W. Eugene Smith, “The walk to paradise garden” (1946)
"Houve compaixão" no julgamento do
britânico que quis salvar Bahar de Calais
Este voluntário britânico, que inclusivamente
fechou a sua empresa de limpezas de carpetes para poder ajudar os refugiados, foi
preso quando tentava transportar uma criança afegã escondida no carro, a pedido
do pai desta, que pretendia que a criança fosse entregue a uns familiares que
residiam no Reino Unido. À entrada do túnel da Mancha, a criança foi descoberta
e entregue novamente ao pai. Foi devolvida à miséria do mundo, onde se
encontram milhares de outros refugiados à espera de uma oportunidade para
entrar no Reino Unido.
Com a defesa a pedir a absolvição, lembrando
que o voluntário não recebeu qualquer dinheiro e com uma petição assinada por
170 mil pessoas pedindo também a sua absolvição, a procuradoria revelou "compaixão" e condenou o britânico a uma multa de mil euros por transportar uma
criança sem respeitar as normas de segurança rodoviária (!).
Esta história relembra a realidade de todos os dias. O capitalismo funciona baseado numa
axiomática cuja regra intocável é obter lucro, por isso desfaz todos os códigos
(sagrado, tradições, convenções, normas, valores… ligados à terra, família, Estado…). Começar com dinheiro e acabar com dinheiro é, de facto, uma operação
que não se pode exprimir em termos de códigos.
Assim,
a axiomática do capital descodifica e desterritorializa as relações sociais de
tal forma que não se importa propriamente com rituais sociais, projetos e
ideologias políticas, ou mesmo com o tipo de grupo que gere o Estado (liberal, social-democrata ou fascista).
Mas, ao mesmo tempo, o capitalismo
requer agrupamentos sociais para poder funcionar, para impor limites,
estabelecer medidas e métricas, para regular os fluxos “selvagens”. Precisa,
portanto, de recodificar os códigos desfeitos. E “tudo volta a aparecer - os
Estados, as pátrias, as famílias.” (Deleuze e Guattari, O Anti-Édipo)
É esta recodificação social,
completamente vazia e desterritorializada, que cria o tipo de justiça que
condenou este britânico que salvava uma criança do horror da devastação, da guerra,
da fome a ser condenado porque não a transportava com cinto de segurança.
Perante a tragédia, não a compaixão
mas o cinismo. Não o cinismo desta ou daquela procuradoria, mas um cinismo intrínseco a uma sociedade que
constrói o seu próprio delírio.
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