As Vinhas da Ira (John Ford, 1940)
O tema da parrésia
(parrhēsía, palavra
original: παρρησία) aparece pela primeira vez em Eurípides (ca. 480 a.C. - 406 a.C.), nas Suplicantes,
sendo um tema presente no mundo grego (em “Isócrates, Demóstenes, Políbio,
Filodemo, Plutarco, Marco Aurélio, Máximo de Tiro, Luciano, etc.), encontrando-se
novamente no fim da Antiguidade (na espiritualidade cristã, em São João
Crisóstomo, por exemplo)”. (Foucault: 2010, p. 46)
Etimologicamente
significa “dizer tudo” (“pan”,
todo) e “discurso” (“rhésis”) e quer dizer “franqueza”, “coragem de dizer a verdade”, “falar
livremente”. É um tipo de atividade verbal na qual aquele que fala tem uma
relação específica com a verdade.
O parrésico, o que diz a verdade, tem o benefício da credibilidade em virtude
da sua atitude ética e coragem, pois ao manifestar a sua palavra, fá-lo com
risco confrontando o poder. Ele é sempre menos poderoso do que aquele a quem
dirige a sua palavra; a parrésia vem “de baixo” e dirige-se a alguém que está
“em cima”, por essa razão, quando um dirigente, um professor ou um pai critica,
não faz uso da parrésia.
“(…) a parrésia
é a ética do dizer-a-verdade, no seu ato arriscado e livre. O parrésico, é o homem
verídico, aquele que tem a coragem de arriscar o dizer-a-verdade num pacto consigo
mesmo, precisamente na medida em que é o enunciador da verdade.” (Foucault:
2010, p. 64)
O parrésico não é um profeta, não é um sábio, nem é um técnico. O profeta, como o parrésico,
é alguém que diz a verdade, mas não fala em nome próprio, diz em geral, a palavra
de Deus, uma verdade que vem de outro lugar; O sábio diz em seu próprio nome, mas
a sua palavra pode ser enigmática e deixar aquele ao qual se dirige na
ignorância, além disso, o sábio não é forçado a falar, nada o obriga a manifestar
a sua sabedoria, de resto, um sábio é por norma, um ser silencioso ou que usa a
fala de forma parcimoniosa; o dizer do técnico é a terceira modalidade do dizer
verdadeiro que se opõe à parrésia, na medida em que se trata de um discurso
sobre o saber-fazer que implica uma prática e não apenas a teoria, e, para além
disso, a transmissão desse saber não implica nenhum risco, pelo contrário, está
legitimada pela tradição.
O parrésico não diz em nome de Deus,
da sabedoria ou da técnica. Diz em nome de um ethos, a sua relação com a verdade é fundamental
e dizê-la é um dever
perante os outros e perante si próprio.
No filme As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, John Ford, 1940), Casy
(John Carradine), o ex-pregador que perdera a vocação é o
homem que pensa, reflete e diz a injustiça da condição dos trabalhadores
agrícolas que, forçados a abandonar as suas casas e terras no estado de
Oklahoma, durante a Grande Depressão de 1929, rumam em direção ao Oeste,
deambulando de um acampamento para outro e trabalhando por salários miseráveis.
Casy, que lidera uma greve que pedia salários mais dignos, denunciando a
exploração e a injustiça, acaba, em consequência das suas palavras, por ser abatido
enquanto fugia das autoridades que procuravam desmantelar a reunião daqueles
homens em luta (As Vinhas da Ira, 01:14:40 até 01:35:28).
Quase no final, e numa das mais belas cenas do filme, Tom
Joad (Henry Fonda), num diálogo antológico
com a sua mãe, Ma Joad (Jane Darwell), compreende finalmente as
palavras de Casy e reconhece no seu discurso uma manifestação da
verdade, e assume ele próprio levar as suas ideias por diante, anunciando a sua
vida de luta a partir daquele momento em que ele próprio se encontra em fuga (As Vinhas da
Ira, 01:52:20 até 01:59:04).
Tom Joad, o “filho pródigo” que novamente
tem que partir, abandonando a família para a proteger e para se salvar a si
próprio, mostra-nos com toda o ânimo a afirmação do espírito humano numa luta
universal contra as forças que procuram derrubá-lo. Forças que incluem o
próprio homem, através da sua condição subjetiva do medo, da dúvida e da
falta de esperança (o homem que causa mal a si mesmo), bem como a opressão
material e objetiva, exercida nas estruturas sociais (o homem que causa mal a
outro homem).
Casy foi o companheiro que lhe anunciou (parresiasticamente) a
verdade.
Nada mais "apropriado" para recuperar a velha parrésia dos gregos clássicos do que
um relatório do FMI, cuja única verdade que nos transmite é precisamente aquela que procura esconder: a de que os governos do
ocidente já deixaram de ser democracias representativas, são uma
aristocracia financeira, articulada globalmente nos principais estados.
Bibliografia
Michel
Foucault, O governo de si e dos outros, Curso no Collège de France (1982-1983
), Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2010
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