Falar para um candeeiro...

domingo, 14 de junho de 2015

“Obrigada”, “obrigada”, ”obrigada”… Sobre a gestão do agradecimento

 

Há tempos um aluno perguntava se devemos, ou não agradecer aos condutores que param na passadeira para deixarem os peões atravessar.

À primeira vista parece uma questão menor. Mas não é. É até uma questão bastante interessante e não apenas para alguém, como eu, que anda todos os dias a pé pelas ruas da cidade de Lisboa. É mais do que isso: trata-se compreendermos a nossa própria gestão moral do agradecimento.

Àquela pergunta, alguns alunos responderam imediatamente que não agradeciam porque se tratava de uma obrigação dos condutores darem prioridade aos peões. Outros diziam que, mesmo tratando-se de uma obrigação, agradeciam. Outros não só não agradeciam mas, numa espécie de “guerrilha urbana” atravessavam na passadeira com um "passo lento" propositado, só para chatear os condutores.
 
Primeira questão: será mesmo uma “obrigação”?

É bom ter presente que atravessar numa passadeira não é um seguro de vida porque há aí também se verificam atropelamentos.

Mas vamos ao Código da Estrada. O artigo 103º “Cuidados a observar pelos condutores”, refere:

“1. Ao aproximar-se de uma passagem de peões assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.


2. Ao aproximar-se de uma passagem para peões, junto da qual a circulação de veículos não está regulada nem por sinalização luminosa nem por agente, o condutor deve reduzir a velocidade e, se necessário, parar para deixar passar os peões que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem.


Portanto, não se fala aqui em qualquer “prioridade” dos peões e mesmo assim o condutor só “deve reduzir a velocidade” nas passadeiras em que há semáforos ou agentes! Numa “simples” passadeira não há qualquer obrigação. Quem diria? A discussão já valeu para fazer cair um dado (errado) do senso comum.

 
A passadeira destina-se, apenas, a indicar o local onde deve ser efetuada a travessia, sempre que exista uma passadeira a menos de 50 metros de distância. (“Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.”, Artigo 101º - “Atravessamento da faixa de rodagem”, ponto 3). 

 
E os peões têm ainda outras obrigações: “os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.” (artigo 101º - “Atravessamento da faixa de rodagem”, ponto 1). 

E mais: aqueles meninos que atravessavam com um "passo lento", devem ter algum cuidado, pois “o atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.” (artigo 101º, ponto 2). Isto é, o agente pode puxar do bloco de multas e pregar logo ali uma “coima de € 10 a € 50”. Podem estar imunes a um par de estalos do condutor, por muita vontade que este tenha, mas podem não se livrar de uma coima.
 
Mas voltemos ao agradecimento. Eu pertenço ao grupo que agradece à larguíssima maioria dos condutores que param na passadeira. Não vejo nada de errado nisso, pelo contrário.

Mas agora pensando bem, devo dizer que agradeço com condescendência, isto é, agradeço com a superioridade moral de quem agradece quando os outros lhe fazem uma obrigação (antes de eu própria saber que afinal não é uma obrigação).

É assim que muitas vezes agradecemos. Outras vezes, noutros situações diferentes, agradecemos ativados por uma espécie de piloto automático da boa educação ou das regras de convivência, como quando vou comprar pão de manhã e não saio de lá sem antes dizer “obrigada”.

Obrigada, obrigada, obrigada... quantas vezes diremos esta palavra por dia. Se fizemos essa contabilidade, o número não deve ser pequeno.
 
Comecei a tentar puxar pela memória para descobrir a última vez que tinha sido “arrebatada” por um sentimento de gratidão, que não fosse nem formal nem condescendente (excluindo também o agradecimento de presentes de aniversário ou de outras datas).

Pensei, pensei... Não foi fácil! Mas descobri algo que verdadeiramente agradeço: os presentes dos alunos. Aqueles presentes que são dados de uma forma desinteressada, quando já nem sequer são nossos alunos. Uma fotografia, um mail (todos guardados “a sete chaves” numa pasta do Gmail), e mesmo os vídeos, como um absolutamente fantástico que há tempos recebi, cujo conteúdo a modéstia impede-me de revelar, mas que está bem guardado como uma espécie de repositório de motivação (e auto-estima) para quando for preciso.

Recebo como gratidão um presente de alguém que conhece como ninguém o nosso trabalho, com quem estivemos durante um, dois ou três anos, muitas vezes debaixo da inevitável tensão própria de uma relação formal que ainda por cima supõe a avaliação.

Aprecio que alguém se dê ao trabalho de uma demonstração totalmente desinteressada de gratidão. Só posso agradecer. E agradeço com gratidão.




2 comentários:

  1. Boa tarde Professora! Queria informar-lhe que a sua (antiga) aluna Mariana Gomes agradece desinteressadamente com gratidão o seu interesse pelos seus alunos e, principalmente, pelo incentivo ao uso da razão de cada um deles, e informo também que me encontro publicamente a seguir o seu blog, já que decidi criar o meu cantinho também! (Caso queira dar uma vista de olhos: ochapeudovilaca.blogspot.pt). Espero que esteja a ter umas boas férias! "Boa filosofia"!

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  2. Querida Mariana, que surpresa agradável. Já vi o teu blog. Vou segui-lo, será um prazer ler os teus textos, como foi ler todos os teus trabalhos.
    E como vês, não me esqueço de vocês e quanto ao incentivo para usarem a razão, essa é a melhor recompensa que poderei obter. Boa filosofia.

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