Falar para um candeeiro...

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Tílias, a sagração (do cheiro) da primavera

Tílias, pudéssemos guardar o seu cheiro como uma imagem numa fotografia…



Pouco ou nada percebo destas coisas da natureza, mas sei que para os finais de maio os deuses das pequenas coisas brindam-nos com uma exuberância: o perfume das tílias. Lisboa, tem épocas assim, em que as suas árvores nos enchem de tal modo que parece termos parado no tempo. As coisas de sempre, aqueles que se repetem, têm este poder.

Todos os anos, por esta altura, as tílias estão em flor! A sua floração não dura muito tempo e, por isso, numa das mais intensas experiências da primavera na cidade, procuro o cheiro das inúmeras flores dessas árvores em certas praças e ruas de Lisboa, como aquela em que moro. Apetece ficar ali parada na espessura daquele cheiro, que ainda é mais intenso nas noites quentes.

Cresci entre pitangueiras, coqueiros e mangueiras e desconhecia estas árvores. Mas desde que as conheço, o seu cheiro tem uma propensão para se fixar na minha memória, tal é a sua generosidade olfativa.

Diz a sabedoria popular que o chá de tília é um remédio que adormece o corpo e acalma o espírito. Mas por estes dias não apetece chá, só lá mais para o outono, nos primeiros dias de frio. Aí já não poderei culpar as tílias pelo facto continuar a enervar-me com as coisas de que não gosto e que, por isso, me chateiam como aquele primeiro-ministro do PREC que ficava muito enervado quando era sequestrado porque não gostava nada que o sequestrassem. Aquele que dizia que “o povo é sereno.”

Será do chá de tília?
 
 
 
 
 



domingo, 24 de maio de 2015

O olhar libidinoso de Brejnev, talvez capaz de derreter a guerra fria

Jill St. John, Brejnev e Nixon


Estamos em 1973, na era da guerra fria, um dos homens da fotografia dirige metade do mundo, o outro controla a outra metade.

São os dois homens mais poderosos da geopolítica mundial, de tal maneira que chegamos a pensar que no seu infinito poder haverá ali um qualquer sopro divino capaz de ocultar uma essência sagrada e inatingível.

Mas não. A ideia de que eles são inacessíveis é falsa e a de que são sagrados é até risível.

Bem no centro da fotografia, onde também se vê Nixon à direita, Leonid Brejnev  está junto à piscina da casa particular do presidente americano em San Clemente, na Califórnia. Aí o convidado soviético lança um olhar lascivo a uma mulher que passa à sua frente. O olhar libidinoso de Brejnev  é o de um homem “acessível, “demasiado humano”, de quem está em visita de Estado mas podia estar no recreio do liceu.

O olhar do líder soviético, capaz de derreter a guerra fria, é dirigido à atriz Jill St. John que dois anos antes fora a principal Bond girl no filme "007 - Os diamantes são eterno" e que ali estava na qualidade de namorada de Henry Kissinger. O todo-poderoso conselheiro de Estado era, portanto, o namorado da sex-symbol.

Brejnev  haveria de nos brindar com outra fotografia icónica aquando daquele célebre beijo na boca do Presidente da República Democrática Alemão, em 1979, por altura do 30º aniversário da RDA. O não menos libidinoso Erich Honecker exibia nessa mesma fotografia um Rolex dourado, luxo que o próprio Brejnev  também haveria de ostentar numa outra fotografia sua, com um ar galante e desportivo, se assim conseguirmos imaginar o camarada Leonid.

E cada um com o seu Rolex pregavam o comunismo para as massas.

E assim perante a concupiscência, como diriam os gregos, pergunto se conseguiremos manter o vibrante desejo de transformação da estrutura do mundo ou será o mundo que acaba por transformar a estrutura do nosso desejo?

Fico nesta incerteza, uma dúvida porventura ainda mais eterna que os diamantes da Bond girl.
 
 
Brejnev e Honecker, momentos Rolex
 
 
 
 
 

sexta-feira, 22 de maio de 2015

A luz de Vermeer naqueles jacarandás

Jacarandás




Em maio aquela rua pouco iluminada pelo sol e com um habitual “timbre pardacento”, fica com a cor lilás dos jacarandás. Todos os anos por esta altura a rua vai-se transformando, desde os primeiros sinais da primavera até às copas floridas, numa metamorfose quase diária.
 
