Falar para um candeeiro...

terça-feira, 11 de junho de 2013

"Senti de repente uma coisa parecida com ternura"


Gérard Castello Lopes


Um destes dias enquanto passeava o meu cão por um parque, seguia à minha frente um homem idoso, também ele acompanhado por um animal, uma pequena cadela rafeira. O mini rádio portátil, que segurava numa das mãos, ia espalhando pelo ar o que parecia ser um relato de futebol.

O homem, de pequena estatura, que ia caminhando à minha frente, usava um casaco de inverno, grande, velho e castanho, mais ou menos da cor da pequena cadela.

Enquanto ele seguia à minha frente, lembrei-me de Pessoa e daquele homem em que ele próprio reparou há muitos anos atrás enquanto descia uma rua de Lisboa:


“Descendo hoje a Rua Nova do Almada, reparei de repente nas costas do homem que a descia adiante de mim. Eram as costas vulgares de um homem qualquer, o casaco de um fato modesto num dorso de transeunte ocasional. Levava uma pasta velha debaixo do braço esquerdo, e punha no chão, no ritmo de andando, um guarda-chuva enrolado, que trazia pela curva na mão direita.
Senti de repente uma coisa parecida com ternura por esse homem. Senti nele a ternura que se sente pela comum vulgaridade humana, pelo banal quotidiano do chefe de família que vai para o trabalho, (...) pela naturalidade animal daquelas costas vestidas.”

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

É a luz da vida como ela é, sem o brilho intenso das grandes narrativas e, por isso mesmo, mais difícil de compor. Uma pequena luz que se esconde nos gestos e recantos do quotidiano, nas frases simples e nos pequenos silêncios que emergem, não para serem mostrados num palco, mas simplesmente para irem surgindo à nossa frente, de uma forma breve e serena, com a mesma naturalidade com que a seguir  se desvanecem.

A vida, como ela é.


1 comentário:

  1. http://candeeirodovasco.bllogspot.po/13 de junho de 2013 às 11:31

    Mais uma vez "material" de grande qualidade e sensibilidade. Continua assim! Para o próximo ano letivo bem me vai servir. Bjinho

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