Rembrandt, Sagrada Família (Museu Hermitage)
De uma forma geral,
podemos situar a idealização e valorização da mulher-mãe, da maternidade, no
século XIX. A conceção da função parental como uma função especializada, para a
qual as mulheres estão especialmente aptas, é uma invenção relativamente
recente e que pode ser atribuída às transformações sociais decorrentes da
Revolução Industrial. No final do século XVIII, no mundo ocidental, era
essencial que se criassem cidadãos (a prole) que seriam, então, a riqueza do
Estado e do Capital. Garantir a sobrevivência das crianças constituía um novo
valor. Iniciava-se, então, um processo de incentivo às famílias (entenda-se, às
mães) para o cuidado desta fase que agora se tornara um problema: a infância.
Para cuidar das crianças,
os “sujeitos-infantis” eles próprios recém-descobertos, era necessário
convencer as mães a aplicarem-se em tarefas que até então estavam afastadas do
seu quotidiano, numa recodificação do seu papel em face da falência do velho
código familiar. A maternidade torna-se, então, valorizada e encorajada na
medida em que a “mulher-mãe” assume o papel de uma “agente” vital do biopoder.
E a separação entre espaço de trabalho, domínio do sexo masculino, e espaço
doméstico, domínio do sexo feminino, foi um dos fatores que contribuiu para que
a responsabilidade pela criação e educação das crianças fosse atribuída às
mães.
Foi também por esta altura
que, na Europa, aconteceram as aparições da Virgem Maria (geralmente a crianças
pobres), popularizando, assim, o culto a Nossa Senhora e restaurando a
importância da divindade feminina como objeto de adoração. A mulher deixava de
ser relacionada exclusivamente com a figura bíblica de Eva, astuta, perversa e
diabólica. Agora era também associada a Maria, a Virgem doce e ponderada, de quem
se espera comedimento e capacidade de sacrifício. E assim a metamorfose da
curiosa, ambiciosa e audaciosa criatura num ser modesto, cujas ambições não
ultrapassam os limites domésticos do lar.
Portanto, temos assim primeiro
uma desqualificação “científica e bíblica” da mulher como “Eva”, um ser pérfido
e traidor, depois a sua domesticidade, que a irá vincular à maternidade de “Maria”.
Hoje estão perfeitamente naturalizados discursos que põem em associação as
palavras “amor” e “materno”, o que significa não só a promoção de um
sentimento, mas a importância considerável da mulher dentro da esfera privada
familiar (hoje “compatibilizada” com a esfera profissional, com enormes custos),
ao mesmo tempo que se mantêm as representações da mulher como Eva, eternamente a
desencaminhar o pobre Adão do paraíso.
É preciso alguma complacência
para tolerar dois discursos tão contraditórios quanto dominadores.