeira República, que não convenceu ninguém, uma vez que a nova designação subentendia serem as colónias um prolongamento natural do território português, como qualquer outra província de Portugal continental; e a adoção do luso-tropicalismo foi também uma manobra retórica que não convenceu. Esta ideologia humanista exaltava a capacidade dos portugueses para se relacionarem com os outros povos, numa assimilação que, de facto, não existia, pois mantinha-se em vigor o “Estatuto do Indígena”, só revogado em 1961.
Foi incapaz de tirar conclusões da primeira operação de repatriamento na sequência de processos de descolonização, que começou logo em 1945, com o regresso dos holandeses que se retiravam da Indonésia (a segunda operação em larga escala foi em 1962 com o repatriamento de cerca de 1 milhão de franceses que abandonavam a Argélia). Aliás, a plena, e tardia, ocupação de Angola termina na altura em que os outros países começavam a retirar-se: a última campanha militar tem lugar em 1940-41 (contra os Herero, no sul de Angola) (Pélissier, 1986, p. 272), enquanto em 1945, a Holanda começa a descolonizar. Talvez não seja incapacidade de compreender, mas puro e simples atraso que a ditadura, avessa à mudança, terá ampliado.
 Foi incapaz de negociar com os Movimentos nacionalistas, (onde via “terroristas” e “inimigos” e nunca adversários). Em Angola os conflitos armados começam em 1961, mas a formação dos primeiros partidos é anterior (a título de exemplo, a UPONA (União das Populações do Norte de Angola) e a FUA (Frente Unida Angolana) apareceram em 1951, e o PLUA (Partido de Luta Unida dos Africanos em Angola) e o MPLA (Movimento para a Libertação de Angola) em 1956). Os movimentos de libertação não se lançaram imediatamente na luta armada, mas solicitaram ao governo português que resolvesse pacificamente o problema colonial, recorrendo os seus dirigentes à ONU com essa finalidade. Perdidas as esperanças, passaram à luta armada, que começou em Luanda, no dia 4 de fevereiro de 1961, aquando do ataque à prisão militar e ao quartel da polícia que encerravam alguns dos chefes e militantes dos movimentos de libertação.
Em 1970, Marcelo Caetano, em estado de choque, ficava a saber que o Papa Paulo VI recebia em audiência privada, três “terroristas” (Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos), que não eram apenas inimigos declarados do colonialismo português, eram homens que chefiavam movimentos de luta armada; Em 1972, o Conselho de Segurança da ONU, na sua primeira reunião em África (Adis Abeba), também recebeu representantes do MPLA, PAIGC e Frelimo.
Enfim, o isolamento diplomático português só era ultrapassado pelos “Estados párias”, como a Rodésia de Ian Smith e a África do Sul do apartheid (qualquer coisa como é hoje a Coreia do Norte). Salazar “orgulhosamente só”, demorou, adiou, tapou, contornou. Marcelo Caetano, prolongou a agonia, meramente acenando com a mera possibilidade de um mero federalismo (já depois da Revolução, Spínola voltaria a acenar com a mesma solução federalista).
A administração de Marcelo Caetano, talvez motivada pelas dificuldades já visíveis, ainda apresentou alguns sinais, designadamente ao nível de contactos diplomáticos, que deixaram antever alguma folga diante dos adversários. Mas a publicação em Fevereiro de 1974 do livro de Spínola Portugal e o Futuro (que vendeu mais do que 100 mil exemplares e que basicamente afirmava que as guerras coloniais, que duravam desde 1961, não tinham solução militar, mas apenas política e que o problema ultramarino estava numa encruzilhada e era necessário que a Nação debatesse o problema) e a recusa dos generais Costa Gomes e Spínola - os dois principais chefes militares do país - em prestar vassalagem a Caetano, detonaram o seu colapso (embora, curiosamente, Marcelo Caetano tenha sido ovacionado por milhares de pessoas em Março de 1974, num apinhado estádio José de Alvalade quando assistia ao derby Sporting-Benfica. Estava a escassas três semanas de ser transportado num chaimite do Quartel do Carmo para o avião que o levaria para sempre para o exílio no Brasil, sem nunca mais ter manifestado vontade de regressar a Portugal).
No ultramar, a solução militar estava esgotada porque a guerra estava perdida. Na metrópole, a contestação à guerra em África, considerada injusta e sem saída, alastrava pela sociedade portuguesa que, em amplo consenso, reclamavam o seu fim. Episódios como os da vigília na capela do Rato (Dezembro de 1972) dão visibilidade ao protesto diário, que neste caso assume apenas um carater simbólico por envolver a igreja nesse protesto. Por uma trágica coincidência, durante os dias da ocupação da capela do Rato, o Exército português em Moçambique massacrava a população da aldeia de Wiriyamu, entre outras, numa operação militar que comprometeu irremediavelmente a já débil credibilidade internacional do regime (em 1973, o massacre, denunciado pelo jornal «Times», na véspera da visita de Caetano a Londres, provocou manifestações constantes de condenação e o enxovalho a Marcelo Caetano).
O esforço de guerra produzia o inevitável cansaço psicológico, além do peso das despesas e da dívida dele resultante, que impedia a melhoria das condições de vida da população em Portugal. Esvaziada a resolução militar, só existia uma solução política e nesta restava apenas a conceder a independência aos países africanos.
 
