Lisboa, Padrão dos Descobrimentos
“É da essência orgânica da nação
portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios
ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam."
Ato Colonial, 1930
Na década de 30, uma antiga ideia ganhou força em
Portugal, a de que o país poderia retomar os tempos áureos das grandes
navegações dos Descobrimentos, mesmo diante de um cenário de crise mundial. A
força motriz para operar esse regresso à “idade do ouro” estava nas colónias.
A ideia da função
histórica portuguesa de atuar nos domínios ultramarinos e de fazer deles parte
integrante de um novo império colonial foi recuperada Salazar, e ganhou consistência
nos planos ideológicos e políticos do Estado Novo. A vocação colonial do Estado Novo
motivou, logo em 1930, precisamente a publicação do Ato Colonial, onde viriam a ser definidas as relações de
dependência das colónias e se limitava a intervenção que nelas podiam ter as
potências estrangeiras.
Nos
anos 30 pairava ainda no ar a tensão internacional que lançava sérias ameaças sobre
o património colonial português. Esta situação de risco resultava de vários
perigos iminentes, designadamente das pretensões alemãs de rever o Tratado de
Versalhes (1)
quanto à partilha colonial, ou dos planos Expansionistas de Mussolini
para a invasão de alguns países do Nordeste
Africano, ou mesmo de rumores acerca de um entendimento germano-britânico
para, à custa de Angola e Moçambique, acalmar as ambições territoriais da
Alemanha de Hitler, ou ainda devido às tendências de internacionalização da
questão colonial por parte da Sociedade das Nações.
A
afirmação do tema do império como um projeto de índole nacional, mesmo face a
todas as ameaças e perigos externos, foi recorrente desde a época da partilha
de África, na Conferência de Berlim (2).
O desejo da manutenção do “império” tinha sido, aliás, uma das principais
razões justificativas da entrada de Portugal na I Guerra Mundial. É, portanto, à
luz destes condicionalismos externos – os “perigos” que rondavam as colónias –
e também da crise económica que se faz sentir em Portugal desde o início da
década de 20, que se deve compreender a nova “política imperial”, nacionalista
e centralizadora, adotada pela ditadura militar e depois pelo Estado Novo, a
partir de 1926.
De
facto, as colónias desempenhavam uma dupla função no Estado Novo. Por um lado
representavam um elemento fundamental na política de nacionalismo e
proteccionismo económico e, por outro, um meio de exaltação do orgulho
nacionalista.
No primeiro caso, a metrópole e
as colónias formariam uma “comunidade e solidariedade natural”, com as colónias
a servirem de local de
instalação para os excessos demográficos da metrópole, de abastecimento de
matérias-primas a baixo custo, e de mercado para o escoamento dos produtos
industriais da metrópole. Este Pacto colonial era necessário para Salazar
conseguir inverter a política económica colonial da I República que se
encontrava num impasse, com as colónias, muito especialmente Angola,
debatendo-se com uma gravíssima crise financeira.
Assim como
Portugal, também outros países europeus lançaram os olhares para os seus
domínios coloniais no momento de crise, como foi o caso da Inglaterra, que, com
os acordos da Conferência Económica Imperial, ou Conferência Imperial de Otava,
realizada em 1932, restabeleceu a política de “preferência imperial” com as
suas colónias e os países da Commonwealth, sinal paradigmático do fim do
livre cambismo. O mesmo aconteceu com a França que, a partir de 1931,
redescobriu a utilidade económica das colónias, operando um movimento de
redefinição das suas trocas externas de grande escala.
De facto, a
definição de uma política de concentração comercial irá generalizar-se às
potências colonizadoras na sequência da Grande Depressão de 1929. A grande
retração dos principais mercados internacionais originará uma reorientação das
trocas externas para as colónias. Tal política, tipicamente no caso da Grã-Bretanha
e da França e também de Portugal, apoiava-se em medidas de protecionismo,
visando assegurar o escoamento das produções metropolitanas e o abastecimento
em matérias-primas e outros produtos.
Mas
as colónias não desempenharam um papel fundamental apenas como elemento
decisivo na política de nacionalismo económico, mas também um meio de estímulo
do orgulho nacionalista, como referido. As colónias constituíam, de facto, um
dos principais temas da propaganda nacionalista, ao integrar os espaços
ultramarinos no espaço geopolítico nacional e, sobretudo, na missão histórica
civilizadora de Portugal. O conteúdo ideológico destas ideias não era novo,
pois retomava elementos das elites portuguesas do século anterior, a novidade reside
na nova fora integradora do projeto colonial.
