“A Lagarta e Alice olharam-se durante algum
tempo em silêncio. Por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca falando-lhe numa
voz lânguida e sonolenta:
- Quem és tu?- perguntou a Lagarta.
Esta não era, certamente, a melhor
maneira de iniciar uma conversa. Alice respondeu envergonhada:
- Presentemente nem eu sei muito bem
quem sou... Hoje de manhã, quando me levantei, sabia muito bem quem era, mas
desde então tenho sofrido várias transformações.- O que queres dizer com isso? Explica-te – exigiu a Lagarta muito séria.
- Eu não me posso explicar porque, está a ver, eu não sou eu.
Não, não posso ver - replicou a Lagarta.
- Receio não poder explicar melhor.”
Nesta
passagem de Alice no país das maravilhas,
Lewis Carroll remete para uma questão fundamental: a construção do sujeito e a
quantidade de vezes que mudam os modos de ser desse sujeito.
A
construção da subjetividade está entrelaçada numa rede de relações (familiares, profissionais, sociais), de práticas
discursivas e de outras materialidades que fazem parte das coisas para “se
estar no mundo” e que atravessam o visível e o simbólico (como os meios de
comunicação social, a ciência, a arte, os artefactos com todo o tipo de objetos), produzindo efeitos de verdade ou de
normalidade
A
partir do momento em que se classifica um tipo de sujeito como ´normal´,
elege-se apenas um tipo de subjetivação, num efeito de generalização e de
naturalização. Desta forma, aquilo que é resultado de uma produção, tende a ser
essencializado, cristalizado, submetendo todos à normalização. Aquilo que
escapa a este efeito é o ´diferente´, é o ´outro´.
Mas
a ‘diferença’ tem que ser integrada na ordem ‘normal’. É importante
problematizar como se constitui o sujeito no interior de um jogo de
materialidades para poder “estranhar” os efeitos produzidos na fabricação dos
sujeitos, que se tecem em práticas imersas em relações de saber-poder.
“Alice pegou no leque
e nas luvas e, como estava muito calor abanou-se enquanto dizia:
- Meu Deus, meu Deus!
Como tudo hoje é estranho! Ontem, tudo parecia normal. Será que sofri alguma
transformação durante a noite? Deixa-me ver… Será que era a mesma quando me
levantei de manhã? Acho que já me sentia um pouco diferente. Mas, se não sou a
mesma, quem diabo sou? Ah, aí é que está o grande problema…”
A
luta de todos nós é como esta estranha luta de Alice: a de continuar a desvendar o grande mistério que
envolve o modo como cada um de nós é produzido.
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