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sexta-feira, 14 de junho de 2013

O dizer verdadeiro: Casy ainda mora aqui?


As Vinhas da Ira (John Ford, 1940)
 
O tema da parrésia (parrhēsía, palavra original: παρρησία) aparece pela primeira vez em Eurípides (ca. 480 a.C. - 406 a.C.), nas Suplicantes, sendo um tema presente no mundo grego (em “Isócrates, Demóstenes, Políbio, Filodemo, Plutarco, Marco Aurélio, Máximo de Tiro, Luciano, etc.), encontrando-se novamente no fim da Antiguidade (na espiritualidade cristã, em São João Crisóstomo, por exemplo)”. (Foucault: 2010, p. 46)

Etimologicamente significa “dizer tudo” (“pan”, todo) e “discurso” (“rhésis”) e quer dizer “franqueza”, “coragem de dizer a verdade”, “falar livremente”. É um tipo de atividade verbal na qual aquele que fala tem uma relação específica com a verdade.
 

O parrésico, o que diz a verdade, tem o benefício da credibilidade em virtude da sua atitude ética e coragem, pois ao manifestar a sua palavra, fá-lo com risco confrontando o poder. Ele é sempre menos poderoso do que aquele a quem dirige a sua palavra; a parrésia vem “de baixo” e dirige-se a alguém que está “em cima”, por essa razão, quando um dirigente, um professor ou um pai critica, não faz uso da parrésia.

“(…) a parrésia é a ética do dizer-a-verdade, no seu ato arriscado e livre.  O parrésico, é o homem verídico, aquele que tem a coragem de arriscar o dizer-a-verdade num pacto consigo mesmo, precisamente na medida em que é o enunciador da verdade.” (Foucault: 2010, p. 64)

O parrésico não é um profeta, não é um sábio, nem é um técnico. O profeta, como o parrésico, é alguém que diz a verdade, mas não fala em nome próprio, diz em geral, a palavra de Deus, uma verdade que vem de outro lugar; O sábio diz em seu próprio nome, mas a sua palavra pode ser enigmática e deixar aquele ao qual se dirige na ignorância, além disso, o sábio não é forçado a falar, nada o obriga a manifestar a sua sabedoria, de resto, um sábio é por norma, um ser silencioso ou que usa a fala de forma parcimoniosa; o dizer do técnico é a terceira modalidade do dizer verdadeiro que se opõe à parrésia, na medida em que se trata de um discurso sobre o saber-fazer que implica uma prática e não apenas a teoria, e, para além disso, a transmissão desse saber não implica nenhum risco, pelo contrário, está legitimada pela tradição.

O parrésico não diz em nome de Deus, da sabedoria ou da técnica. Diz em nome de um ethos, a sua relação com a verdade é fundamental e dizê-la é um dever perante os outros e perante si próprio.

 
No filme As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, John Ford, 1940), Casy (John Carradine), o ex-pregador que perdera a vocação é o homem que pensa, reflete e diz a injustiça da condição dos trabalhadores agrícolas que, forçados a abandonar as suas casas e terras no estado de Oklahoma, durante a Grande Depressão de 1929, rumam em direção ao Oeste, deambulando de um acampamento para outro e trabalhando por salários miseráveis. Casy, que lidera uma greve que pedia salários mais dignos, denunciando a exploração e a injustiça, acaba, em consequência das suas palavras, por ser abatido enquanto fugia das autoridades que procuravam desmantelar a reunião daqueles homens em luta (As Vinhas da Ira, 01:14:40 até 01:35:28).

Quase no final, e numa das mais belas cenas do filme, Tom Joad (Henry Fonda), num diálogo antológico com a sua mãe, Ma Joad (Jane Darwell), compreende finalmente as palavras de Casy e reconhece no seu discurso uma manifestação da verdade, e assume ele próprio levar as suas ideias por diante, anunciando a sua vida de luta a partir daquele momento em que ele próprio se encontra em fuga (As Vinhas da Ira, 01:52:20 até 01:59:04).

Tom Joad, o “filho pródigo” que novamente tem que partir, abandonando a família para a proteger e para se salvar a si próprio, mostra-nos com toda o ânimo a afirmação do espírito humano numa luta universal contra as forças que procuram derrubá-lo. Forças que incluem o próprio homem, através da sua condição subjetiva do medo, da dúvida e da falta de esperança (o homem que causa mal a si mesmo), bem como a opressão material e objetiva, exercida nas estruturas sociais (o homem que causa mal a outro homem).
Casy foi o companheiro que lhe anunciou (parresiasticamente) a verdade.


Nada mais "apropriado" para recuperar a velha parrésia dos gregos clássicos do que um relatório do FMI, cuja única verdade que nos transmite é precisamente aquela que procura  esconder: a de que os governos do ocidente já deixaram de ser democracias representativas, são uma aristocracia financeira, articulada globalmente nos principais estados.


Bibliografia
Michel Foucault, O governo de si e dos outros, Curso no Collège de France (1982-1983 ), Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2010

 

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