Casablanca, Michael Curtiz, 1944
No início do filme Casablanca, quando Yvonne
(Madeleine LeBeau) uma jovem sentada ao balcão do
club noturno pergunta a Rick Blaine (Humphrey Bogart) o que fez na noite
anterior, este, habituado a um mundo cínico de intrigas e
conspirações, deixa antever o seu sarcasmo na resposta que
lhe dirige: “foi há muito tempo para que eu me lembre”. Na mesma conversa, a
jovem, insistindo, procura saber o que ele fará mais tarde, obtendo a mesma nitidez desamorosa na resposta: “não costumo fazer planos a longo prazo”.
Também no interrogatório “extra-oficial” a que é
sujeito pelas forças ocupantes, quando o major
Heinrich Strasser (Conrad Veidt) lhe pergunta qual é a sua nacionalidade, Rick
responde-lhe: “Sou um bêbado”.
Mas essa precisão sarcástica foi ainda mais exemplar
numa cena anterior, quando Rick joga uma partida de xadrez com Ugarte (Peter Lorre), e este, apercebendo-se da sua
insignificância, acaba por lhe perguntar: "Você despreza-me, não
despreza?". A resposta de Rick, é, na sua violência, axiomática: "Se ao
menos pensasse em você, provavelmente desprezaria"
Amar alguém é pensar nessa pessoa, odiá-la também,
porque de uma forma ou de outra, em ambos os casos somos afetados. O verdadeiro desprezo,
pelo contrário, institui a indiferença, a capacidade subjetiva da desafeição,
algo como um des-sentir.
Almoçar, pensando em alguém, significa, num certo sentido,
almoçar com essa pessoa, como andar a pé, pensando em alguém, significa
caminhar tendo como companhia essa pessoa. Por essa razão o ódio é
auto-destrutivo exatamente da mesma forma que o amor é auto-construtivo.
No extraordinário documentário de Chanoch
Ze’evi (terceira geração dos sobreviventes do Holocausto),
“As crianças de Hitler” (Hitler’sChildren), ficamos a saber que houve encontros entre descendentes de judeus massacrados
no Holocausto e descendentes dos seus carrascos nazis. Encontram-se porque ambos
compreenderam que lhes assiste a mesma necessidade de se libertarem do ódio.
Neste caso, a indiferença não seria uma forma cruel de destituição do outro,
mas uma forma interior de sossego e de descontaminação pelo excesso de ódio.
Em qualquer dos casos, o locus do desprezo é uma espécie de lugar impossível para o ser
humano, um estado paradoxal de indiferença, de pensar em não pensar.
O conto que se segue é uma pequena história da
tradição zen sobre dois jovens monges e mostra precisamente a (in)possibilidade
humana da manifestação da indiferença.
A mulher à beira do rio
Dois jovens monges zen
fizeram juntos o juramento de nunca tocar numa mulher. Tratava-se de uma decisão ardente e
total a que durante muito tempo ambos se mostraram fiéis.
Um dia, quando viajavam, preparavam-se para
atravessar o leito de um rio em cheia quando
viram aparecer uma jovem mulher de rara beleza que Ihes pediu ajuda para transpor as águas impetuosas. Tinha
grande necessidade de atravessar aquele rio, mas sozinha e frágil, não podia arriscar.
O primeiro monge, sem
sequer escutar as palavras da mulher, avançou para o rio e atravessou-o. O segundo monge tomou a
mulher nos braços e, mais lentamente,
mais dificilmente, com a ajuda de uma corda, levou-a para a outra margem.
A jovem agradeceu e seguiu o seu caminho e os
dois monges retomaram também o seu. Durante mais de uma hora mantiveram-se em
silêncio. A certa altura o primeiro monge,
que já não podia continuar calado, irrompeu com censuras e disse ao seu companheiro:
- Como pudeste quebrar o
teu juramento? A tua jura sagrada? O juramento que pronunciámos juntos? Não sentes vergonha? Como pudeste tomar aquela mulher nos teus braços?
- Olha —
diz o outro —, ainda pensas nela?
Em certas
versões a frase torna-se: Ainda a trazes tu?
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