Em 1930, quando interinamente assume a pasta das
Colónias, Salazar promove a publicação do Ato
Colonial – o Decreto nº 18 570, de 8 de julho, em cuja elaboração têm um
papel importante Quirino de Jesus e Armindo Monteiro. O Ato Colonial vem a substituir o título V da Constituição de 1911, que se limitava a “assentar a regra
da autonomia financeira e descentralização administrativa das colónias e a
demarcar neste campo a competência do Congresso, do Poder Executivo e dos
governantes locais, em sete artigos”. (Ato
Colonial, Preâmbulo)
O Ato Colonial, enquanto lei-padrão da
colonização portuguesa é, juntamente com a Carta Orgânica do Império
Colonial Português, o documento que define o quadro jurídico-institucional
geral de uma política para os territórios sob dominação portuguesa e que, até
aos anos 50, vem proclamar para o país a “função histórica de possuir e
colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que
neles se compreendam, exercendo também a influência moral (…)”, afirmando que o
Estado “não aliena, por qualquer título, nenhuma parte do seu território
colonial. Os outros Estados não podem adquirir nenhuma porção deste, salvo para
estabelecimento de representação consular, mediante reciprocidade.” E que aos
domínios ultramarinos de Portugal passam a chamar-se “colónias” e constituem o “Império
Colonial Português”.
Dentro
da opção colonial do Estado português, abre-se uma fase “imperial”,
nacionalista e centralizadora, fruto de uma nova conjuntura externa e interna,
traduzida numa diferente orientação geral para o aproveitamento das colónias. Esta ideologia conferia um sentido de
missão que atravessava e dava unidade à História de Portugal desde o Século
XVI, criando-se um "mito coletivo" central, o dos Descobrimentos e da
Colonização, que mobilizava e congregava as energias nacionais em redor do
poder.
Os
ideólogos do Estado Novo, Armindo Monteiro em particular (ministro das Colónias
entre 1931-35 e o principal teórico desta fase), insistem sobretudo na missão
imperial como expressão de um ideal coletivo, que radica na alma da nação e que
corresponde a um imperativo histórico e político, cuja negação punha em causa a
própria independência do país. O império como algo atemporal, que estava acima
de todos os interesses e se misturava com a vontade profunda do povo, era uma visão que se harmonizava em
pleno com a conceção salazarista de Estado como poder forte e portador de
valores nacionais e públicos, os quais se sobrepunham aos interesses
particulares e privados.
Para
a consecução deste desígnio nacional, o regime levou a cabo diversas campanhas
nacionalistas tendentes a disseminar a “mística imperial” na manutenção das colónias e na elegia da época dos
Descobrimentos entendida como "idade de ouro" da Nação Portuguesa. Algumas
exposições reflectiram esta perspectiva tendo algumas sido elaboradas exclusivamente
sobre esta temática, como a Exposição Colonial Portuguesa (Porto, 1934), a Exposição
Histórica da Ocupação (Lisboa,
1937) e a Grande Exposição do Mundo Português
(Lisboa, 1940).
A política
integrista e centralizadora estatuída pelo Ato
Colonial não sofrerá qualquer alteração significativa com a revisão
constitucional de 1945, porventura nem mesmo com a sua revogação, na revisão constitucional
de 1951, que transforma o Ato Colonial,
com várias alterações, num título novo da constituição. As mudanças são
sobretudo terminológicas: vão desaparecer os termos “império colonial” e
“colónias”, que serão substituídos por “ultramar português” e “províncias
ultramarinas”. Quanto ao essencial, a revisão constitucional de 1951 exprime o
reforço e a consagração da via integrista e centralizadora inaugurada em 1930,
em desfavor das tímidas reservas autonomizantes e descentralizadoras então surgidas.
No entanto,
pelo menos simbolicamente a revogação
do Ato Colonial (Lei 2048 de 11 de Junho de 1951) marca o início da mudança. A
tentativa formal da preservação de um “império” cuja filosofia essencial
permanece, insere-se num mundo onde sopram já “novos ventos”.
Com o final da Segunda Guerra Mundial
inicia-se a crise do sistema colonial europeu, que se ficou a dever ao
aparecimento, reforço e intensificação dos movimentos nacionalistas, onde são
postas em causa as ideologias baseadas na superioridade da civilização europeia
e na hierarquia racial. Em 1945, a Carta das Nações Unidas declarava, no
capítulo I, ser objetivo das Nações Unidas, "desenvolver entre as nações
relações amigáveis fundadas no respeito pelo princípio da igualdade de direitos
dos povos e do seu direito de disporem de si próprios e tomarem quaisquer
medidas apropriadas à consolidação da paz no mundo (...)".