Por estes dias, uma imensidão de pequenas flores de cor lilás cai continuamente do alto das árvores e deposita-se no chão e nos carros, o que provavelmente contribuirá muito pouco para o já desgastado contento dos automobilistas, intimidados pela vigilância contínua dos técnicos do estacionamento daquela rua.
 
Mas este não é o meu caso, que, percorrendo a rua a pé, por ela subo – ou desço - mais lentamente, quase como se estivesse a admirar uma pintura que alguém colocou diante dos meus olhos. Na sua efemeridade, sei que este “quadro” não vai durar mais do que duas ou três semanas, o período em que as árvores de copas lilases libertam as suas flores sobre muitas ruas, avenidas, praças ou jardins de Lisboa, incluindo esta rua por onde passo diariamente.
 
Nesta altura do ano, a pouca luz habitual da rua lembra-me vagamente os interiores representados nos quadros do velho mestre holandês Johannes Vermeer com aquela luz perpassada e indireta que os ilumina.
O próprio universo das figuras humanas de Vermeer, que habitam esse interiores, como a mulher que despeja o leite, que toca um instrumento musical, que lê uma carta na presença da sua criada ou que borda meticulosamente um tecido ou ainda o astrónomo ou o geógrafo, são figuras também elas inundadas por uma luz difusa que mostra elementos da vida na simplicidade íntima do quotidiano doméstico das mulheres ou mesmo no mundo erudito dos homens entregues à ciência.
 
Há naqueles interiores uma suspensão do tempo, um silêncio quase palpável dos lugares comuns. É vagamente assim no eterno retorno lilás de maio, no espaço exterior daquela rua de Lisboa, cuja luz desvanecida descobre uma pequena essência na banalidade quotidiana.


 
 
 
 

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Epicuro e o desejo segundo a economia

 
"Estava eu numa aula de Economia e a professora ia-nos ajudando a fazer exercícios de preparação para o exame que aí vem. Estávamos a resolver um exame, em conjunto, de um qualquer ano que já passou e, enquanto eu pensava no que seria o meu almoço, algo me chamou a atenção. Um dos exercícios da prova estava relacionado com as despesas dos consumidores, estando estas divididas entre os vários tipos de bens de consumo. E não é que as despesas ligadas à cultura estavam indicadas como “supérfluas”?" 
Mariana, 11º ano

 
Na “Carta a Meneceu”, Epicuro, um filósofo grego, que começa por dizer que “nunca é demasiado cedo nem demasiado tarde para cuidar do bem-estar da alma”, apresenta uma classificação dos desejos ordenados em três tipos diferentes: os que são naturais e necessários para a felicidade, os que são naturais mas não são necessários e, finalmente, os que nem são naturais nem necessários.

 
Talvez os primeiro sejam os mais fáceis de exemplificar, como o desejo de comer e de beber, por exemplo. Os terceiros também não oferecem muitas dúvidas, tais como desejar pintar as unhas de azul ou comprar um casaco de peles de animais. Os segundos talvez sejam os mais complexos e difíceis de definir, pelo menos até recorrermos a um enunciado do serviço nacional de exame para efetuarmos uma escolha sobre o que devemos desejar para sermos felizes.
 
A economia considera a cultura supérflua. O senso comum, também. Não há aqui propriamente uma novidade, mas apenas a reafirmação de uma racionalidade esclarecida que dispensa aquilo que não é apolineamente “necessário”.
 
A arte, o imaginário, o mito seriam modos de expressão “supérfluos”, formas enganadoras para além de uma razão convencional que produz declarações positivas e abstratas acerca das coisas. Como se a ordem não fosse apenas concebível com a desordem, a luz com a escuridão, o som com o silêncio, o prazer com a dor… ou simplesmente como se a desordem, a escuridão, o silêncio, a dor não existissem, logo tudo o que lhes desse expressão seria supérfluo.
 
Muitos séculos depois de Epicuro, numa gravura - lindíssima - de Goya pode ler-se que “o sono da razão produz monstros”. Mas uma razão sempre desperta e vigilante, demasiado consciente de si mesma, produzirá também os seus próprios monstros.
 
Afinal, que devemos desejar para sermos felizes? Experimente a pegar numa caneta e numa folha de papel...
 
Talvez seja não seja tão difícil como parece.





segunda-feira, 18 de maio de 2015

Disneyficar a imaginação

Fotografia de Cartier Bresson

O império Disney comprou a Pixar, a Marvel e a LucasFilm por vários milhares de milhões de dólares.

