Fotografia de Izis Bidermans
Contra uma visão tradicional
– e essencialista - do sujeito, colocado desde a "transcendência" da alma até à "naturalidade" do indivíduo, visão de que ainda hoje somos
largamente herdeiros, o sujeito não está dado, mas faz-se, constitui-se nos
diferentes contactos e encontros vividos com o outro, que pode ser o outro
social, mas também a natureza, os acontecimentos, as invenções, enfim, aquilo
que produz efeitos nos “modos”, na maneira de viver, efeitos que se difundem
por meio de múltiplos componentes de subjetividade que estão em circulação no campo
social: “o sujeito constitui-se no dado” (Deleuze, 2001, p. 98). Não há
“essências”. Parafraseando Fernando Pessoa se “o mistério das coisas é as
coisas não terem mistério nenhum”, assim também o segredo da essência do
sujeito é o sujeito não ter essência.
A mesma ideia (a
ausência de uma essência) vale também para a constituição do sujeito na
história e, como tal, também se aplica ao conceito marxista de “classe”1:
“Como um grupo se transformará, como recairá na história, eis o que nos impõe
um perpétuo “cuidado”. Já não dispomos de um proletário a quem bastaria tomar
consciência.” (Deleuze, 2008, p. 213)
Naturalmente que o
contacto, e o “cuidado”, com o dado,
com o permanente fluxo de acontecimentos, provoca uma série de estranhamentos,
perturbações e angústias, que forçam o sujeito a questionar-se e a produzir
sentidos sobre uma experiência que, com mais ou menos intensidade, desorganiza
um modo de viver até então conhecido. Nesse movimento, parte das experiências
passam a compor o homem, dando-lhe uma forma (provisória). Assim, ele pode ser
percebido como uma existência particular e histórica, à medida que desenha
territórios subjetivos enquanto recomposições provisórias de forças.
A forma como Deleuze
analisa a produção do sujeito remete para um processo na constituição de si e
nas variações produzidas pelos encontros intensivos com o outro, um processo
vivo e, portanto, provisório, uma vez que o sujeito está sempre exposto à ação
de novas forças e acontecimentos.
Neste processo de
produção da subjetividade comparecem e participam uma heterogeneidade de
elementos em presença no contexto social. Estes elementos podem ser de ordem
linguística (instâncias humanas inter-subjetivas, manifestadas no discurso), institucional (interações institucionais de diversa natureza, como
a família, religião, comunidades tradicionais, embora estes agentes de
subjetivação hoje, e cada vez mais, se encontrem fragilizados e
desterritorializados), dispositivos maquínicos (como a tecnologia, os meios de
comunicação) e também a ciência, o trabalho, a informação, o capital, enfim, uma
lista vasta de elementos permanentemente reinventados e postos em circulação na
vida social.
Estes componentes
ganham importância coletiva e são mobilizados de diferentes maneiras no
quotidiano de cada um. Podem ser modificados, reinventados ou abandonados, num
movimento de misturas e conexões, difundindo-se como fluxos que percorrem, sem
parar, o campo social. Por isso, essa produção de subjetividades, da qual o
sujeito é um efeito provisório, mantém-se em aberto, uma vez que cada um, ao
mesmo tempo em que acolhe os componentes de subjetivação em circulação, também
os emite, fazendo dessas trocas uma construção coletiva viva. Não há
unificação, não há centro, mas trocas, movimentos, diferenças. Logo, “indivíduo-grupo-máquina-trocas
múltiplas” oferecem ao sujeito possibilidades diversificadas de recompor um
território existencial, e até de sair (ou não) dos seus impasses repetitivos,
através de processos "singularização".
NOTAS
1 “As próprias classes
sociais (…) não têm o mesmo movimento, nem a mesma repartição, nem os mesmos
objetivos, nem as mesmas maneiras de lutar”. (Deleuze e Guattari, 1999, p. 83)
REFERÊNCIAS
Deleuze,
Gilles e Guattari, Félix (1999). Mil
platô, Capitalismo e esquizofrenia Vol. 3 São Paulo: Editora 34
Deleuze,
Gilles (2001). Empirismo e subjetividade. Ensaio sobre a natureza
humana segundo Hume.
São Paulo, Editora 34
Deleuze, Gilles (2008).
Conversações, 1972-1990. S. Paulo: Editora 34 (7ª edição)
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