Os “Rosas Coutinhos” só apareceram depois. Quando já pouco ou nada havia a fazer, senão apenas entregar Angola ao amigo soviético. Com isso “desceu demasiado as calças”, os outros Movimentos não gostaram da ideia e Rosa Coutinho, presidente da Junta Governativa de Angola, teve que retornar à (ainda) metrópole. Foi, afinal, o primeiro retornado. Seguiu-se mais meio milhão, porque se o Estado Novo nunca resolveu o conflito colonial, o novo regime fê-lo, “exemplarmente” em menos de um ano (o repatriamento dos holandeses da Indonésia estendeu-se de 1945 a 1957, desdobrando-se por 4 vagas migratórias).
No meio disto tudo, não é claro por que razão, no período pré-independência, estando o governo português, naturalmente desprovido de meios humanos e logísticos para suster a violência, os atentados, as pilhagens, os raptos e os assassinatos que alastravam rapidamente pelo território angolano e que descambaram numa guerra civil sangrenta, por que razão, dizia, a ONU nunca interveio, num conflito que diária e visivelmente atingia proporções cada vez mais assustadoras (esta situação seria certamente do conhecimento da ONU, cujo secretário-geral, Kurt Waldheim, esteve em visita oficial a Portugal em Agosto de 1974 para debater com Mário Soares a situação dos territórios africanos sob administração portuguesa tendo em vista os respetivos processos de descolonização).
Como é sabido, esta situação de conflito em Angola evoluiu mesmo para uma guerra civil, onde durante quase trinta anos, morreram mais angolanos às mãos uns dos outros do que em catorze anos de luta pela independência, sem falar na quantidade absurda de deslocados.
Depois de apresentada esta dúvida, é forçoso reconhecer que, se internamente a obstinação/indecisão interna de Salazar/Caetano contribuíram para o isolamento e impasse, externamente, os restos do Império Português desapareceram devido a fortíssimas condições internacionais que atuaram nesse sentido.
As colónias portuguesas em África ficaram integradas na zona de confluência dos poderes das superpotências em competição e não resistiram à luta que travaram para o seu domínio. Na verdade, as “calças desceram até aos calcanhares” porque em Portugal, a comissão liquidatária[1] não tinha qualquer capacidade de conduzir a situação. Numa bipolarização Este/Oeste, as superpotências (União Soviética e EUA), empenharam-se no despique “anti”-colonialista que lhes aumentou as respetivas áreas de influência e precipitaram a derrocada da supremacia política de Portugal e o desmantelamento dos impérios europeus.
Os restos do Império português foram vítimas das transformações do mundo em zonas de confluência dos poderes políticos das superpotências e, em particular, da competição e da luta que, entre si travaram para o seu domínio. A rebelião no Ultramar português, o golpe de Estado em Portugal e a descolonização final, enquadram-se na rivalidade e na luta que desde 1945 se desenvolveram entre americanos e russos e foram uma das concretizações da sua luta para a posse completa do globo e, em particular, dos territórios de África (Gonçalves Martins, 1986, Capítulo IV).
Depois da conferência de Ialta, que dividiu a Europa, um novo “Tratado de Tordesilhas”, dividiria também o continente africano em zonas de influências das superpotências. A Angola calhou-lhe em sorte a União Soviética, que afinal só durou (mais) 14 anos…Caiu de podre em 1989, em Berlim, nos escombros de um muro. Na disputa pelo mundo, ganhou o capitalismo. Aí o temos, selvagem e predador.
Agora, na nova ordem mundial ex-neo-pós-colonialista, o “socialismo democrático” é o novo credo ideológico em Angola, onde a delapidação capitalista continua, e a fome e a pobreza também. Quase 40 anos depois da Independência, a que os angolanos justamente aspiravam e à qual tinham pleno direito, a democracia e a cidadania plena em Angola continuam por cumprir. Mudaram-se os tempos mas as vontades nem por isso.

  

Bibliografia
 Martins, Manuel Gonçalves, A Descolonização Portuguesa (as responsabilidades), Livraria Cruz, Braga, 1986
Oliveira, César, Portugal, dos quatro cantos do mundo à Europa, A descolonização (1974-76): ensaio e documentos, Lisboa, Cosmos, 1996.
Pelissier, René, História das campanhas de Angola, resistências e revoltas, 1845-1941, vol. II, Estampa, Lisboa, 1986
Pezarat Correia, Pedro, Descolonização de Angola - A joia da coroa do império português, Editorial Inquérito, Lisboa, 1991
Reis Ventura, Os Dias da Vergonha, Reis Ventura. "De 25 de Abril de 1974 a 11 de Novembro de 1975", Os nomes e os acontecimentos da "Libertação de Angola"
Fernando Pereira Editor, Lisboa 1977
Ribeiro, Gonçalves, A vertigem da descolonização: da agonia do êxodo à cidadania plena, Editorial Inquérito, Mem Martins, 2002
 



[1] Rosa Coutinho, Mário Soares, Almeida Santos, Melo Antunes e outros que tais, vá lá que, compreensivelmente, façam parte dos “tesourinhos deprimentes” no baú das recordações de Angola para milhares de pessoas, mas não fizeram a descolonização. O próprio Almeida Santos reconheceu que os acordos de Alvor foram "um pedaço de papel" que "não valeu nada". Segundo diz, ele e Mário Soares (então ministro dos Negócios Estrangeiros) limitaram-se a escrever “o acordo em bom português" (http://www.angonoticias.com/Artigos/item/3516). Plenamente de acordo: um texto sem erros é mais bonito.
 

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