As potências europeias procuravam,
agora, adaptar-se ao novo contexto, através das mudanças das instituições
coloniais e da concessão de uma progressiva autonomia aos seus territórios do
Ultramar - um processo que viria brevemente a conduzir à descolonização quase
total da Ásia e da África.
No caso português, o Estado Novo nunca
permitiu o debate sobre o assunto e a ideia de centralismo, característica do
regime, contribuía para impossibilitar tal processo. A adaptação de Portugal ao
novo quadro internacional faz-se através de um esforço de justificação
ideológica que fosse aceitável no âmbito dos novos objetivos ditados pela Carta
das Nações. Assim, o regime nega a existência de qualquer situação colonial,
através da integração dos territórios ultramarinos no corpo da própria nação a
título de "províncias", conforme se consagrou na revisão
constitucional de 1951 (a qual revogou o Ato
Colonial, como referido). Para uso internacional, Salazar afirmava serem as
possessões africanas um prolongamento natural e indispensável de Portugal
metropolitano.
Mas “os ventos tinham mesmo mudado” e
a resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1960, reconhece a todas
as colónias o direito à independência, e nomeando expressamente os territórios
portugueses do Ultramar como colónias,
deixava claramente prever novos problemas.
Só na Revisão
da Constituição de 1971 é que a
presença colonial nos territórios africanos deixará de ser afirmada como uma
“missão histórica” ou questão de “independência nacional” para ser reconhecida
por questões de defesa dos interesses das populações brancas que há muito aí
residiam. No seguimento deste novo caráter da colonização portuguesa, já se
admite o princípio da “autonomia progressiva” e concede-se o título honorífico
de Estado, às províncias de Angola e Moçambique - “Estados honoríficos” - que são dotadas de governos, assembleia e tribunais
próprios, ainda que dependentes de Lisboa.
Mas os ventos já tinham mudado…
BIBLIOGRAFIA
História de
Portugal Vol. VII - O Estado Novo, Direção de
José Mattoso,
Autor Fernando Rosas et all, Editoral Estampa,
1998
Ato Colonia (Decreto n.º 18 570 de 8
de Julho de 1930)
Constituição
Política da República Portuguesa de 1933
Carta
Orgânica do Império Colonial Português (Decreto-lei
n. ̊23 228, de 15 novembro de 1933
Revisão da
Constituição Política da República Portuguesa de 1933 - Lei 2048 de 11 de Junho de 1951
Revisão da
Constituição Política da República Portuguesa de 1933 - Lei 3 de 16 Agosto de 1971
O Estado Novo e a Questão Colonial, http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/17128/17128_3.PDF
Notas
(1) Realizado em 1919, foi um tratado de paz assinado pelas potências europeias que encerrou oficialmente a I Guerra Mundial. O tratado tinha criado a Liga das Nações, um dos principais objetivos maiores do presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson. A Liga das Nações pretendia arbitrar disputas internacionais para evitar futuras guerras.
(1) Realizado em 1919, foi um tratado de paz assinado pelas potências europeias que encerrou oficialmente a I Guerra Mundial. O tratado tinha criado a Liga das Nações, um dos principais objetivos maiores do presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson. A Liga das Nações pretendia arbitrar disputas internacionais para evitar futuras guerras.
No Tratado de Versalhes, a
Alemanha renuncia a todos os títulos e direitos sobre as suas possessões
além-mar, sendo as colónias alemãs partilhadas pelas principais potências
aliadas e associadas. Assim, de certa forma, se Berlim foi a primeira partilha
da história colonial, Versalhes, terá sido a segunda.
(2) A Conferência de Berlim realizada entre 19 de Novembro de 1884 e 26 de fevereiro de 1885 teve como objetivo organizar a divisão e a ocupação de África pelas potências coloniais. O congresso foi proposto por Portugal e organizado pelo Chanceler alemão Otto von Bismarck, tendo participado a Grã-Bretanha, França, Espanha, Itália, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Bélgica, Estados Unidos, Suécia, Áustria-Hungria, Império Otomano.
É difícil acompanhar tanta produção e ainda por cima requer atenção tendo em conta os temas abordados. Gosto especialmente das imagens selecionadas. Bj
ResponderEliminar