Falar para um candeeiro...

domingo, 12 de maio de 2013

Aos fiéis amigos

        
Elliott Erwitt
 
PONTE AÉREA

O comandante do avião mandou-me perguntar se podíamos partir. À nossa volta era o deserto, algumas viaturas abandonadas, outras incendiadas e um único ruído, o dos motores.
Pedi-lhe para aguardarmos mais algum tempo. Minutos depois ouviu-se e viu-se um carro a aproximar-se pelo meio da pista. Parou a escassos metros do avião. Açodada, saiu uma senhora com cerca de 50 anos trazendo consigo uma mala e alguns embrulhos.
Seguiu-a um homem, um pouco mais velho, tisnado pelo sol africano, aspeto contrariado, levando à trela um possante pastor alemão.
A mulher foi a primeira a entrar a bordo do avião; o homem fora entretanto intercetado por um membro da tripulação que o informara da impossibilidade de embarcar o animal.
Recordo-me da cara quase radiante com que chamou a mulher dizendo­-lhe que iam ficar; do cão é que não se separava. Quem não se conformou foi a esposa que do alto das escadas ia mencionando nomes de familiares, amigos e conhecidos que já tinham partido.
Subi as escadas e coloquei a questão ao comandante; ele também compreendeu o significado profundo daquele momento e a angústia de quem partia sem o desejar. Havia que se encontrar uma solução. E ganhou a mulher. O cão entrou mesmo na cabina, tendo-se improvisado uma rede de proteção entre dois assentos, atrás da qual se acomodou sem causar quaisquer problemas durante a viagem.”
 
General Gonçalves Ribeiro, A vertigem da descolonização: da agonia do êxodo à cidadania plena, Editorial Inquérito, Mem Martins, 2002, p.374



“Metemo-nos no carro e o tio Zé arrancou (em direção ao aeroporto). A Pirata correu, correu, correu atrás do carro como se fôssemos parar um pouco mais à frente, para a deixarmos entrar. Às vezes fazíamos essa brincadeira, de certeza que a Pirata pensava que estávamos a brincar com ela porque não parava de correr. Correu o mais que pôde mas o tio Zé conduzia tão depressa. A Pirata foi ficando para trás, cada vez mais para trás, até ser um ponto branco na avenida, um ponto branco pequenino, pequenino, pequenino.”
 
O Retorno, Dulce Naria Cardoso (2012) Tinta-da-China, Lisboa, pp. 80-1
 


Uma lembrança a todos os fiéis amigos que ficaram.

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