Objetivos de mercado claros:
Pixar- aumentar o mercado dos desenhos animados e novas atrações de parques de diversão: apanhar o mercado das crianças;

Marvel – Novas personagens, mais filmes e novas séries televisivas: aumentar o alcance no público masculino;

Lucas Films – criar um universo Star Wars ainda mais alargado e promocional, mais trilogias e séries televisivas – apanhar um público adulto, senão mesmo de todas as idades.

A Disney sabe, como só ela sabe, que muito melhor do que agarrar a complexidade labiríntica da razão humana, perdida em argumentos e contra-argumentos, é dominar o universo do desejo e da imaginação.

Uniformizar, fragmentar, dispersar. Esvaziar a imaginação, montar e colar em série, criando a ilusão de que há apenas uma “gramática da fantasia”. Mergulhar a imaginação, um rio de correntes fortes, num lago de águas paradas.

Como se a nossa imaginação viva não fosse também parte do longo rio de Heraclito que flui sem parar e em cujas águas entramos e não entramos, queremos e não queremos, somos e não somos.

Conseguirá o mercado vampirizar a nossa imaginação? Ou as suas correntes fortes não se deixam amainar, nem sequer com o “dark side of the force”, com a força do monopólio?
 
 
 
 
 

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Se fosse fácil, seria fácil

Late for school, Balthus

Vídeo de 13 minutos de rapaz agredido por outros jovens gera onda de indignação (notícia aqui)


Na urgência, todos percebemos – e bem - que a vítima precisa de ajuda, mas poucos veem essa necessidade para o agressor. No entanto, só uma conjugação das duas partes pode promover a transformação da relação violenta.

Curiosamente este vídeo até desfaz a naturalização do binómio agressor-homem e vítima-mulher com a consequente vitimização feminina, uma vez que o agressor são figuras femininas e a vítima é aqui um rapaz.

 Aliás, pôr as coisas na perspetiva vítima-agressor já é colocá-las num binómio que não sei até que ponto conseguir incluir (para modificar) comportamentos construídos desde a infância em todas as esferas simbólicas, das “vítimas” e dos “agressores”.

Para que não existam dúvidas, estou absolutamente chocada com estas imagens! Como professora que lida com jovens há 20 anos, considero que temos que atuar e, de preferência, forma inequívoca. Mas vamos pedir o quê? Mais punição? Mais criminalização? Mais Estado? Estas relações não reafirmam velhas relações de poder, só que agora com a inversão dos termos?

Como desconstruir relações (violentas) de dominação? Será a violência apenas um fenómeno individual? A criminalização do agressor é sempre o caminho mais rápido. Gostava de acreditar que é também o mais eficaz, mas sinceramente tenho alguma dificuldade.

 
Se fosse assim tão fácil, seria fácil.





terça-feira, 12 de maio de 2015

Geração (não) espontânea

Construção da estátua em bronze do Marquês de Pombal,
destinada ao monumento da Rotunda em Lisboa, 1934.


"Aos seis anos já se aprende nas escolas como ser um empresário de sucesso" (aqui)



Para as gerações que nasceram depois da construção da ponte Vasco da Gama, é como se a ponte sempre tivesse existido. Uma sensação parecida com aquela que todos nós temos, por exemplo, relativamente à estátua do Marquês de Pombal na Rotunda. Sempre a vimos, logo sempre existiu. Nunca pensamos que houve uma altura na qual tudo aquilo que existe simplesmente não existia. Para a maior parte de nós, as coisas existem e pronto, passam a ser naturais.

O mesmo acontece com as pessoas que nasceram a partir da década de 70 do século XX, para as quais o mundo sempre foi neoliberal. O neoliberalismo é a coisa mais natural do mundo. Mas não é verdade. As pontes, as estátuas, o neoliberalismo são construções. O que significa que existem mas podiam não existir.

A própria economia de mercado não nasceu espontaneamente mas, pelo contrário, precisou de estruturas de apoio (legislação, instituições, códigos, teorias, conhecimentos…) sem as quais não seria possível a sua constituição.

Esta ideia contrapõe-se ao pressuposto de que a organização social é o resultado natural de interações entre indivíduos, que dão lugar ao desenvolvimento, também ele espontâneo, de estruturas sociais ordenadas num processo evolutivo no qual o expoente final e mais evoluído seria a própria economia de mercado. O que existiu foi um processo histórico de construção social de instituições com um determinado conteúdo, por mais que o credo liberal “ansiasse descobrir uma lei da sociedade tão universal como a lei da gravitação da natureza” (Polany, 2012, p. 273).

