Falar para um candeeiro...

domingo, 19 de julho de 2015

O lugar de vítima apenas faz reconhecer essa condição

Edouard Debat-Ponsan, “Uma manhã fora das portas do Louvre” (1800).
A rainha de França, Catarina de Medici, passando calmamente entre as vítimas de 1572,
o Dia do Massacre de S. Bartolomeu
 
 
 
“Os alemães e os seus acólitos tinham um programa de humilhação, com um acordo que foi afinal escrito pelo Syriza a branco, para eles o reescreverem a preto. O acordo com a Grécia, na realidade um diktat, só tem uma lógica: obrigar os gregos a engolir tudo o disseram que não desejavam.” (Público, Pacheco Pereira, aqui)
 
 
Participei com um artigo para um livro, recentemente publicado, intitulado “De Pé, Ó Vítimas da Dívida!” (com a edição do Le Monde Diplomatique deste mês, leitura que naturalmente recomendo). Como já tive oportunidade de dizer, só concordo com parte do título: “De pé”. Com a outra metade, a das “vítimas”, tenho algum desacordo, embora bastante mitigado pela referência explícita ao velho hino.
 
E estou em desacordo por razões muito parecidas com aquelas que sinto quando leio  palavras como as de Pacheco Pereira, ou outras que tais, palavras aparentemente pró-Grécia e que se abatem com toda a força contra os “alemães e os seus acólitos”.
 
Pois bem, considero que, num certo sentido, se abatem ainda mais violentamente contra os próprios gregos, uma vez que esse mesmo discurso os reduz à maior das impotências: à condição de humilhados, de expropriados, numa palavra à condição de vítimas. Os pobres gregos!
Não estou a dizer que não que não existiu a intenção de humilhação da Alemanha, porque essa intenção existiu. Estou antes a dizer que a capacidade política de enfrentar e rejeitar qualquer tentativa de humilhação, requer que a “vítima” não aceite colocar-se justamente no papel (de humilhado) que o agressor lhes reservou.
 
Ser vítima consiste precisamente na maior expropriação política. Uma vítima não se pode constituir como sujeito político. Tudo aquilo que uma vítima faz, enquanto tal, é pedir proteção ou a clemência do (e ao) seu agressor. Não há nada mais penoso, não há nada que roube mais a potência de agir do que isto. A fala da vítima não se ouve, “não as ouvimos enquanto elas forem apenas  tomadas na condição dos que “não são contados”: um pobre fala pobre, um imigrante fala imigrante, ele apenas faz reconhecer a sua condição. Espera-se que as vítimas se manifestem como vítimas, que os pobres se manifestem como pobres.” (Ranciére, “O filósofo da partilha”, Entrevista à Revista Ípsilon (06/04/2007), p. 28)
 

Gayatri Spivak colocou esta questão em termos certeiros: “pode o subalterno falar?” Num ensaio com o mesmo nome, Spivak refira-se a uma subalternidade específica: a mulher pobre negra, e nessa condição, uma subalternidade triplamente implicada na pobreza, porque mulher, porque pobre e porque negra. Segundo ela, entre os diferentes lugares de fala ocupados pelo sujeito, a figura da mulher, pobre e negra, “desaparece”. O subalterno não pode falar. A condição de vítima, na sua impotência, é a de uma subalternidade política.

 
 
 
 

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