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sábado, 16 de janeiro de 2016

“The walk to paradise garden” ou a construção do delírio

W. Eugene Smith, “The walk to paradise garden” (1946)


"Houve compaixão" no julgamento do britânico que quis salvar Bahar de Calais



Este voluntário britânico, que inclusivamente fechou a sua empresa de limpezas de carpetes para poder ajudar os refugiados, foi preso quando tentava transportar uma criança afegã escondida no carro, a pedido do pai desta, que pretendia que a criança fosse entregue a uns familiares que residiam no Reino Unido. À entrada do túnel da Mancha, a criança foi descoberta e entregue novamente ao pai. Foi devolvida à miséria do mundo, onde se encontram milhares de outros refugiados à espera de uma oportunidade para entrar no Reino Unido.

Com a defesa a pedir a absolvição, lembrando que o voluntário não recebeu qualquer dinheiro e com uma petição assinada por 170 mil pessoas pedindo também a sua absolvição, a procuradoria revelou "compaixão" e condenou o britânico a uma multa de mil euros por transportar uma criança sem respeitar as normas de segurança rodoviária (!).

Esta história relembra a realidade de todos os dias. O capitalismo funciona baseado numa axiomática cuja regra intocável é obter lucro, por isso desfaz todos os códigos (sagrado, tradições, convenções, normas, valores… ligados à terra, família, Estado…). Começar com dinheiro e acabar com dinheiro é, de facto, uma operação que não se pode exprimir em termos de códigos.
Assim, a axiomática do capital descodifica e desterritorializa as relações sociais de tal forma que não se importa propriamente com rituais sociais, projetos e ideologias políticas, ou mesmo com o tipo de grupo que gere o Estado (liberal, social-democrata ou fascista).
Mas, ao mesmo tempo, o capitalismo requer agrupamentos sociais para poder funcionar, para impor limites, estabelecer medidas e métricas, para regular os fluxos “selvagens”. Precisa, portanto, de recodificar os códigos desfeitos. E “tudo volta a aparecer - os Estados, as pátrias, as famílias.” (Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo)

É esta recodificação social, completamente vazia e desterritorializada, que cria o tipo de justiça que condenou este britânico que salvava uma criança do horror da devastação, da guerra, da fome a ser condenado porque não a transportava com cinto de segurança.


Perante a tragédia, não a compaixão mas o cinismo. Não o cinismo desta ou daquela procuradoria, mas um cinismo intrínseco a uma sociedade que constrói o seu próprio delírio. 





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