O homo economicus longe de ser o núcleo fundamental e originário da natureza foi o resultado de uma violenta institucionalização, que não só o integrou no mercado, mas também impôs que permanecesse nele, através de um contínuo e sustentado esforço político de disciplinamento e vigilância, para uma legitimação desse processo. As diferentes formas de integração não só deram lugar à produção e consumo de bens, como também à construção do próprio sujeito.

“Toda a subjetivação política é uma desidentificação, um arrancar à naturalidade de um lugar.” (Rancière, 1996, p. 48) É a possibilidade de desnaturalizar o enunciado “as coisas são como são”, que  interrompe e questiona toda a naturalidade de um lugar.

Hoje aos seis anos já se aprende nas escolas como ser um empresário de sucesso”. Mas não, não foi sempre assim, por mais que nos convençam da bondade e da naturalidade desta espécie de mundo.

 

 


Referências
Polanyi, Karl (2012). A grande transformação. Lisboa: Edições 70
Rancière, Jacques (1996). O desentendimento, política e filosofia. São Paulo: Editora 34

sábado, 9 de maio de 2015

O sujeito não é, faz-se

Fotografia de Izis Bidermans
 
 



Contra uma visão tradicional – e essencialista - do sujeito, colocado desde a "transcendência" da alma até à "naturalidade" do indivíduo, visão de que ainda hoje somos largamente herdeiros, o sujeito não está dado, mas faz-se, constitui-se nos diferentes contactos e encontros vividos com o outro, que pode ser o outro social, mas também a natureza, os acontecimentos, as invenções, enfim, aquilo que produz efeitos nos “modos”, na maneira de viver, efeitos que se difundem por meio de múltiplos componentes de subjetividade que estão em circulação no campo social: “o sujeito constitui-se no dado” (Deleuze, 2001, p. 98). Não há “essências”. Parafraseando Fernando Pessoa se “o mistério das coisas é as coisas não terem mistério nenhum”, assim também o segredo da essência do sujeito é o sujeito não ter essência.
 
A mesma ideia (a ausência de uma essência) vale também para a constituição do sujeito na história e, como tal, também se aplica ao conceito marxista de “classe”1: “Como um grupo se transformará, como recairá na história, eis o que nos impõe um perpétuo “cuidado”. Já não dispomos de um proletário a quem bastaria tomar consciência.” (Deleuze, 2008, p. 213)
 
Naturalmente que o contacto, e o “cuidado”, com o dado, com o permanente fluxo de acontecimentos, provoca uma série de estranhamentos, perturbações e angústias, que forçam o sujeito a questionar-se e a produzir sentidos sobre uma experiência que, com mais ou menos intensidade, desorganiza um modo de viver até então conhecido. Nesse movimento, parte das experiências passam a compor o homem, dando-lhe uma forma (provisória). Assim, ele pode ser percebido como uma existência particular e histórica, à medida que desenha territórios subjetivos enquanto recomposições provisórias de forças.
 
A forma como Deleuze analisa a produção do sujeito remete para um processo na constituição de si e nas variações produzidas pelos encontros intensivos com o outro, um processo vivo e, portanto, provisório, uma vez que o sujeito está sempre exposto à ação de novas forças e acontecimentos.
 
Neste processo de produção da subjetividade comparecem e participam uma heterogeneidade de elementos em presença no contexto social. Estes elementos podem ser de ordem linguística (instâncias humanas inter-subjetivas, manifestadas no discurso), institucional (interações institucionais de diversa natureza, como a família, religião, comunidades tradicionais, embora estes agentes de subjetivação hoje, e cada vez mais, se encontrem fragilizados e desterritorializados), dispositivos maquínicos (como a tecnologia, os meios de comunicação) e também a ciência, o trabalho, a informação, o capital, enfim, uma lista vasta de elementos permanentemente reinventados e postos em circulação na vida social.

 
Estes componentes ganham importância coletiva e são mobilizados de diferentes maneiras no quotidiano de cada um. Podem ser modificados, reinventados ou abandonados, num movimento de misturas e conexões, difundindo-se como fluxos que percorrem, sem parar, o campo social. Por isso, essa produção de subjetividades, da qual o sujeito é um efeito provisório, mantém-se em aberto, uma vez que cada um, ao mesmo tempo em que acolhe os componentes de subjetivação em circulação, também os emite, fazendo dessas trocas uma construção coletiva viva. Não há unificação, não há centro, mas trocas, movimentos, diferenças. Logo, “indivíduo-grupo-máquina-trocas múltiplas” oferecem ao sujeito possibilidades diversificadas de recompor um território existencial, e até de sair (ou não) dos seus impasses repetitivos, através de processos "singularização".
 
