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segunda-feira, 13 de maio de 2013

Era uma vez, há muito tempo, um feiticeiro

No Bocoio




Memória

(…) Mas as coisas findas
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade



A memória produz não apenas a descrição de factos, mas a sua representação. Frequentemente representamos um passado mais idealizado do que real, especialmente se esse passado se situar nos confins mais afastados da infância.

Mas a minha infância, de facto, foi diferente. Hoje, que vivo no centro da cidade, tornou-se quase impensável imaginar que nasci e vivi numa pequena vila em Angola, onde não havia televisão, telefone ou internet. Não havia transportes públicos, supermercados ou jornais e até a água canalizada e a luz elétrica tinham sido instaladas pouco tempo antes de eu nascer. Uma infância muito longe no espaço e ainda mais distante no tempo, algures numa espécie de “começo primordial”. Desse passado, quase mítico, fará sempre parte uma estranha personagem que aparecia por vezes na vila: o Kanherenra (a grafia não deve estar correta). Ainda me lembro de parte da sua ladainha (que não reproduzo porque não sei umbundo), que ele recitava em voz alta, de pé e de olhos fechados, vestido com peles e outras roupas estranhas, com muitos adornos e objetos pendurados.
Segundo os bailundos, ele terá ficado num estado de desvario, vítima de um kazumbi (espírito), pois o universo daqueles povos estava ocupado por muitas forças e poderes. Mas a infância, que também estava habitada pelas minhas “forças e poderes”, transformou o alienado Kanherenra no meu feiticeiro. Dorothy e os seus três companheiros (quatro com o Totó) também descobrem no final da estrada amarela que o feiticeiro de Oz que tanto procuravam afinal não era um verdadeiro feiticeiro, mas uma pobre criatura que, tendo aportado na Terra de Oz no seu balão desgovernado, fingia ser um poderoso mágico.
 Há tempos, descobri através de um familiar uma autêntica e inestimável raridade, que se encontrava fechada há muitos anos num verdadeiro baú do tesouro, numa camera Super 8, com imagens registadas ainda sem som. De repente, como uma fénix, o meu feiticeiro ressurgia do passado. Como um fantasma silencioso, a aparição espectral da sua imagem estava ali de novo, diante dos meus olhos.
Vejo as imagens: ele segura numa das mãos alguns objetos (um saco, um livro (?), um bordão com um pano amarrado…), enquanto move a outra para baixo e para cima, ao compasso da sua ladainha. Trás um lenço amarrado à cabeça e às costas uma sacola e uma cabaça. Ao fundo vê-se o morro Ulombe. Crianças e adultos ouvem-no, riem e falam dele. Numa outra situação, alguém fala mais demoradamente com ele, aproximam-se várias crianças, passa um carro ao fundo. E ali fico eu entre os dois a ouvir a conversa e a olhar para ele. Pouco depois ele despede-se e vai-se embora. Aparece agora uma rapariga negra na imagem. Viro-me e ficamos de costas a olhá-lo enquanto se afasta. Vejo-o partir.
Quando eu morrer e morrerem todos os que um dia ainda nasceram num país sem televisão e tiveram o seu próprio feiticeiro, morrerá também uma parte da história para a qual não existem museus, exposições ou arquivos, como qualquer outro admirável mundo velho.


 


 







 
 
 

3 comentários:

  1. Olá Zarita, adorei ler a tua descrição sobre uma das figuras da nossa infância, eu tb as tenho, mas os registos só mesmo nas nossas memórias, beijinhos escreves muito bem.
    Bela Cavaco

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    1. Olá Bela, Obrigada. E as tuas memórias, porque não partilhá-las? Vou ficar à espera :) Beijinhos

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  2. Preservar memórias garante um futuro mais esclarecido... Um lugar na história ao "Kanherenra" e às impressões que nos deixou ... Beijinho Zarita ...

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