No Bocoio
Memória
(…) Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas
ficarão.
Carlos
Drummond de Andrade
A memória
produz não apenas a descrição de factos, mas a sua representação.
Frequentemente representamos um passado mais idealizado do que real,
especialmente se esse passado se situar nos confins mais afastados da infância.
Mas a minha
infância, de facto, foi diferente. Hoje, que vivo no centro da cidade,
tornou-se quase impensável imaginar que nasci e vivi numa pequena vila em
Angola, onde não havia televisão, telefone ou internet. Não havia
transportes públicos, supermercados ou jornais e até a água canalizada e a luz
elétrica tinham sido instaladas pouco tempo antes de eu nascer. Uma infância
muito longe no espaço e ainda mais distante no tempo, algures numa espécie de “começo
primordial”. Desse passado, quase mítico, fará sempre parte uma estranha
personagem que aparecia por vezes na vila: o Kanherenra (a grafia não deve
estar correta). Ainda me lembro de parte da sua ladainha (que não reproduzo
porque não sei umbundo), que ele recitava em voz alta, de pé e de olhos
fechados, vestido com peles e outras roupas estranhas, com muitos adornos e
objetos pendurados.
Segundo os
bailundos, ele terá ficado num estado de desvario, vítima de um kazumbi (espírito),
pois o universo daqueles povos estava ocupado por muitas forças e poderes. Mas
a infância, que também estava habitada pelas minhas “forças e poderes”, transformou
o alienado Kanherenra no meu feiticeiro. Dorothy e os seus três companheiros
(quatro com o Totó) também descobrem no final da estrada amarela
que o feiticeiro de Oz que tanto procuravam afinal não era um verdadeiro feiticeiro,
mas uma pobre criatura que, tendo aportado na Terra de Oz no seu balão
desgovernado, fingia ser um poderoso mágico.
Vejo as imagens: ele
segura numa das mãos alguns objetos (um saco, um livro (?), um bordão com um
pano amarrado…), enquanto move a outra para baixo e para cima, ao compasso da
sua ladainha. Trás um lenço amarrado à cabeça e às costas uma sacola e uma
cabaça. Ao fundo vê-se o morro Ulombe. Crianças e adultos ouvem-no, riem e falam
dele. Numa outra situação, alguém fala mais demoradamente com ele, aproximam-se
várias crianças, passa um carro ao fundo. E ali fico eu entre os dois a ouvir a
conversa e a olhar para ele. Pouco depois ele despede-se e vai-se embora.
Aparece agora uma rapariga negra na imagem. Viro-me e ficamos de costas a
olhá-lo enquanto se afasta. Vejo-o partir.
Quando eu morrer e morrerem todos os
que um dia ainda nasceram num país sem televisão e tiveram o seu próprio
feiticeiro, morrerá também uma parte da história para a qual não existem
museus, exposições ou arquivos, como qualquer outro admirável mundo velho.
Olá Zarita, adorei ler a tua descrição sobre uma das figuras da nossa infância, eu tb as tenho, mas os registos só mesmo nas nossas memórias, beijinhos escreves muito bem.
ResponderEliminarBela Cavaco
Olá Bela, Obrigada. E as tuas memórias, porque não partilhá-las? Vou ficar à espera :) Beijinhos
EliminarPreservar memórias garante um futuro mais esclarecido... Um lugar na história ao "Kanherenra" e às impressões que nos deixou ... Beijinho Zarita ...
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