NOTAS
1 “As próprias classes sociais (…) não têm o mesmo movimento, nem a mesma repartição, nem os mesmos objetivos, nem as mesmas maneiras de lutar”. (Deleuze e Guattari, 1999, p. 83)
 
REFERÊNCIAS
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix (1999). Mil platô, Capitalismo e esquizofrenia Vol. 3 São Paulo: Editora 34
Deleuze, Gilles (2001). Empirismo e subjetividade. Ensaio sobre a natureza humana segundo Hume. São Paulo, Editora 34
Deleuze, Gilles (2008). Conversações, 1972-1990. S. Paulo: Editora 34 (7ª edição)


 
 
 
 
 

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Sardinha "Candeeiro do Vasco"



Com o meu obrigada ao Paulo Correia que me enviou esta fantástica sardinha.







5 caminhos para entender a dívida

Pollard Willows (Vincent van Gogh)



Nos espaços públicos de discussão, a dívida é habitualmente apresentada como uma questão de natureza económico-financeira, num debate que se tem concentrado sobretudo em aspetos técnicos.
Mas, sendo mais do que uma questão técnica, como compreender a dívida como uma realidade constituída por múltiplas superfícies, por mille plateaux” que ligam camadas sobrepostas em patamares distintos uns dos outros mas com passagens entre si?

Para uma compreensão da dívida “para além dos números”, existem diferentes patamares que constituem vias de acesso para uma compreensão deste fenómeno, como os 5 caminhos que a seguir referimos:

1. A genealogia da dívida, o seu processo de emergência nos longínquos impérios agrários da Babilónia e do Egito há cerca de 5000 anos, onde surgiu pela primeira vez uma forma-dívida que, de certa maneira, se prolonga até hoje.
Este caminho permite compreender em que tipo de sociedades emergiu historicamente a dívida e de que forma uma relação social de dívida entre pessoas de uma mesma comunidade deu lugar a uma relação despersonalizada e quantificada.

2. A arqueologia do mercado na modernidade liberal do século XIX e como essa forma-mercado viria a dominar toda a sociedade, numa intensificação e difusão dos seus mecanismos.
Uma abordagem a este nível permite aceder à compreensão do amplo processo de mercantilização que se desenvolveu nas sociedades humanas e que veio desestruturar a lógica da reciprocidade na troca. Trata-se de entender  de que forma, no século XIX, o “mercado” ultrapassou formações económicas anteriores e qual o impacto dessa transformação na dívida.

3. O processo de reorganização do capital a partir da década de 70 do século XX, designadamente através da desregulamentação financeira e da revolução “antiburocrática” no desmantelamento de regimes fechados de produção e na regulação técnica de formas democráticas de governo.
Situar a discussão neste patamar fornece elementos para a compreensão de um amplo conjunto de transformações a nível político, económico e social que fez expandir o endividamento público e privado a partir da década de 70.

4. As transformações em zonas de subjetivação e não apenas no campo da produção, uma vez que o sujeito (endividado) é atravessado por um conjunto de instâncias e forças que moldam e estruturam a sua subjetividade.
Esta superfície de análise possibilita pensar sobre o conjunto de forças de modelação que atravessam o sujeito devedor, exercendo sobre ele um controlo para que pague as suas dívidas. Trata-se, portanto, de discutir como se constitui uma subjetividade devedora ou, mais genericamente, como se estruturam os processos de subjetivação.

5. Por último, a prática discursiva que organiza o consenso, enquanto entendimento ou “política geral” de verdade também oferece um importante caminho de acesso à compreensão da dívida.
A este nível colocam-se questões sobre a forma como falamos acerca da dívida, designadamente por que razão a dizemos desse modo e não de forma diferente e se é possível dizer a dívida de outra forma.

A ligação destes caminhos permite reconhecer a dívida como o verdadeiro motor económico e subjetivo da sociedade contemporânea, isto é, como um instrumento de gestão macroeconómica que instala um mecanismo de redistribuição de rendimentos, ao mesmo tempo que funciona como um dispositivo de produção e controlo da subjetividade, que atua transversalmente sobre (quase) toda a sociedade.


E haverá ainda outras possibilidades para entender a dívida, que põem em causa as "inevitabilidades" técnicas que têm confinado o caminho da discussão a uma via de sentido único.