Pollard Willows (Vincent van Gogh)
Nos espaços
públicos de discussão, a dívida é habitualmente apresentada como uma questão de
natureza económico-financeira, num debate que se tem concentrado sobretudo em
aspetos técnicos.
Mas, sendo mais do que uma questão técnica, como
compreender a dívida como uma realidade constituída por múltiplas superfícies, por “mille plateaux” que ligam camadas sobrepostas em patamares distintos uns dos outros mas com passagens
entre si?
Para uma compreensão da dívida
“para além
dos números”, existem diferentes patamares
que constituem vias de acesso para uma compreensão deste fenómeno, como os 5
caminhos que a seguir referimos:
1. A genealogia da dívida, o seu processo de emergência nos longínquos impérios agrários da
Babilónia e do Egito há cerca de 5000 anos, onde surgiu pela primeira vez uma
forma-dívida que, de certa maneira, se prolonga até hoje.
Este caminho
permite compreender em que tipo de sociedades emergiu historicamente a dívida e
de que forma uma relação social de dívida entre pessoas de uma mesma comunidade
deu lugar a uma relação despersonalizada e quantificada.
2. A arqueologia
do mercado na modernidade liberal do século XIX e como essa forma-mercado
viria a dominar toda a sociedade, numa intensificação e difusão dos seus
mecanismos.
Uma
abordagem a este nível permite aceder à compreensão do amplo processo de
mercantilização que se desenvolveu nas sociedades humanas e que veio
desestruturar a lógica da reciprocidade na troca. Trata-se de entender de
que forma, no século XIX, o “mercado” ultrapassou formações económicas
anteriores e qual o impacto dessa transformação na dívida.
3. O processo
de reorganização do capital a partir da década de 70 do século
XX, designadamente através da desregulamentação financeira e da revolução
“antiburocrática” no desmantelamento de regimes fechados de produção e na
regulação técnica de formas democráticas de governo.
Situar a
discussão neste patamar fornece elementos para a compreensão de um amplo
conjunto de transformações a nível político, económico e social que fez
expandir o endividamento público e privado a partir da década de 70.
4. As transformações
em zonas de subjetivação e não apenas no campo da produção, uma vez que o
sujeito (endividado) é atravessado por um conjunto de instâncias e forças que
moldam e estruturam a sua subjetividade.
Esta
superfície de análise possibilita pensar sobre o conjunto de forças de
modelação que atravessam o sujeito devedor, exercendo sobre ele um controlo
para que pague as suas dívidas. Trata-se, portanto, de discutir como se
constitui uma subjetividade devedora ou, mais genericamente, como se
estruturam os processos de subjetivação.
5. Por último, a prática discursiva que organiza o
consenso, enquanto entendimento ou “política geral” de verdade também
oferece um importante caminho de acesso à compreensão da dívida.
A este nível colocam-se questões sobre a forma como
falamos acerca da dívida, designadamente por que razão a dizemos desse modo e
não de forma diferente e se é possível dizer a dívida de outra forma.
A ligação
destes caminhos permite reconhecer a dívida como o verdadeiro motor económico e
subjetivo da sociedade contemporânea, isto é, como um instrumento de gestão
macroeconómica que instala um mecanismo de redistribuição de rendimentos, ao
mesmo tempo que funciona como um dispositivo de produção e controlo da
subjetividade, que atua transversalmente sobre (quase) toda a sociedade.
E haverá ainda outras
possibilidades para entender a dívida, que põem em causa as
"inevitabilidades" técnicas que têm confinado o caminho da discussão
a uma via de sentido único.